O impacto de Cem Anos de Solidão na literatura hispano-americana

O escritor colombiano Gabriel García Márquez faleceu no dia 17 de abril de 2014, aos 87 anos, na Cidade do México. Os relatórios médicos apontaram como causa da morte um quadro infeccioso decorrente de uma pneumonia. Na realidade, o autor lutava já há alguns anos contra um câncer persistente que atingia os seus pulmões, os gânglios e o fígado. E, ao que tudo indica, desde 2012, sua memória parecia falhar e evoluir para um quadro geral de demência.

Por Felipe de Paula Góis Vieira*

Gabriel GArcía Marquez - Divulgação

Era a crônica de uma morte anunciada, por uma espécie de dor improvável e escorregadia, da mesma natureza daquela que atingira o presidente do conto “Boa viagem, senhor presidente”. Aos poucos, o escritor colombiano transformava-se em um dos seus muitos personagens: uma espécie de patriarca carcomido pelo tempo, cujos “anos de glória e poder haviam ficado para trás sem remédio” (García Márquez, 2003, p. 20). Tal qual um dos moradores da pequena Macondo, Gabo começava a apagar da memória “o nome e a noção das coisas”, “a identidade das pessoas e a consciência do próprio ser, até afundar numa espécie de idiotice sem passado” (García Márquez, 2009, p. 85-86).

No México, nem mesmo Mamãe Grande teria funeral semelhante. Da mesma forma que a famosa matriarca de Os funerais da Mamãe Grande, o escritor de Aracataca morria “com cheiro de santidade” (García Márquez, 2007, p. 147). O Sumo Pontífice não compareceu à cerimônia como ocorre no conto, mas em compensação dezenas de milhares de pessoas desfilaram diante da urna que continha as cinzas do autor de Cem anos de solidão. Dentro do Palácio de Belas Artes da capital mexicana ressoavam diferentes melodias: músicas do compositor e pianista húngaro Bela Bartók e também cumbias e vallenatos de todo o Caribe. Do lado de fora do edifício, uma nuvem de trezentas e oitenta mil mariposas amarelas de papel, trazidas da Colômbia, reverberava no ar.

Segundo o historiador mexicano Enrique Krauze, que compareceu ao evento, um ancião portava um letreiro que continha os seguintes dizeres: “Gabo, te veré en el cielo”. Um pouco mais adiante, um garoto comentava: “Vengo a ver al rey de Macondo”. De fato, García Márquez era o rei de Macondo e um dos escritores mais importantes e influentes da América Latina. Mas, não apenas isso. Era um dos autores mais populares, queridos e requisitados do continente. Nos anos em que ainda vivia a plenitude do ofício literário chegou a ser comparado com Cervantes; e não foram poucos os escritores, jornalistas e críticos literários que atribuíram à sua obra uma estatura bíblica e universal.

O povoado fictício de Macondo, presente na obra do escritor colombiano desde a sua estreia literária em A revoada (1955), universalizou-se com a publicação, em 1967, de Cem anos de solidão. Em 2007, por ocasião do 4º Congresso Internacional de Língua Espanhola, ocorrido na cidade de Cartagena de Índias, García Márquez afirmou categoricamente: “Os leitores de Cem anos de solidão são hoje uma comunidade que se vivesse em um mesmo pedaço de terra, seria um dos vinte países mais populosos do mundo” (García Márquez, 2007). Ao completar cinco décadas de existência, a saga da família Buendía atingiu a cifra impressionante de 150 milhões de exemplares vendidos, em aproximadamente 36 idiomas diferentes. Os números confirmam a onipresença do romance e a singularidade do seu autor: poucos escritores alcançaram a circulação, a fama e o reconhecimento de Gabriel García Márquez. Como isso foi possível? De que forma o autor alcançou o estatuto de voz privilegiada para falar e escrever sobre os problemas e vicissitudes da América?

As respostas para essas perguntas não são tão fáceis de captar. Quando pensamos a trajetória de Gabriel García Márquez, o esforço de reconstrução biográfica se torna extremamente melindroso. Como lembra o jornalista chileno Héctor Soto (p. 204), apesar de ter uma vida exaustivamente biografada e meticulosamente documentada, o escritor colombiano não é uma figura fácil de capturar. Sua trajetória pertence ao melhor das letras hispano-americanas, mas também ao mundo da fábula, no qual os dados aparentemente mais puros se mesclam à invencionice e ao embuste [1]. Gabo, apesar da obviedade do adjetivo, possui uma vida absolutamente literária e, tal qual a narrativa que o consagrou, mesclou o cotidiano ao insólito, o real ao fantástico, a história ao mito [2]. Sua biografia sempre esconderá um transfundo de polêmica e mistério irredutível.

