Complexo de Pedrinhas, da barbárie à plena dignidade humana (Parte 2)

A nova realidade do Complexo Penitenciário de São Luís, antigo Pedrinhas, atinge também a ala feminina. Antes marcada por brigas, tráfico de drogas e submissão de detentas à facções criminosas, hoje elas vivem em um ambiente seguro e cheio de possibilidades para uma nova vida além dos muros. Conversamos com quatro mulheres, cada uma com histórias, sonhos e motivos pelos quais “caíram” diferentes. Em todas, vimos um brilho no olhar de quem sabe que tem uma segunda chance.

Por Mariana Serafini

Penitenciária de Pedrinhas - Mariana Serafini

Não fossem os uniformes cor-de-rosa com a inscrição “interna”, ninguém iria imaginar que aquela sala de costura estava cheia de mulheres condenadas a cumprir uma pena. Enquanto costuram elas conversam, riem, falam da vida, contam histórias e, entre uma troca de linha e outra, consultam a professora Iriene para saber qual o próximo passo. Mas basta observar uns minutos a mais para perceber que cada olhar atento aos pontos bem marcados traz uma história dura. Rosa Maria dos Santos Veras, de 38 anos, está presa por tráfico de drogas. É a mais antiga das detentas com quem conversei. Ela sabe dizer exatamente o que mudou nos últimos dois anos, desde a nova administração.

“Antes aqui era muito violento, tinha muita apologia ao crime, tráfico de drogas, tinha quem usava crack e roubava as coisas das outras, umas mulheres foram esfaqueadas, tinha briga, era muito perigoso. Agora a disciplina é bem rígida, mas isso é melhor porque não tem mais droga, não tem mais armas, foi uma melhora de 100% que salva vidas”, conta. Segundo ela, com a nova administração, iniciada a partir do governo de Flávio Dino, há um tratamento mais humanizado por parte das agentes penitenciárias e com isso foi possível reduzir a violência. “Hoje elas [as agentes] olham as celas toda semana para saber se há objetos ilícitos ou drogas, isso deixa o ambiente muito mais seguro”.

Aos 38 anos, Rosa tem uma década pela frente para enfrentar a justiça, a expectativa é que a pena não seja cumprida toda em regime fechado. E uma das chances de reduzir o tempo no cárcere é através da oficina de costura, onde a cada 3 dias de trabalho ela abate um. Além disso, vê neste aprendizado a chance de uma nova profissão. “Quando eu sair e pretendo trabalhar com costura, vi que uma costureira ganha bem”. Em meio às máquinas, tesouras, agulhas e linhas ela encontrou uma realização pessoa maior, antes de ser presa era corretora de imóveis.

Para Rosa, as ações de formação profissional deram uma nova cara para o presídio e fazem o tempo “passar mais rápido”. “Aqui a gente conversa com a professora, melhora nossa autoestima porque a gente se sente útil. Quando nossa família vem nos visitar eles já sabem que a gente aprendeu algo de bom”.


Entre um ponto e outro, Rosa e Rafaela contam suas histórias | Foto: Tony Maciel 
 

Na ala feminina de Pedrinhas as detentas podem estudar e trabalhar. Há oficina de costura, malharia, serigrafia e panificação. Para participar elas precisam ter bom comportamento e uma abertura judicial que as permita conquistar este abatimento na pena. A professora do curso de Corte e Costura, Iriene Salgado Ferreira, conta que tinha “um sonho” de dar aula para as detentas. A ação em parceria com a Secretaria de Estado da Mulher chama-se Juntando os Pedaços “porque aqui a gente junta os pedacinhos de emoção, autoestima, todos os pedacinhos de sentimentos dela”, diz a professora que tem um imenso carinho com cada uma das alunas.

O sonho de Iriene era trabalhar de alguma forma para contribuir com a ressocialização de mulheres presas. “Abriram esse programa e eu consegui entrar. Achei bom porque eu tinha vontade de conhecê-las [as detentas], elas se sentem abandonadas, sozinhas. É muito bom dar aula aqui. No começo elas choravam, ficavam tristes aí eu parava a aula ia lá e conversava, tentava acalmá-las. Agora elas ficam felizes. Quando eu chego elas me beijam, me abraçam e nós conversamos muito, nos tornamos amigas”.

A oficina de costura tem foco na produção com o tecido de chita. Diferente de cursos profissionalizantes que costumam ter 160 horas aula, este projeto tem apenas 80 horas, mas a professora garante que conseguiu ensinar o máximo possível. “Elas chegaram aqui sem nunca ter usado uma máquina e hoje elas sabem costurar qualquer coisa”, diz orgulhosa em meio a vestidos e saias dignos de qualquer vitrine de loja. Para expor o trabalho, é realizado um desfile onde as próprias mulheres desfilam com os modelitos. “Elas podem sair daqui e trabalhar em qualquer lugar”, afirma a professora.

