G. Lukács – problemas do presente sob o prisma de um clássico

Uma matéria recente dá notícia da decisão de retirada da estátua de Lukács de um espaço público em Budapeste, na Hungria (1). As razões apontadas tanto poderão ser as derivadas do anti-comunismo, que grassa hoje nas nações que constituíam a chamada Europa de Leste, ou do anti-semitismo que acompanha o crescimento da extrema-direita nesses mesmos países (e que é utilizado, também, como instrumento de provocação). 

Por Alexandre Weffort*

Gyorgy Lukacs

Mas, o que nos move neste texto não é o reagir à tentativa torpe de apagar a memória, procurando retirar da vista pública a estátua do grande filósofo marxista, mas a atualidade do seu pensamento. Interessa-nos, sobretudo, o que ele aporta para a compreensão do presente.

Num texto de 1920, Lukács refere, partindo da análise das estruturas sociais pré-capitalistas, a “consciência estamentária” que, “como fator histórico real, mascara a consciência de classe, impede-a de manifestar-se. Um fenômeno análogo pode-se observar na sociedade capitalista, naqueles grupos “privilegiados” cuja situação de classe não tem um fundamento econômico imediato” (2).

Lukács, ao referir-se a grupos "privilegiados", indica a relação ambígua destes com o processo produtivo, acrescentado "… A faculdade de adaptação de tal camada a evolução econômica real cresce com sua capacidade de "capitalizar-se", de transformar seus "privilégios" em relações econômicas e capitalistas de dominação" (2).

Na sociedade marcada pela economia contemporânea, importa verificar o alcance da asserção citada. Os estamentos sociais revelam mudanças na sua composição, mudanças que acompanham as mudanças ocorridas no processo produtivo e em toda a sociedade. A crescente dependência em relação à tecnologia, desde as máquinas que, mecanicamente, substituem o trabalho humano àquelas que, virtualmente, pelos processos informáticos, se impõem no plano comunicacional, essa dependência é acompanhada do surgimento de novos grupos sociais, de novos hábitos de consumo, de novas formas de trabalho que dão origem a novos estamentos sociais.

A relação que estes novos estamentos estabelecem com o processo produtivo é, cada vez mais, de mediação (das relações humanas à relação com a própria máquina). Assiste-se a uma inversão: a máquina, que antes mediava a relação do ser humano no esforço de transformação da matéria passa a ser o agente preponderante daquela transformação, enquanto o ser humano é, cada vez mais, relegado a um papel mediador, num processo que amplia a alienação derivada da divisão do trabalho.

Mas interessa-nos a questão da (in)capacidade do "estamento" social, pela sua situação específica, em definir uma consciência de classe. Isto é, aquela característica que permite identificar um determinado "estamento" social, isolando-o da dialéctica social actual e que o equipara à situação observada nas relações sociais pré-capitalistas.

Seguindo o pensamento de Lukács, a dialéctica social irá revelar-se no fundamento econômico da vida social, nas relações de classe. Mas, Lukács aponta a existência de estamentos sociais que não se definem exclusivamente por aquelas relações e que desempenham um papel ambíguo, pela impossibilidade de assumir uma consciência de classe. No entanto, esses estamentos observarão traços culturais, ou hábitos, que os delimitam.

No momento atual, agora olhando para a realidade política latino-americana, podemos ver como os estamentos sociais atuam em termos políticos, tanto estruturados em função de questões prementes e transversais a toda a sociedade, como o racismo, a homofobia ou o machismo, como em movimentos de contornos indefinidos, muitas vezes manipulados pela mídia, em razão de interesses meramente conjunturais.

O cientista social Emir Sader aponta criticamente a tese de "Boaventura de Sousa Santos e de várias ONGs, de optar por uma "sociedade civil" na luta contra o Estado" e a ausência de resultados positivos que revelam, bem como "as ambíguas alianças com forças neoliberais e de direita, que também se opõem ao Estado", assinalando o "fracasso teórico das teses da autonomia dos movimentos sociais, que renunciaram à luta pela hegemonia alternativa de alcance nacional e de luta pela construção concreta de alternativas ao neoliberalismo" (3).

