Até quando o Brasil achará normal assassinar travestis?

O Brasil não possui dados oficiais sobre a violência contra pessoas trans. No Brasil, a condenação dos envolvidos no caso Dandara pode ser um marco simbólico, uma vez que o crime de homofobia ainda não é tipificado pela justiça brasileira. A ONG Rede Nacional de Pessoas Trans no Brasil contabiliza 115 casos só neste ano. O mais “emblemático” deles é o de Dandara dos Santos, no Ceará. Espancada e morta a tiros em fevereiro.

Por Vitor Valencio

Dandara dos Santos foi brutalmente assassinada - Foto: Arquivo da família

A qualidade das imagens é ruim, mas suficiente para perceber o inegável: Um linchamento acontecendo no meio da rua, em plena luz do dia. As imagens são fortes, homens agridem uma pessoa indefesa no chão. Chutes, socos, pauladas, xingamentos. A vítima fora Dandara dos Santos, que depois de apanhar, foi colocada em um carrinho de obras e levada para o local onde ocorreria sua execução. As imagens são fortes…

A riqueza de detalhes pode ser narrada, unicamente porque o crime foi gravado em vídeo. Apesar disso, os agressores não demonstraram nenhum pudor em continuar com o linchamento. Seria mais um crime, mais uma estatística cruel, não fosse pela comoção e revolta que o vídeo causou na internet.

“O caso Dandara ganhou essa repercussão e acabou tendo a atenção do Estado, porque as imagens viralizaram, correram o mundo. Daí essa resposta do Estado. O caso Dandara tornou-se, a partir de então, um símbolo. Quero crer que o caso Dandara esta para a luta pela afirmação dos direitos das pessoas trans como o caso Maria da Penha está para a violência doméstica, para a violência contra mulher”, reflete Hélio Leitão, advogado de acusação e assistente da Promotoria Pública no caso.

Dandara tinha 42 anos quando foi morta. Mas não foi a única vítima de violência transfóbica no Brasil em 2017. Em uma breve visita ao portal da ONG Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil é possível constatar uma verdade avassaladora: só neste ano mais de 115 pessoas transgênero já foram assassinadas no país. São centenas de relatos de violência e assassinatos. A maioria dos crimes, provavelmente, nunca verá qualquer tipo de punição.

“O caso da Dandara (ficou conhecido) porque foi filmado. Têm muitos casos que não são filmados. Então nós temos um problema sério: a violência está se avolumando cada vez mais, com esse advento dessa extrema direita e desse fundamentalismo religioso. É um problema sério e infelizmente acontece em todos os estados, em todas as capitais. Têm muitos assassinatos que ocorrem e não são noticiados, apenas nós não ficamos sabendo”, revolta-se Toni Reis, diretor-presidente da Aliança LGBTI, em Curitiba, Paraná.

Ainda segundo a Rede Trans, em 2016 o Brasil teve 343 assassinatos de pessoas LGBTQ. Destes, 144 eram pessoas trasngênero. Apesar de já reconhecer a união estável de pessoas do mesmo gênero, o país também carrega um estigma inversamente proporcional. Já que por outro lado, uma ONG internacional, a Transgender Europe, revela uma estatística ainda mais avassaladora: O Brasil é o país que mais mata pessoas transgênero no mundo.

O site ‘Quem a Homofobia Matou Hoje’ mostra que 2017 já contabiliza 296 mortes documentadas de pessoas LGBTQ no Brasil. No site também é possível conhecer mais uma centena de histórias brutais de assassinatos bárbaros contra pessoas homoafetivas e transgênero.

Todos esses números não constam em nenhuma estatística oficial, uma vez que o código penal brasileiro não tipifica crimes cometidos contra pessoas LGBTQ. Muito menos contabiliza agressões e assassinatos sofridos por pessoas transgênero. Entretanto, a falta de estatística não faz com que essas pessoas não existam.

