Vanja: "devemos nos unir pela mobilização que definirá o nosso futuro"

Em entrevista para o Portal Vermelho, a presidenta nacional da União Brasileira de Mulheres, Vanja Santos, fala sobre sua trajetória, sobre as dificuldades vividas no interior do país, a necessidade de um sistema judiciário humanizado para atender as vítimas de assédio, o aborto como questão de saúde pública e os desafios a serem enfrentados para manter direitos em um período de retrocessos.  

Por Alessandra Monterastelli *

Vanja Santos - Clécio Almeida

“Minha história é comum. Fui criada em Manaus, vim de um bairro pobre que alagava, sempre estudei em escola pública. Nunca fui muito ligada à minha realidade, o que mudou quando tive a oportunidade de entrar na faculdade publica de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFA). Fiz o procedimento que todo brasileiro faz”, conta Vanja, em tom sereno. “O movimento das mulheres foi um divisor de águas na minha vida”.

Vanja Andréa Santos nasceu no Estado do Amazonas e foi na faculdade que iniciou sua participação na militância, com a União da Juventude Socialista (UJS) que na época, conta ela, não tinha nem esse nome. Mais tarde filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), mas foi na militância pela causa feminista que se encontrou. Casou, teve duas filhas, passou quatro anos afastada do ativismo; voltou pronta e elétrica. Em 2002 passou a ser coordenadora da União Brasileira de Mulheres: tomou gosto. Passou a compor os Conselhos Municipal e depois Estadual dos Direitos da Mulher, além do Fórum pela Redução de Mortalidade Materna e Infantil.

Desde então, não parou mais: hoje é Presidenta Nacional da União Brasileira de Mulheres. Em entrevista para o Portal Vermelho, ela fala sobre as principais pautas do movimento feminista, além da importância de unir a luta progressista para garantir os direitos perante os retrocessos implementados pela onda conservadora.

A primeira conquista e os dois Brasis

Vanja chega na redação logo após desembarcar em São Paulo; ainda está com a mochila nas costas. Após apoiá-la sobre a mesa, cumprimenta todos com muita atenção. Pega um café, se senta, sempre muito simpática e alegre, contagiando o ambiente. Quando a entrevista se inicia e surgem os assuntos sobre o Brasil, a luta, os direitos e a militância, uma expressão séria substitui o sorriso, sem que ela nunca perdesse o carisma.

Ela conta, com satisfação, como conseguiu construir uma UBM forte no Estado do Amazonas, atuante também no interior. “Em 2010 chegamos a fundar 23 postos da UBM pelos 62 municípios”, conta.

Para ela, a diferença entre a capital e o interior é uma regra válida para todo o território do país. “Abrange desde o serviço público até a própria militância: tudo está concentrando na capital, onde as instituições têm mais força. O interior muitas vezes é abandonado e sofre com a falta de inúmeras coisas; na maioria dos casos, a força dos movimentos sociais está na capital, enquanto que no interior eles não funcionam a contento”, contudo, é no interior que estão as bases, isto é, as pessoas que mais precisam de atenção, informação e cuidado.

Por todo o Brasil, os serviços do Estado não chegam para a população do interior como para os habitantes das capitais. Dentro dos próprios polos eles chegam desigualmente: muitas vezes, nas favelas das grandes cidades, os traficantes são responsáveis por dar aos moradores da comunidade serviços básicos que o Estado não dá, um dos fatores que lhes confere tanto respeito e poder.

“Quando você está na metrópole e vai para a periferia da cidade, num ato de se afastar da região central, já é possível notar a disparidade; imagine então no interior. No Estado do Amazonas, por exemplo, tem lugares em que você só chega de barco. São dias de viagem de barco. Imagine você, uma pessoa que mora nesses lugares, sendo atendida por serviços de saúde”, reitera a presidenta.

Se a situação das mulheres que vivem nas grandes cidades já é difícil, no interior não é diferente. E se para aquelas que moram na metrópole muitas vezes é complicado conseguir acesso a alguns serviços como os de saúde, por exemplo, a situação da mulher interiorana pode ser ainda pior. “Existem pessoas no interior que nunca fizeram um exame de mama ou preventivo, exames básicos para a saúde da mulher”, “é estarrecedor”, completa. “Estamos em um país desigual onde não conseguimos proporcionar ao povo do interior (e eu não falo apenas das mulheres) a mesma atenção que se tem na capital. Temos que trabalhar com as pessoas do interior para que elas saibam quais são seus direitos e quais são os deveres do estado”.

