Códices, os antigos livros do Novo Mundo

Ganhamos, eu e minha companheira, um livro fabuloso, com esse título. Foi editado em português pela Ufsc em 2012, cujo esmero e apresentação gráfica fazem dele um bem precioso. Seu autor é Miguel León-Portilla, renomado historiador e intelectual mexicano e dedica-se ao estudo dos povos ameríndios da Mesoamérica, especialmente dos nahuas. É professor emérito da UNAM – Universidade Autónoma do México – onde dirige a revista Estudios de Cultura Náhuatl.

Por Walter Sorrentino*

Miguel León-Portilla - Divulgação

O livro é mais uma das gratas lembranças que levamos de Beatriz Paredes, mexicana, embaixadora do México no Brasil até os fins de dezembro passado. Ela volta ao México, onde já foi governadora de uma província e presidiu o partido que elegeu o atual presidente Peña Nieto. Pessoa carismática, calorosa, viva e culta, nos brindou durante seu mandato com uma amizade cristalina, que é recíproca e que esperamos manter, sempre..

Códice guarda relação com o conceito de tábua onde se escreve. É um termo provindo da Idade Média, notadamente pela Igreja Católica, mas se aplicou também aos antigos livros da Mesoamérica, mais propriamente do México antigo.

Tais manuscritos existiam desde, pelo menos, o período clássico mesoamericano, entre os séculos 3 e 8 d.C. Poucos sobreviveram e são pouco legíveis, salvo em vasos de cerâmica policromados. Dos códices procedentes dos séculos 14 ao 16, conservam-se 15, dos âmbitos mixteco, maia e do Altiplano Central, apesar das destruições que acompanharam a Conquista.

O mundo dos códices não terminou com a Conquista: muitos outros seguiram sendo produzidos no período colonial, em papel amate (de um tipo de agave), em lienzos de algodão ou mesmo em papel europeu. São mais de 500 os que se conservaram, graças aos (contra-)esforços de frades cristãos da Conquista. Alguns foram escritos mesmo em espanhol, mas guardando reverência às origens daqueles povos mesoamericanos.

Nosso Autor mostra que fora do Velho Mundo a escrita e a arte de fazer livros só floresceu no México e nas regiões próximas da América Central. Foi uma área geográfica de alta cultura, a que chamam de Amoxtlalpan, em terra de livros. É crescente o número de estudiosos que se voltam para interpretar tais escritos, mas não se pode dizer que foram inteiramente decifrados.

Incrível essas civilizações mesoamericanas. Qualquer um que tenha visitado o México pode se dar conta da riqueza arquitetônica, de registros contábeis e contratos, deuses e liturgias e a capacidade de expressá-los em arte e escrita. Faz toda a diferença um sistema de escritos e livros para uma civilização ser mais avançada, como a mesoamericana (única no Novo Mundo) a possui-los.

O autor, inclusive, nos brinda com três curiosos episódios registrados entre homens do Novo Mundo e espanhóis; três episódios distintos com um cochimí da Baixa Califórnia, um inca do Peru e um nahua, isto é, um mesoamericano.

O Caso do Guloso Cochimí narra o episódio de um “índio californiano” à chegada dos jesuítas e foi contado por um deles. Os cochimís eram caçadores-coletores e pescadores, desconheciam a agricultura e a cerâmica. Os jesuítas missioneiros buscavam sua cristianização. Um jovem cochimí recebeu de um padre a missão de levar um pão que tinha assado em seu forno, com uma carta, ao colega estabelecido em outro vilarejo. No caminho o jovem índio apressado teve fome e comeu o pão.

Ao chegar ao destino, o jovem entregou a carta ao missionário; este, lendo que havia um pão, pediu ao indígena que o entregasse. O jovem negou que trazia pão: “Quem disse para ti?” O padre indicou a carta; o cochimí admirou-se que algo tão pequeno pudesse falar. Mas respondeu: “Se o papel o diz, mente”.

Uma segunda vez ocorreu com o mesmo jovem e outro pão e o cochimí também o comeu. Mas desta vez, colocou a carta atrás de uma pedra para que ela não pudesse vê-lo comendo o pão. Novamente ao chegar ao destino ele entregou a carta e o interrogatório voltou a se repetir: a carta indicava que havia um pão.

O jovem então falou:

“Quem disse isso? Da outra vez, é verdade que comi o pão diante do papel, mas, agora, eu o escondi e me coloquei onde ele não me visse, pois se agora diz que eu comi o pão, mente, porque ele não me viu comer nem sabe o que eu fiz”.

O papel, aos olhos do jovem cochimí, era como um ser animado. A escrita era um misterioso ser que via e comunicava o que sabia. Mas o mais impressionante para o jovem é que o papel e seus risquinhos também podia mentir e falar, inclusive, daquilo que não tinha visto.

O segundo episódio é contado quando Pizarro, à frente de seus homens, encontrou-se com o inca Atahualpa, em Cajamarca, em 16 de novembro de 1532. Os incas tinham muitas formas de cômputos e registros com seus quipus, mas não tinham uma escrita propriamente dita. Pizarro enviou um mensageiro para Atahualpa: vinha convertê-lo a seus súditos, porque não conheciam Deus.

Atuahualpa o interrompeu, respondendo que sabia a quem adorar, o Sol e aos seus deuses. E perguntou ao mensageiro quem lhe havia dito sobre Deus, ao que aquele lhe respondeu: “o livro, o Evangelho”. Atahualpa tomou o livro nas mãos – “para que diga a mim”. Como nada foi dito, afirmou “Nem fala comigo o dito livro!”, e jogou-o ao chão.

As consequências foram dramáticas: Atahualpa ficou prisioneiro de Pizarro como refém e, como sabemos pela história, nem todo o ouro que depois ele entregou a Pizarro serviu para salvar sua vida.
O terceiro episódio é o caso transmitido por um indígena a um padre (que escreveu ao Papa), sobre um certo Corrales, no Panamá ou Costa Rica em 1514 e bom conhecedor do direito e administração.

Narrou ao padre que se deparou no interior com um feitor que estava lendo um livro, pediu-lhe para vê-lo – era a primeira vez que contemplava um livro espanhol – e exclamou: “Como? Também vós tendes livros? E vos servis de caracteres para se comunicar com os ausentes?”

O cochimí, o inca e o nahua-pipil tiveram diferentes reações diante do papel escrito. O primeiro acreditou que aquele estranho objeto dizia o que tinha visto e era magicamente dominado pelo missionário. O inca, não pensando da mesma maneira, ao tomar nas mãos uma Bíblia e vendo que esta nada lhe dizia, jogou-a no chão com dignidade. Já o curioso nahua-pipil se mostrou admirado de que os espanhóis também tivessem livros: os nahuas sabiam bem o que era um amoxtli.

Foram muitos os tipos de amoxtli evocados em toda a história de uma civilização mesoamericana, e a história terrível da Conquista. É uma história que precisa ser conhecida se quisermos a América Latina respeitante de seu passado, suas tradições indígenas, seu amálgama com outras civilizações e com os negros africanos, para fazer-se integrada num mundo de paz e solidariedade entre os povos e nações.

O livro nos brinda ainda, ao final, com uma rica iconografia. É altamente estimulante para que se conheça o México, de rica diversidade e história milenar.