Em mais de um sentido, Gabo se fez. Trabalhou com muito afinco para se converter em um grande narrador; com a perícia e a paciência de um artesão envelhecido no ofício, burilou a sua escrita e deu acabamento aos seus textos. Transformou-se, por assim dizer, em um grande escritor. Mas, apenas isso não era suficiente. Apesar do tom de quase desprezo com que falava da fama e do sucesso alcançados, o escritor queria ter repercussão massiva e sempre escolheu com muita precisão e cuidado as amizades, as inimizades e as redes intelectuais que lhe levariam a esse objetivo [3].

García Márquez flertou a todo o momento com o poder, que o fascinava e seduzia não apenas como motivo literário. Com simpatia, humor e certa leviandade, desejou como poucos de sua geração ter livre acesso aos bastidores da política latino-americana. E, teve. Foi considerado por muitos de seus pares, e não sem certo tom de reprovação, como o escritor “amigo de ditadores”. No entanto, suas incursões ao ambiente político da época nunca o converteram em um intelectual estritamente político, nunca o fizeram refletir de forma mais séria e apaixonada sobre as contingências da vida pública. Dos grandes temas políticos da segunda metade do século 20 – a igualdade, a liberdade, a democracia, o socialismo, a revolução, a globalização, a governabilidade, o desenvolvimento –, o autor nunca ditou cátedra ou foi referência de reflexão (SOTO, 2014, p. 229-230). Apesar da clara sensibilidade de esquerda e da forte consciência anti-imperialista que possuía, manteve-se, na maior parte do tempo, apartado desse debate que tanto empolgou os intelectuais que por aquela época atuavam no contexto latino-americano. Talvez, tanto quanto a reflexão sobre o poder, interessava-lhe o exercício do poder [4].

Apesar da ausência de uma reflexão ensaística mais consistente sobre o tema, essa familiaridade cortejada e alcançada junto aos poderosos do continente o converteu no grande agente mediador dos assuntos e problemas políticos da América Latina. O escritor esteve presente, por exemplo, na devolução do Canal do Panamá, na libertação de presos nos cárceres cubanos, nos contatos do governo colombiano com a guerrilha, nas medidas administrativas para suavizar o embargo feito pelos Estados Unidos a Cuba, sem mencionar as grandes campanhas internacionais em favor dos direitos humanos e das causas emblemáticas da esquerda mundial (SOTO, 2014, p. 229). Na mesma velocidade que todos esses temas pipocavam pela imprensa e grandes veículos de comunicação da época, também milhares de exemplares dos seus livros eram vendidos no mundo todo. Quais relações podemos estabelecer entre esses fatos?

Podemos afirmar, de forma muito direta, que García Márquez construiu a si mesmo e buscou obstinadamente esse lugar de importância na história do continente. Essa intenção deliberada de “fazer-se” nasceu, sobretudo, da enorme capacidade que o autor possuía de ler o contexto histórico em que atuava e converter os assuntos aparentemente mais importantes e também mais triviais em relatos e anedotas. Tudo isso, obviamente, sempre acompanhado de uma cota bastante calculada de astúcia e projeção. Em entrevista concedida ao biógrafo inglês Gerald Martin, autor de Gabriel García Márquez: uma vida, o escritor colombiano confessou que todos nós temos três vidas: uma pública, uma privada e outra secreta. E quando esses três elementos se associam para criar uma personalidade altissonante e onipresente na história da América?

Ao ler as inúmeras entrevistas que García Márquez concedeu antes e após a fama, temos a impressão de que ele é o homem certo, no momento e local exatos. O acaso ou o senso bastante aguçado para notícias e acontecimentos de grande impacto o fizeram assistir de camarote a queda de inúmeros ditadores, bem como as grandes agitações políticas e sociais que comoveram o continente na segunda metade do século 20. Quase que por obra do destino, suas memórias e também biografias o colocam como uma espécie de observador privilegiado da história latino-americana. Sempre no olho do furacão, o autor buscou incessantemente entrelaçar a sua vida privada e familiar aos grandes acontecimentos históricos da América. Realidade, exagero ou invenção deliberada, qual efeito isso produziu sobre a repercussão e circulação de suas obras?

Ao leitor mais desatento, ficará, no mínimo, a sensação de que a vida de Gabriel García Márquez está intimamente associada ao mundo latino-americano e que, uma vez tão profundamente mergulhada nele, o autor seria de fato a voz amplamente autorizada a falar e escrever sobre a América.
A publicação de Cem anos de solidão, em 1967, converteu toda a obra anterior de Gabriel García Márquez em bons ensaios e esplêndidos rascunhos. O sucesso fulminante do livro direcionou o olhar da crítica para esses textos, identificando neles a cozinha na qual se foram elaborando a fogo lento os temas da violência, do despotismo, das famílias, dos clãs dinásticos, da guerra civil e seus coronéis, do matriarcado, da política e suas perversões, da solidão e da idade dourada e suas nostalgias; temas que, seguindo essa lógica, encontraram sua máxima expressão nesta obra definitiva e maior que foi Cem anos de solidão (SOTO, 2014, p.217).