Vanja conta de um episódio que a fez adquirir a vontade de trabalhar para tentar melhorar a vida das pessoas interioranas. Entre 2007 e 2008, em parceria com o governo do Estado, ela e suas companheiras elaboraram um curso para ensinar técnicas de cabelereiro em Manaus.

“Foram 3 meses de curso que fizemos com as mulheres de um bairro na beira do rio. Na cerimônia de encerramento do curso, todas elas choravam. Elas diziam: ‘vocês estão me dando a oportunidade de ganhar o meu dinheiro e de poder dizer para o meu companheiro que esse dinheiro é meu e eu gasto com o que eu quiser e achar necessário’” conta, reforçando a importância de mostrar para as pessoas que elas podem ter uma vida digna. O estado é o responsável por levar dignidade para o povo, mas ele falha, e então entram em ação os movimentos sociais.

“Uma mulher com dignidade, com emprego, com perspectiva de vida, é uma mulher que terá mais ferramentas para lutar caso for violentada, é uma mulher com mais força para encarar a vida”, conclui.

A falta de um sistema judiciário humanizado

“A lei deixa muitas brechas”, inicia, após ser questionada sobre a liberdade dada pelo juiz José Eugênio do Amaral Souza Neto ao agressor Diego Novais, com 17 denúncias em seu histórico, detido após ejacular em uma mulher dentro de um ônibus que passava pela Avenida Paulista, em São Paulo. “O nosso sistema é machista. Os juízes, que trabalham com a aplicação da lei, estão inseridos nesse cenário. A lei não muda uma cultura, não muda uma conduta; ela trabalha para punir, mas não é educativa e não forma as pessoas”.

Vanja argumenta que nos casos de agressão, estupro e assédio o juiz não pode pura e simplesmente fazer a leitura da lei. “Nossa vida é mais que uma lei. A dignidade humana ultrapassa o que está em um papel: falta a humanização da lei”.

Segundo ela, para que a justiça de fato auxilie essas mulheres, os juízes deveriam ser submetidos a cursos preparatórios para lidar com esse tipo de situação sem menosprezar as vítimas, assim como é defendido para os policiais e delegados que atendem vítimas de assédio e estupro. O preparo deveria ser obrigatório para todos os agentes da lei e do Estado.

Além disso, defende ela, deve haver uma aproximação dos que fazem as leis e dos que as conduzem: “eles não são donos da razão. Temos que dialogar e exigir a manutenção de nossos direitos. A UBM tem tratado de colocar isso para os juízes, os desembargadores e o Ministério Público, que devem cumprir sua função. Conseguimos, inclusive, que Adail Pinheiro voltasse a usar tornozeleira”, diz referindo-se ao caso do ex-prefeito de Coari, no Amazonas, que foi acusado de pedofilia e solto após receber indulto.

Educação, informação e debate

Quando questionada sobre os dados divulgados em agosto pelo Ministério da Saúde sobre o aumento de registros de estupro coletivo no país, que mais que dobraram nos últimos 5 anos, além de ocorrerem cerca de 10 crimes desse tipo por dia, Vanja diz que toda mulher em todo lugar está exposta a violência machista e sexista. Contudo, ela relembra que existe um recorte de raça e de idade. Lembra, ainda, a dificuldade que as mulheres têm em denunciar, seja devido à falta de credibilidade ou as vezes até pela falta de noção de que ocorreu um abuso.

“Às vezes a mulher não quer se expor, pessoas próximas ameaçam, há uma grande exposição. A culpa recai facilmente sobre a mulher, e a cultura machista não discerne hora e lugar”.

Quando questionada se aumentaram o número de casos de agressão ou o número de denúncia, acredita que as duas situações se verificam. Por um lado, em toda situação de crise a mulher é a que mais sofre as consequências, portanto é possível que os casos tenham aumentado. Por outro lado, a Lei Maria da Penha funciona e permite mecanismos de segurança para que a denúncia aconteça.

