A negociação do Brexit se estancou

Especialistas se perguntam que jogo o Reino Unido pretende jogar a partir de sua separação do bloco

Por Marcelo Justo

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O que o Reino Unido quer exatamente na negociação do Brexit? Ninguém sabe. Na coletiva para a imprensa que marcou o fim da primeira rodada de conversas com os representantes da União Europeia (UE), o negociador chefe europeu Michel Barnier destacou que o próximo encontro deve ter como objetivo esclarecer a posição britânica. “É indispensável que o governo britânico deixe clara a sua postura, para podermos negociar o acordo financeiro que devemos alcançar no final, só com essa definição será possível avançar com as negociações”, explicou Barnier.

David Davis ministro designado para representar os britânicos na negociação do Brexit, alegou que o país necessita de um compromisso de ambas as partes. “Tivemos discussões intensas e construtivas, mas que requerem flexibilidade de ambos nas próximas etapas para se chegar a um acordo”, disse Davis. Por outro lado, o caldeirão de rumores em Londres apontou em outra direção: uma tentativa dos setores mais duros do governo de Theresa May de chutar o pau da barraca e conseguir uma separação completa da UE sem nenhum tipo de acordo, o chamado “Hard Brexit”.

Nesta primeira fase de negociações, que abordou três temas (a “conta financeira pela separação”, os direitos dos imigrantes britânicos e europeus após o Brexit e a fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda), não se esperava acordos, mas sim avanços significativos. Mas não houve uma coisa nem outra. O ponto mais ríspido é o da chamada “conta do divórcio”, devido aos compromissos orçamentários britânicos com a UE, além de outras obrigações adquiridas, como a do sistema de aposentadorias.

Em junho, o Reino Unido aceitou que deveria haver um acordo inicial sobre este tema, para depois se negociar um novo trato posterior ao Brexit, que se efetivaria em março de 2019. A cifra mais citada extraoficialmente pela UE está próxima dos 60 bilhões de euros. O problema é que os britânicos não puseram nenhum número sobre a mesa.

Esta falta de claridade é fruto da paralisia da política britânica, que por sua vez se instalou a partir das eleições de 8 de junho. Com a primeira-ministra Theresa May enfraquecida politicamente e sem maioria própria, com vários ministros dispostos a puxar o seu tapete, o tema da “conta do divórcio” funciona como desculpa para evocar o “Hard Brexit”, argumento que se está usando para minar ou condicionar May, com interesses que justificar inclusive uma postura radical mais adiante, após jogar a culpa do fracasso na UE.

Estas divisões explicam a guerra de guerrilhas que se vê nas declarações ministeriais. Enquanto Davis se preparava para a coletiva com Barnier em Bruxelas, o ministro de comércio Liam Fox, um ultradefensor do “Hard Brexit”, dava uma entrevista para a BBC onde falava em limites claros que deveriam ser estabelecidos nas negociações. Na versão de Fox, um acordo de livre comércio com a UE após o Brexit seria “a saída mais fácil do mundo, porque definiria regras em comum, sem taxas aduaneiras”, mas o problema é que “a política pode interferir na economia” e, em todo caso, é “melhor ter um acordo que não ter nada, embora podamos sobreviver sem acordo”.

Essa salada é a síntese do que um ministro da linha dura pode dizer publicamente. Em privado e “off the record”, dois ministros rivais (o chanceler Boris Johnson e o responsável por Meio Ambiente, Michael Gove), cujo ódio mútuo é bem conhecido, passaram a defender a mesma estratégia de estancar as negociações a respeito da “conta do divórcio” para justificar depois um soco na mesa, para forçar a União Europeia a “congelar o processo”.

Com cada vez maior frequência, as divisões internas do governo transbordam pela imprensa através das declarações “em off”. Na semana passada, Boris Johnson disse no parlamento que a UE podia go whistle(algo como “ir catar coquinho”, mas com um sentido um pouco mais agressivo) se pensava em conseguir algum dinheiro com a separação. Numa tentativa acalmar diplomaticamente os ânimos, o ministro David Davis reconheceu na Câmara dos Lordes que o Reino Unido tinha “obrigações financeiras” para com a UE, mas não especificou nenhum valor concreto.

A estratégia da equipe diplomática britânica nesta primeira fase tem sido a de ganhar tempo questionando ponto por ponto as demandas da UE, como antecipou o próprio Davis diante dos lordes. “Linha por linha, palavra por palavra, o objetivo é estabelecer que se houver um pagamento, seja o correto. Não vamos aceitar (o valor) que nos imponham”, afirmou.

Ninguém sabe se o ministro está na mesma equipe de Johnson e Gove, mas o que sim está claro é que todos têm uma ambição em comum: substituir May. Em meio ao cabo de guerra das declarações, o problema é que, com o alertou Barnier, “o relógio está avançando”.

Desde que May iniciou a negociação invocando o artigo 50 da carta europeia, no final de março, os britânicos tiveram quase dois meses de campanha acirrada pelas eleições antecipadas, convocada pela primeira-ministra em meados de abril. Depois, foram (e continuam sendo) semanas de profundas incertezas por causa do resultado. Em outras palavras, três meses perdidos, dos 24 previstos para se consagrar um acordo.

Os quatro dias de negociação desta semana são a primeira etapa, que se repetirá em agosto, setembro e outubro. Dentro de três meses, Bernier apresentará, na cúpula europeia, sua avaliação das negociações, com um veredito sobre se há progressos suficientes para avançar na negociação para um acordo pós-Brexit. Independente desse veredito, o fato é que só restará mais um ano para resolver todos os problemas pendentes: em outubro de 2018 já teria que haver um formato claro, para que os parlamentos britânico e europeu debatam sobre aprovar ou não.

A “conta do divórcio” é o tema mais cabeludo, mas não o único que apresenta sérios obstáculos. Com relação ao status dos cidadãos britânicos na UE e dos europeus no Reino Unido na UE, foi proposta a ideia de que a Corte Europeia de Justiça deve resolver os conflitos legais entre cidadãos europeus e o Estado britânico, algo inaceitável para Londres. “Esta é uma séria divergência”, admitiu Barnier esta semana.

No caso da fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda está em jogo o processo de paz consagrado pelos acordos da sexta-feira santa de 1998. A República da Irlanda quer manter os 500 quilômetros de fronteira abertos. Como expressou em Londres Simon Coveney, secretário de Relações Exteriores da República, “há 400 pontos de acesso, um tráfico de quase 2 milhões de veículos por dia, não queremos ter que instalar câmeras e pontos de checagem, precisamos manter a mesma situação de agora”.

Neste ponto, a Irlanda del Norte, que se opôs ao Brexit, está de acordo. A paz na província que pertence ao Reino Unido nunca está totalmente garantida: um bloqueio da fronteira poderia fazer o conflito se acirrar de novo, e voltar aos tempos de enfrentamentos entre os nacionalistas republicanos e os protestantes unionistas. É possível que os 10 deputados do DUP (sigla em inglês do Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte), que sustentam legislativamente a primeira-ministra May, pressionem a favor de um acordo. Em outras palavras, por todos os lados se vê que a negociação está, no melhor dos casos, cercada com arames.