Uniformes produzidos pelas mulheres nas oficinas de costura e serigrafia 


Depois de passar pelo curso, elas estão aptas a começar a trabalhar nas oficinas de malharia e serigrafia. Todos os uniformes – da ala feminina e da ala masculina – além das lingeries das mulheres são produzidos por elas. Com isso, o Estado poupa do orçamento público porque estas roupas que seriam compradas de outras empresas passaram a ser feitas dentro do presídio.

Rafaela dos Santos Almeida tem apenas 19 anos, “caiu” com 18 devido ao roubo de um carro. De família pobre, não terminou a escola e não tinha muitas perspectivas. Condenada a 10 anos, ela espera entrar no regime semi-aberto em 2017 e faz planos de trabalhar. “Minha mãe está vendo uma vaga para eu trabalhar com agricultura, quando eu sair vou começar”.

Enquanto conversávamos, Rafaela bordava uma saia verde com flores vermelhas. Às vezes pedia licença para consultar a professora sobre como continuar o trabalho. Com os cabelos louros bem volumosos e um sorriso constante no rosto ela conta sobre como “vacilou” indo “na onda de uns amigos” para cometer o crime e agora que está há um ano atrás da grades reflete sobre o erro e reconhece que por mais que parecesse difícil, seria melhor ter terminado a escola e buscado outra forma de ganhar a vida. Neste caso, ela encara o cárcere como um período de aprendizado e tenta levar lições para a vida em liberdade.


As internas são responsáveis por todos os processos de produção de cada uma das peças 
 

Além da confecção dos uniformes, as detentas também são responsáveis pela produção dos pães consumidos no presídio. Na oficina de panificação, com um cheirinho maravilhoso de pão no forno, encontramos Orlete e Damires que entre sorrisos e lágrimas contaram suas histórias.

A rotina de Orlete Feitosa Costa começa cedo. Por volta das 5 da manhã ela acorda para ir à escola. Está repetindo todo o ensino médio para prestar Enem novamente e continuar a universidade quando sair. Antes de “cair” trabalhava em uma loja de departamento e cursava o 3º período de Enfermagem. Sonha em trabalhar com Terapia Ocupacional voltada ao cuidado de crianças com Síndrome de Down e aproveita o tempo no cárcere para repassar os estudos e não perder o ritmo das aulas. “Se for o plano de Deus, quando eu sair daqui vou conseguir fazer a faculdade”.

No começo da tarde ela volta à cela para um tomar um segundo banho, descansar um minutos e começar o trabalho na padaria. Até ser presa não tinha nenhuma experiência com panificação e contou orgulhosa que há uma semana tinha conseguido fazer seu primeiro pão sozinha: “outro dia eu consegui fazer o pão sozinha, foi muito gratificante perceber que eu realmente aprendi. Saber que outras pessoas vão comer algo que eu fiz me deixa muito feliz”. Parece que as habilidades na cozinha agora dividem um espacinho com a enfermagem no coração de Orlete.


"Gostei mais da segunda foto, saí sorrindo", diz Orlete quando peço para ela escolher qual imagem devo usar para ilustrar sua história | Foto: Mariana Serafini 
 

Ela foi condenada por tráfico de drogas, mas explica que nunca se envolveu com o crime, porém, era casada com um traficante e foi conivente com a prática. “Pegaram uma escuta do meu telefone celular e o juiz entendeu que eu era cúmplice”. Mesmo sem antecedentes criminais e com emprego fixo e matriculada na universidade, Orlete foi condenada a 7 anos. Já cumpriu 1 e 8 meses e passará o restante em liberdade a patir de meados de 2017.

Aos 25 anos ela tem um filho de 4 que só vê a cada 3 meses quando ganha licença para passar uns dias em casa. “Não gosto que ele venha me ver, ele nunca veio aqui. Quando eu vou vê-lo, eu digo que estava trabalhando e ele comemora ‘que bom que você voltou do trabalho, mamãe’”. A única visita que ela recebe aos domingos é do pai, o ex-marido também está preso e ela não pretende mais vê-lo quando sair.

Apesar da pouca idade, Orlente tem um olhar sereno e uma sabedoria que não se vê todos os dias. Encara este episódio da vida como uma etapa a ser vencida. “Aqui eu tenho a oportunidade de aprender alguma coisa nova todos os dias. Eu encaro como um aprendizado que me trouxe maturidade. Eu confio muito, a nossa vida é como um globo e a gente passa por muitas fases, ninguém pode passar nada por nós”. Ela fala em Deus e em uma força maior com frequência, mas não é adepta a nenhuma religião. “Eu creio, eu creio muito e só!”.

