As algemas e o controle estético social no carnaval de Salvador

Terminou o carnaval em Salvador e os fatos que marcaram este carnaval, como muitos outros, são os mesmos. Um absurdo e completo apartheid social, onde brancos e abastados tem direito a tudo…agora inclusive à tal pipoca (a rua, sempre rejeitada) e ainda mantém cadeira cativa nos suntuosos e exclusivos camarotes repletos de privilégios e ostentações que privatizam o espaço público.

Por Rita Honotorio*

Controle estético social no carnaval de Salvador

Basta uma rápida consulta aos recursos destinados para a festa para saber onde se dirigem e com qual finalidade. Esta tão falada transformação do carnaval de Salvador não existe de fato. Apenas se mexeu as pedras do barandão (jogo de pedrinhas), mas tudo continua com os mesmos e no mesmo lugar.

O carnaval sem cordas foi pago com dinheiro público que selecionou contumazes beneficiários e monopolizadores dos recursos destinados a sua realização. É, sim, um carnaval de excluídos onde a população pobre, periférica e preta é subjugada. Notoriamente, não há nenhuma mudança estrutural. Trata-se de uma operação de marketing político e autopromoção, sem real valorização da festa popular e de seus mantenedores. Basta ver a situação dos blocos afros e de índios que com parcos recursos fizeram um tremendo sacrifício para manter-se na rua: um afoxé desfilou na Praça Castro Alves com um pequeno “carrinho de cafezinho” como unidade sonora puxada por cinco ou seis homens para subir uma ladeira para o Pelourinho. Com um rápido e atento olhar, menos alienado, é possível, perceber toda a desigualdade imposta à população pobre. Trabalho degradante, assédio moral e sexual. Discriminação e violência.

O mais chocante de tudo isso é o lugar imposto aos jovens negros e periféricos que, atraídos pela mídia com o discurso fantasioso de carnaval democrático e participativo, são submetidos a rituais de humilhação e violência pessoal como o que presenciei ontem [28/2] à noite no percurso da Barra, que retiraram de mim qualquer ilusão de que há alguma mudança verdadeira e séria em andamento.

Muitos jovens, mais de cinquenta. Para mim pareciam milhares. Vi cada um multiplicado por centenas de jovens exterminados, seja por força policial, seja pelas facções criminais. Estavam detidos em formação de círculo, que tomava boa parte da rua, cercados por policiais de duas corporações, sendo algemados como escravos capturados, um prêmio ou troféu. Um pavoroso filme de terror sobre tráfico escravo.

Atados uns aos outros por lacres, uma nova espécie de algema de plástico, que substituem as algemas de metal, (talvez pela facilidade, este artefato, contribua para possibilitar a apreensão ao mesmo tempo de um grande número de indivíduos e assim, garantir a performance da pseudo-eficiência da segurança pública e a pose para as lentes ávidas da imprensa carnavalizada, quando lhes interessa, neste caso não consegui localizar ainda as fotos e os vídeos), num espetáculo dantesco que expôs a todos nós cidadãos que se sentiram violados no direito essencial da alegria.

Não há crime cometido, eles são apenas suspeitos, porque tem aparência de suspeitos. Vivem juntos em bandos, são semelhantes. Pretos, magros e altos, tem um elemento que os iguala e identifica. Cabelos e roupas, corpo e movimento. Tem um olhar enigmático para os que os julgam ameaçadores e uma “corporalidade” que estão sempre na esquiva e visivelmente não são daquele lugar. E mais grave ainda, ousaram sair da área reservada no carnaval de Salvador a sua catalogação existencial, o circuito popular da avenida Sete de Setembro, Centro da Cidade, há muito reduzido e desprezado pelas elites baianas, aonde a seleção das atrações passa por um rigoroso controle policial e obedecem a um determinado perfil, onde se impõe o consumo compulsório de um tipo de manifestação patrocinada com dinheiro público: a dos excluídos e violentos. Automaticamente, identificados pelas lentes eletrônicas do sistema de segurança oficial, são perseguidos e aprisionados para não alterar a ordem estabelecida e a tranquilidade dos que se sentem ameaçados pela sua simples presença.

Estes meninos e jovens ousaram, “desautorizadamente”, ir para a Barra, para a região proibida, a parte nobre onde ficam as grandes emissoras de televisão, com suas lentes e aparatos ostensivos. Violaram os limites do território imposto e, por isso, foram eliminados, pulverizados, impedidos de prosseguir, para dar o exemplo… o espetáculo a que foram submetidos, sem acusação ou crime, faz parte da performance do carnaval “democrático e liberal” de Salvador de 2017, que em nada difere de seus antecessores.