“As mulheres estão com mais conscientização e postura para denunciar. Acredito que isso é fruto do conhecimento e dos debates. A mulher guardou muita coisa por muito tempo; quando ela passa a entender o que está acontecendo, há uma libertação”. Esses são os motivos, segundo ela, da importância crucial dos debates sobre gênero nas escolas, além de uma educação em que o aprendizado e o debate caminhem juntos. Apesar de acreditar também na importância da comunicação, Vanja lamenta: “infelizmente nossa grande mídia não exerce o papel da conscientização, muito pelo contrário: é comum nas novelas, por exemplo, o lado fraco das mulheres ser sempre o mais explorado. E se ela é poderosa, não é amada, que é mais ou menos a ideia que se tem da feminista”.

Apesar de ser uma grande entusiasta da educação e da comunicação para conscientizar as mulheres de sua situação, para que lutem contra as agressões enraizadas no machismo, Vanja não descarta, de forma alguma, a praticidade necessária para auxiliar e salvar as mulheres que precisam de ajuda, especialmente quando sofrem agressão. “Os serviços de atendimento devem funcionar e ser de qualidade. A própria lei já diz tudo que ela precisa para funcionar, é necessário criar mecanismos concretos para que isso ocorra. Vejo faltarem instrumentos e equipamentos nos postos de atendimento ou de saúde. Por isso, são necessários o investimento e a divulgação do mecanismo, para que as mulheres se sintam seguras para denunciar”.

Aborto, pauta urgente para a saúde pública

Vanja lembra que não é porque a mulher engravida que ela quis engravidar. “O Brasil carece de um planejamento sexual e reprodutivo, que deveria ser concretizado pelo Estado. Não vemos serviços como a pílula do dia seguinte ou o anticoncepcional sendo amplamente divulgados”.

Além disso, grande parte das mulheres que engravidam sem planejamento são negras e pobres, inseridas em uma realidade difícil e muitas vezes sem condições de criar os filhos sozinhas, já que, na maioria dos casos, os homens abandonam a mulher com o filho. “Os homens ficam isentos de qualquer responsabilidade, e todo o peso recai sobre a mulher: criar o filho ou não, e como criar. A questão do abroto vai além do lema ‘o corpo é meu e eu faço o que eu quero’; não se trata apenas de independência, mas trata-se de saúde pública.

As trabalhadoras em tempos de retrocesso

“A reforma penaliza todos os trabalhadores, mas especialmente as mulheres, que já sofrem com preferência para os homens na hora da contratação, diferença salarial e ainda tem receio de dizer que estão gravidas, pois existem grandes chances de ocorrer demissão”, argumenta. Com a reforma proposta pelo governo Temer, iguala-se o tempo de aposentadoria entre homens e mulheres, que muitas vezes tem “uma jornada tripla: estuda, trabalha, e ainda cuida da casa e dos filhos. Isso recaí diretamente ne saúde”, conclui a militante, referindo-se ao pouco tempo que a mulher terá para cuidar de si mesma, além da debilitação que poderia ter ao chegar na idade da aposentadoria.

“Estamos sem direitos, estão colocando as mulheres de volta em casa. Nosso país está vivendo um grande retrocesso na garantia de direitos e nas próprias leis. Projetos parados. O que mais perturba é o silêncio da população, mas esse silêncio foi tratado e pensado pela direita e pelos conservadores: trataram de desacreditar o povo dos movimentos sociais e da própria política. A população está descontente, não tem animo para ir para a rua; está apático”, lamenta, sem perder o foco: “é necessário buscar as pessoas onde elas estão, falar de seus problemas mais próximos, resolver as coisas mais imediatas, para que elas voltem a acreditar”.

O caminho da União Brasileira de Mulheres

A prioridade, segundo a presidenta da entidade, é dar mais atenção a juventude, que está participando cada vez mais do debate e propondo coisas novas. “Isso energiza o movimento”. “Eu adoro dançar. Quando dancei com as meninas mais novas do movimento, em uma confraternização após o debate, elas disseram que era assim que queriam uma presidenta da UBM; que dançasse”.

Segundo Vanja, a grande pauta agora é lutar contra o congresso “que está entregando o Brasil”. Ela cita a privatização do SUS, a venda da Amazônia, a reforma trabalhista e reitera que nenhuma pauta que beneficia a população é aprovada. Lembra ainda que as reformas atingem a todos, sem exceção: “todas as forças progressistas, todos os partidos de esquerda e os movimentos sociais devem se unir contra essa onda conservadora. Temos que organizar essa luta em conjunto, porque é essa a mobilização que vai definir o nosso futuro.