“Se eu pudesse, eu apagaria essa página da minha vida. Mas eu sei que a gente tem que passar por algumas coisa para aprender e aqui eu tenho a oportunidade de pensar melhor o que eu quero ser, aprendo coisas novas, estou estudando de novo, vou prestar o Enem!”. Com estudo pela manhã e trabalho pela tarde o abatimento da pena rende o dobro, assim, Orlete vai conseguir a liberdade em breve para seguir os sonhos que foram interrompidos.


Orlete e Damires exibem a produção do dia. Todas as manhãs, Pedrinhas amanhece com centenas de pães produzidos por elas | Foto: Mariana Serafini
 

Assim como Orlete, Antônia Damires também foi condenada a 10 anos por tráfico de drogas e já cumpriu 2 e 5 meses. Os dois filhos são cuidados pela mãe e pelo irmão, de quem ela fala com muito orgulho porque trabalha e é o primeiro da família a estudar na faculdade. “Minha mãe vem toda semana, meus filhos nunca vieram eu não quero que eles me vejam aqui, que eles vejam que eu estou bem e pensem que aqui é um bom lugar. Meu irmão não vem muito porque ele faz faculdade e trabalha e não têm muito tempo, mas a guarda dos meus filhos está no nome dele”.

Damires, como é chamada pelas amigas, já havia trabalhado na área de alimentação. “Já tinha trabalhado em padaria, em lanchonete, mas agora aqui no curso eu aprendo muita coisa nova, eu estou me especializando”. Como interrompeu a escola na 5º série, agora ela também está estudando na prisão. Acabou de terminar a 5º e a 6º e até agosto de 2017, quando deve ganhar liberdade, já terá terminado a 7ª e a 8º. A ideia é cursar o Ensino Médio e entrar na faculdade. “Quero fazer Direito para entender a justiça e fazer alguma coisa por nós [as detentas] porque aqui não tem ninguém por nós. Algumas têm a sorte de ter família que ajuda, mas muitas não têm ninguém”, diz emocionada.

Conversamos sobre mulheres que se especializam nas questões de gênero no Direito e ela diz que sonha em seguir esta linha para defender mulher vítimas da violência e em situação de alta vulnerabilidade.

Em agosto de 2017 Damires deve entrar no regime semi-aberto e seu novo desafio é terminar o colégio para começar a cursar Direito | Foto: Mariana Serafini

Torcedora do Sampaio Correia, ela conta que a mãe mora “perto do Castelão”, o estádio do time. Comento que teve jogo há dois dias e que a equipe infelizmente perdeu. Com um riso debochado ela responde de pronto: “Esse Sampaio mais perde que ganha mesmo”.

A rotina de Damires também começa às 5h30 da manhã. Às 6 horas ela já está na padaria e às 11h sai para almoçar, tomar o segundo banho do dia e descansar um pouco antes de entrar na aula que termina às 5h30. Com a vida cheia de tarefas, o tempo demora menos a passar e durante a noite, na companhia das outras 4 colegas de cela, gosta de assistir televisão. “O que eu mais gosto é desenho animado, gosto de todos. Mas aqui tem um canal que passa contos de fada, faz uns dias já que a gente não assiste mais novela, só assiste os contos de fada”, conta rindo.

Além da produção de centenas de pães utilizados para o café da manhã todos os dias, elas também fabricam lá mesmo no presídio os alimentos servidos nos coquetéis oficiais do governo do Estado. A cada evento, capricham mais nos quitutes e ficam muito orgulhosas de saber que o governador vai degustar os doces e salgados que aprenderam a fazer.

Ao final da conversa, elas fizeram questão nos servir pão com margarina e um café feitinho na hora no capricho por Damires. Com um olhar de cozinheira que reconhece a aprovação no silêncio dos convidados, ela nos observava com satisfação, afinal, abríamos a boca só para dar mais uma mordida no pão ou elogiar a “merenda” do meio da tarde.


Sair de Pedrinhas é um misto de satisfação e tristeza, ficamos felizes em saber as mudanças que aconteceram lá dentro, mas é triste saber que elas não podem passar pelos portões também | Foto: Mariana Serafini
 

Não fossem os uniformes e as grades, esqueceríamos que estamos dentro de um presídio porque tanto as agentes penitenciárias quanto as detentas encaram a vida de forma leve (o quanto é possível ser leve dentro de uma penitenciária). Pedrinhas é o exemplo de que quando há vontade política é possível construir outro caminho e abrir outras portas para quem em algum momento da vida cometeu um deslize. Mas além disso, é a prova de que Estado forte e empenhado em cuidar das pessoas, não do mercado, é capaz de profundas transformações humanas. Em apenas dois anos, estas pessoas foram tiradas da barbárie para viver com dignidade e sonhar com uma vida em liberdade cheia de perspectivas.