Todos, enfileirados como gado no matadouro, seguiram perfilados de cabeças baixas, sob escolta policial ostensiva em seus uniformes e cassetetes, performática, num ritual de humilhação sem precedente. Diante de uma multidão que assistia a tudo curiosa e impassível… sem esboçar reação. Impressionada, me remeti à memória da escravidão quando a população escrava era violentada e morta diante das pessoas passivas. Lembrei-me que estamos a mais de cem anos à frente desde a libertação legal, mas a cena é a mesma… com o mesmo rigor de arbitrariedade e truculência.

Envergonhada, martirizada e impotente, imaginei cada menino preto de minha família de meninos pretos, imaginei os meus filhos, sobrinhos e amigos e seus filhos, sobrinhos e netos, parentes distantes e vizinhos…visivelmente perturbada, vi o meu destino e de todos os meus irmãos, não nos distingo de cada um deles. Somos filhos da mesma desigualdade. Apenas sobreviventes. Já perdi muita gente próxima por esta violência que devassa a população negra. Toda criança ao nascer é igual, plena de beleza e inteligência, o que os distinguirá serão as oportunidades e condições da vida. Estamos perdemos centenas de inteligências que serão essenciais à transformação social.

Em um impulso, sigo atônita em direção ao comboio, resisto a censura de meus companheiros, ao meu comportamento desorientado e sou seguida por eles, naquele momento, minha segurança não está em questão. Me interessar saber: que crime cometeram? Por que estão sendo levados? o que fizeram? porque estão sendo amarrados? qual a acusação?… Me dirijo ao primeiro policial que anuiu de modo não ameaçador a minha inconveniente presença no espaço reservado. Um homem negro de meia idade, a resposta é estarrecedora: “não sei…se estão sendo levados devem ter cometido algum crime…” e eu penso: Nasceram! Minha resposta a ele é a única que consegui formular naquele momento, quando, já mais perto, posso ver os olhos de alguns, e sentir um aperto dentro do peito, como se pudesse estar vendo ali o meu filho.

”lamento que todos sejam jovens pretos e pobres, que poderiam ser filhos seus ou meus, meninos que não tem o direito de ir aonde quiserem para celebrar, como os outros tantos que estão no mesmo lugar, mas que são de outros estratos étnicos e sociais, porque independente de qualquer delito já estão condenados.

Em um diálogo improvável entre eu e ele, talvez, com algum constrangimento diante de minha inquietação, ele diz para se justificar: “a solução é a educação… eu estudei e você estudou… e eles não”. Nesse momento estavam sentenciados. Eram analfabetos. Senti sob os meus ombros a impotência, e a culpa de minha impossibilidade de transformar a situação ou evitar que ela acontecesse. Derrotada, momentaneamente, saí chorando pela rua, tão humilhada quanto esses meninos e suas famílias e a única coisa que me ocorreu foram os números de jovens negros exterminados. E imaginei qual o futuro estava reservado a eles senão a injustiça e a opressão.

Salvador é a maior cidade em população negra do Brasil, com graves desajustes sociais históricos. Uma das cidades com a maior número de mulheres chefes de famílias e altos índices de violência. Sem notórios investimentos e monitoramento adequado em educação de qualidade, falta de acesso a políticas públicas estruturantes, com alto investimento em obras e atividades culturais de massa que servem a alienação. Com uma base política envolvida em inúmeros casos de alta corrupção, maquiada pela velha e destruidora política patriarcal e obsoleta que se utiliza de mecanismos superados de popularização, que coopta e manipula falsos representantes e impõe uma imagem alterada e distorcida da sociedade. O resultado de tudo isso são os altos índices de marginalidade e de uma população capturada pela criminalidade que assume o papel do Estado.

A educação é sim um caminho, mais ela não virá em um ambiente hostil, onde há fome e miséria sem combate social, e cada vez mais discriminação, preconceito e revolta, produzindo um fosso intransponível entre o crescimento da consciência e a miserabilidade social. Tem que haver é uma política pública que ampare as famílias, que lhes garantam as condições necessárias para a sobrevivência com dignidade e segurança. Justiça social, respeito aos direitos humanos e a dignidade. Sabemos que o estudo formal para ser satisfatório é preciso prover as condições básicas, um estado omisso não pode responsabilizar a população. Estudar é um direito inalienável e não uma sentença e uma punição.