No final da década de 1960, o romance se transformou em símbolo de um fenômeno editorial, o chamado boom da literatura hispano-americana. Em certo sentido, entregou à América Latina uma carta de identidade que até aquele momento pouquíssimos livros haviam conseguido impor com tanto consenso. O êxito do romance, como não podia deixar de ser, colocou García Márquez em outra galáxia, tirando-o dos locais por onde sempre havia transitado – a boemia literária, a picaresca da marginalidade e a eterna necessidade de se preocupar com as contas do final do mês – e instalou-o nos circuitos da fama e do poder. Era exatamente ali onde sempre quisera estar (SOTO, 2014, p. 221-222).

Notas

1 – Gerald Martin, autor de Gabriel García Márquez: uma vida, passou aproximadamente duas décadas pesquisando a trajetória do escritor colombiano. Sobre os desafios dessa pesquisa, ele comentou: “não foi fácil descobrir o fio da meada através das múltiplas versões que García Márquez deu a quase todos os momentos importantes de sua vida. Assim como Mark Twain, a quem García Márquez pode ser bem-comparado, ele adora uma boa invencionice, sem falar de um bom exagero, e gosta também que uma história seja satisfatoriamente bem-acabada, sem esquecer os incidentes formativos que construíram a história de sua vida. Ao mesmo tempo, também é brincalhão, antiacadêmico e fortemente a favor de mistificações, fuxicos e inequívocas intrigas quando se trata de despistar jornalistas ou professores. Isso é parte do que ele chama de seu mamagalismo […] pode ser traduzido discretamente como seu lado provocador, espirituoso. Mesmo quando se pode ter certeza de que qualquer anedota, ou um caso específico, é baseado em algo que ‘realmente’ aconteceu, ainda assim não se pode defini-lo de uma única maneira, porque logo se descobre que ele contou a maioria das histórias bem conhecidas de sua vida em várias versões diferentes, e todas possuem pelo menos um elemento de verdade” IN: MARTIN, Gerald. Gabriel García Márquez: uma vida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010. p. 22-23.

2 – Gabriel García Márquez é considerado um dos grandes expoentes do chamado “realismo mágico”, um dos muitos sintagmas utilizados pelos críticos para se referir a um determinado tipo de literatura que congrega a descrição realista a um senso de “mistério” e “adivinhação poética da realidade”. Em outras palavras, a literatura enquadrada dentro desse selo analítico costuma inserir em seu enredo e no desenvolvimento de seus personagens elementos “fantásticos” ou “maravilhosos”, percebidos na trama como parte constituinte da realidade ou da “normalidade”. A expressão foi utilizada pela primeira vez, para se referir à literatura hispano-americana do século 20, nos textos Letras y hombres de Venezuela (1948), de Uslar Pietri, e Magical Realism in Spanish American (1954), do crítico mexicano Angel Flores. Com o tempo, o debate sobre a funcionalidade do conceito se expandiu e outros termos foram utilizados para se referir a esse tipo de narrativa (o real maravilhoso americano, a literatura fantástica, o barraco e o neobarroco).

3 – Para Adriane Vidal Costa, estudiosa do tema e professora de História da América na Universidade Federal de Minas Gerais, a consagração e o sucesso editorial de Cem anos de solidão ocorreu, em grande parte, devido à rede intelectual latino-americana de esquerda que se formou na década de 1960. Costa afirma que o romance era ansiosamente esperado pelo público e crítica especializada, antes mesmo de ser publicado pela editora argentina Sudamericana em 1967. Esse clima de espera foi fruto da promoção e divulgação realizada por intelectuais importantes e consagrados do período. A atuação de Carlos Fuentes, idealizador da publicação parcial do romance em inúmeras revistas e suplementos literários do México, foi fundamental nesse sentido. Além dele, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, futuro desafeto de García Márquez, foi um dos grandes responsáveis por fazer circular a ideia de que o romance era a novela definitiva do continente. Posto dessa forma, não apenas a qualidade literária do escritor colombiano, mas também as suas amizades e redes intelectuais foram fundamentais para o êxito que suas obras alcançaram. Para maiores informações, consultar: COSTA, Adriane Vidal. Intelectuais, política e literatura na América Latina: o debate sobre revolução e socialismo em Cortázar, García Márquez e Vargas Llosa. São Paulo: Alameda, 2013.

4 – É bastante famosa a crítica feita pelo escritor chileno Roberto Bolaño, que o acusa de ser “um homem encantado de ter conhecido tantos presidentes e arcebispos”. Além da amizade inabalável com Fidel Castro, García Márquez notabilizou-se por sua proximidade com figuras como o ditador panamenho Omar Torrijos e os ex-presidentes Felipe González (Espanha), Bill Clinton (Estados Unidos) e François Mitterrand (França). Na sua lista de amizades poderosas também se encontra a maior parte dos últimos presidentes da Colômbia.