Teto Constitucional: Mudando a relação entre o Estado e o Capital

Como o novo regime fiscal mudará a natureza do estado desenvolvimentista herdado do século 20, alterando as relações entre o Estado e o capital no Brasil, desmontando o Estado desenvolvimentista.

Por Lécio Morais*, no blog do Renato Rabelo

Henrique Meirelles - Foto: ReproduçãoDANIEL FERREIRA/METRÓPOLES

Desde o início do processo de afastamento de Dilma, a direita aproveita o recuo da esquerda para impor sua ideologia de mais liberdade para o capital e menos estado para o povo. Parcela importante do capital financeiro e produtivo parecem apoiar um programa radical de reformas neoliberais, ainda mais profundo do que o defendido à época pelo governo FHC.

A reforma inicial, veiculada pela PEC 241, cria por até vinte anos um teto para a despesa primária anual da União, o que equivale a congelar por esse longo período o valor real do gasto registrado no orçamento de 2016.

Seu objetivo não se limita a um ajuste de caixa – os cortes imediatos de despesas previstas. Ele é uma reforma fiscal estrutural, elas atingem componentes da despesa considerados responsáveis por uma crescente oferta de serviços e de benefícios, o que faz crescer ininterruptamente a despesa e o tamanho do Estado.

Consideram os déficits como resultados das práticas de “governos populistas”, desconsiderando a dependência fundamental da variável fiscal das fases cíclicas de expansão e de crise do capitalismo.

Os alvos prioritários são os serviços de saúde (SUS), a educação e muito em especial a previdência social. Outro efeito relacionado ao “teto” é fortalecer a terceirização do investimento público e a privatização de várias estatais ou partes delas.

O “teto”, denominado de “novo regime fiscal” é considerado, pelo ministro Meirelles como a “mãe de todas as reformas”. Nisso, tem razão o ministro.

Após o “teto”, o pretendido freio definitivo na melhora ou expansão de serviços do SUS e da educação, bem como dos benefícios da previdência serão apenas uma questão de tempo. Não haverá recursos para financiar a melhora ou a expansão de serviços e benefícios, ou até manter sua universalidade, exceto buscando recursos de outros serviços e programas igualmente necessitados, inclusive os de investimento.

E ainda haverá o bônus político: transformar as reivindicações populares em uma disputa entre os diversos movimentos específicos. O povo ficará ainda mais fora da disputa alocativa do orçamento.

As estatais – as que sobreviverem à privatização – muito provavelmente terão sua função reduzida à lógica do mercado – a lucratividade e o curto prazo. Perderão sua natureza estratégica para o desenvolvimento nacional.

Mas, além de trazer tais prejuízos sociais e ao investimento, a “reforma fiscal estrutural” afetará – como veremos – o papel do Estado e, com isso, as necessárias relações mantidas entre ele e o capital.

Rumo ao estado mínimo

Visto do ponto de vista econômico, o teto constitucional é uma medida inusitada de extrema rigidez fiscal. Não há exemplo de país que submeta seu regime fiscal a regra tão inflexível, ainda mais quando referenciada apenas a um índice de inflação passada, sem conexão com as flutuações da economia nacional ou internacional, tanto do presente como de um futuro previsível.

Mas o “teto” será ainda mais do que um regime fiscal que inviabilizará o financiamento de políticas sociais. São as relações entre o estado e o capital no Brasil que serão fortemente remodeladas.

O congelamento da despesa ao nível de 2016 fará com que, à medida que o PIB cresça ao longo dos anos, o tamanho relativo da despesa pública e dos tributos cairá. A consequência estratégica mais profunda do teto constitucional estará cumprindo o principal ponto do programa neoliberal: o do estado mínimo.

A política fiscal como a conhecemos, desaparecerá. A política fiscal, seu gasto e tributação, não tem como objetivo adequar o financiamento do Estado a sua despesa. A arrecadação e o gasto monetários (que determinam resultado primário) objetiva influenciar a demanda agregada e a renda disponível bem como a liquidez da economia por meio do meio circulante.

Esta é a única política estatal que age direta e globalmente no consumo, no investimento e no ritmo da economia nacional.[¹] Os demais instrumentos, como incentivos tributários, regulações setoriais e a política monetária só o fazem de maneira indireta, mediados que são por decisões do capital privado

Entre as ações indiretas, a política monetária (liquidez, crédito e câmbio) é de longe a mais importante, por agir também de forma sistêmica sobre a liquidez e a taxa de investimento, porém exclusivamente por mecanismos do mercado financeiro e de competência de um banco central.

O conjunto dessas interferências estatais na economia capitalista formam o que denominamos de relações entre os poderes do Estado e do capital. Relações que estabelecem o que é ou não aceito como os limites de ação de cada lado e sua tolerância mútua. São relações históricas e dinâmicas, algumas vezes colaborativas, outras conflitivas.

Desmontando o Estado desenvolvimentista

O “teto constitucional” representará, ao final nessas relações entre Estado e capital. Aumenta a intolerância do capital a ação da política fiscal. Um resultado que se enquadra no mais radical programa neoliberal: um estado mínimo, fora da ação direta do Estado em uma acumulação mais difusa, setorial e espacial, via gasto monetário, desafiando o monopólio do capital financeiro sobre o investimento. Restará como ação sistêmica apenas a política monetária, mesmo assim restrita ao manejo da taxa básica. Manejo estreitamente controlado pelo sistema financeiro – bancos e mercados de títulos da dívida.

Essa mudança sistêmica mostra, agora, a intolerância do capital ao objetivo do Estado em construir um projeto de uma nação soberana, socialmente justa, economicamente mais forte e equitativa.

O Estado desenvolvimentista, resultante avanço de suas relações com o capital, está sendo agora revertido em vantagem para os valores liberais do capital.

Desvela-se com isso a natureza ideológica radical do teto constitucional à despesa primária, negando ao estado a capacidade de definir seu próprio dispêndio, independente até da sua receita, e, com isso, sua função de interferir na acumulação do capital – exceto aquela exercida pela política monetária.

Não à toa a restrição draconiana do “teto de despesa” não se aplica à emissão de dívida, seja para sua “rolagem” (pagando o principal e os juros com mais títulos), seja na manutenção dos altos custos da gestão da política monetária que sustentam e alimentam nosso sistema financeiro disfuncional e parasitário.

Por fim, é possível afirmar a PEC 241 vai além de uma ação política estratégia revelasse, por fim, como um objetivo ideológico da direita que emascula o Estado, seja como agente econômico seja como responsável pela defesa da cidadania e– no caso de alguns governos – também dos direitos populares. Seu objetivo nega a experiência histórica bem-sucedida dos atuais Estados periféricos como indutores da economia, bem como o fizeram, no passado, os hoje poderosos estados do centro capitalista, como nos ensina Ha-Joon Chang.[²]

A ofensiva da direita sobre a política fiscal mudará a natureza do estado brasileiro. Pretende-se desmontar o Estado desenvolvimentista herdado do século 20. Defrontamo-nos com uma reformulação radical das relações entre o Estado o capital, reduzindo o projeto de nação a uma prática rebaixada de mera acomodação às vicissitudes do capitalismo internacional e à geopolítica ocidental.

[¹] As empresas estatais também agem diretamente na economia, porém o fazem de forma setorial, e a depender de sua importância na cadeia produtiva onde se inserem. Além disso – como se espera – elas podem ser obrigadas a submeter sua atuação estritamente à lógica capitalista de lucro e acumulação, fazendo-as se igualarem ao capital privado.

[²] Autor de “Chutando a escada: A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica”, Unesp: 2004.