Teorias que têm por base a preponderância dos estamentos como traço delimitador dos movimentos sociais, caracterizados por circunstâncias suficientemente relevantes para constituir um polo de agregação social, mas que promovem um projeto político que deixa de fora do seu horizonte a questão do Estado, conservando assim intocados no essencial os papéis de cada classe, daqueles que dominam e dos que são dominados.

A consciência de classe, enquanto conceito, será definida por Lukács como "a reação racional adequada que deve, dessa maneira, ser adjudicada a uma determinada situação típica no processo de produção. Essa consciência não é nem a soma nem a média do que os indivíduos que formam a classe, tomados separadamente, pensam, sentem, etc. Entretanto, a ação historicamente decisiva da classe como totalidade está determinada, em última instância, por essa consciência e não pelo pensamento etc., do indivíduo. E essa ação não pode ser conhecida a não ser a partir dessa consciência".

No Brasil contemporâneo, os movimentos sociais surgiram em resposta a necessidades prementes (ou permanentes, como é o caso da Reforma Agrária) e, no seu caminhar persistente, alguns irão promover o surgimento de uma consciência cívica e de classe. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) foi fundado em 1984 e celebra neste ano 30 anos de criação do seu "Setor de Educação", com o objetivo de "reunir militantes e educadores para aprofundar conhecimentos em torno do Projeto Educativo do MST", celebrando o I Seminário Nacional de Educação do Movimento, realizado no Espírito Santo. O tema desse primeiro seminário seria: "O que queremos com as escolas dos assentamentos/acampamentos" (4).

Noutro momento, vemos o MST surgir não somente como movimento dedicado à sua questão central, mas que se estrutura dentro duma lógica sindical, agindo inclusivamente em defesa do movimento sindical, como o recente ato de apoio ao movimento grevista dos trabalhadores do serviço municipal de Florianópolis e seus sindicalistas, ameaçados de prisão (5). Outros movimentos, como o MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto), sem desenvolvem de forma análoga, mas em espaços urbanos.

A dimensão geográfica e diversidade de circunstâncias sociais do Brasil, as enormes assimetrias económicas e de acesso à cidadania, são características que se impõem, dificultando a estruturação de um processo político consequente, processo que requer uma capacidade orgânica que relacione a sociedade enquanto totalidade porque, voltando ao pensamento de Lukács, "somente neste relato é que a consciência, que os homens podem ter em cada momento de sua existência, aparece em suas relações essenciais. Por um lado, aparece como algo que, subjetivamente, se justifica, se compreende e se deve compreender a partir da situação social e histórica, como alguma coisa de "justo"; e, ao mesmo tempo, aparece como alguma coisa que, objetivamente, é passageira com relação à essência do desenvolvimento social" (2).

Na análise do papel histórico do partido comunista, Lukács define-o como a forma orgânica da consciência de classe do proletariado, pela sua capacidade de, aliando dialecticamente a teoria à prática, assumir o propósito da transformação da sociedade entendida na sua totalidade.

E, numa leitura que importa também à problemática dos movimentos sociais, alerta para a diferença entre a consciência psicológica e a consciência de classe: "A origem de todo oportunismo está justamente em partir dos efeitos e não das causas, das partes e não do todo, dos sintomas e não do fato em si; em ver no inte¬resse particular e na luta por sua realização não um meio de educação em vista do combate final, cujo resul¬tado depende da aproximação da consciência psicoló¬gica em relação à consciência adjudicada, mas algo va¬lioso em si e por si ou, pelo menos, algo que em si e por si caminha em direção ao objetivo; numa palavra, está em confundir o verdadeiro estado de consciência psicológica dos proletários com a consciência de classe do proletariado."(6).

*Alexandre Weffort é professor, mestre em Ciência das Religiões e doutorando em Comunicação e Cultura

(1) http://www.vermelho.org.br/noticia/293689-1

(2) Lukács, Consciência de Classe, em https://www.marxists.org/portugues/lukacs/1920/consciencia/

(3) http://www.vermelho.org.br/noticia/293391-7

(4) http://www.vermelho.org.br/noticia/292725-8

(5) http://www.vermelho.org.br/noticia/293245-8

(6) G. Lukács, História e Consciência de Classe, São Paulo, 2003, Ed. Martins Fontes, p. 180.