Até o momento 12 pessoas foram implicadas no atentado contra a vida de Dandara. São oito adultos e quatro agressores com idade menor que dezoito anos. De acordo com Hélio Leitão, os oito adultos estão sendo processados, mas apenas seis já foram capturados e respondem pelos seguintes crimes: “Quando o Ministério Público inaugurou o processo, na denúncia foram indicadas quatro qualificadoras: motivo torpe; motivo fútil; crueldade; e meio que impossibilitou defesa da vítima”, explica o advogado Hélio Leitão.

Os menores foram submetidos a processos infracionais sob as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente e, por isso, não são acompanhados pela Promotoria. O processo que tramita na Primeira Vara do Júri, aguarda o pronunciamento da sentença, que pode ser anunciada a qualquer momento. A expectativa do Ministério Público é de que todos os acusados sejam submetidos ao Tribunal do Júri.

Crueldade

Como se as imagens do crime não fossem chocantes o suficiente, o advogado Hélio Leitão revela exclusivamente que o vídeo não mostra as partes mais cruéis e assustadoras dos últimos momentos de Dandara. “Aquilo não é nem dez por cento do que aconteceu. Não retrata nada próximo do que efetivamente aconteceu. Depois que eles a puseram no carrinho. Ela foi levada ao local (da execução). Levou dois tiros no rosto. Depois pegaram uma pedra e desfiguraram o rosto dela. Quebraram todos os dentes, os olhos…”, revela o advogado, ainda chocado.

Hélio também se indigna com a falta de amparo do Estado em situações como essa. “Enquanto essa barbárie estava se processando, populares que estavam lá, vizinhos, ligaram pra polícia. Várias pessoas relataram que uma pessoa estava sendo espancada, que seria morta. Entre a primeira chamada e o momento que a polícia atendeu (os chamados) mais de uma hora se passou. Mais de uma hora, mais de uma hora! Então isso é um tempo de resposta inaceitável!”, conta o advogado.

As alegações são oficiais. A pedido do Ministério Público, um relatório foi expedido pela Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança de Fortaleza e já consta nos altos do processo. “Eles deram um documento dizendo que entre a primeira chamada e a última há um intervalo de um pouco mais de uma hora. Qual é a ocorrência policial que pode esperar uma hora pra ser atendida? Você chega e não tem mais o que fazer… Você chega para recolher o cadáver. Como foi um processo lento de espancamento, se houvesse o atendimento à ocorrência policial em tempo hábil, talvez tivéssemos evitado essa morte”, lamenta Hélio Leitão.

Intolerância

Recentemente mais uma polêmica relacionada à causa LGBT tomou os noticiários nacionais. Uma liminar federal expedida pelo juiz Waldemar Claudio de Carvalho, de Brasília, determinou que o Conselho Federal de Psicologia não pode impedir que psicólogos promovam atendimentos direcionados à reorientação sexual.

A decisão derruba uma determinação do próprio Conselho Federal de Psicologia, que é o órgão maior responsável pela profissão no Brasil. Desde 1995 a entidade proíbe esse tipo de atendimento. A liminar causou revolta e comoção em diversas camadas da sociedade e ficou popularmente conhecida como ‘Cura Gay’.

“Eu acho que essa liminar dando direito à reorientação sexual é um absurdo! Quer dizer então que é permitida a cura gay, sabe? Reorientar sexualmente uma pessoa quer dizer curar gay. Não tem não tem meias palavras. O que ele fez é um absurdo é uma excrescência. Um acinte à cidadania da nossa comunidade que já é vilipendiada nos seus direitos. Ele tem que consultar o Ministério da Saúde, o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Federal de Psicologia, que são autoridades no assunto”, desabafa Toni Reis, do Grupo Dignidade.

Dandaras

Dandara também foi o nome de outra personagem oprimida no Brasil. Dandara teria sido uma guerreira negra. Ex-escrava que fugiu e ao ser recapturada, se jogou de um penhasco. Escolheu a morte ao voltar a ser escravizada. Relatos desconexos dizem que Dandara foi esposa de Zumbi dos Palmares. Exímia capoeirista teria lutado ao lado dos homens do Quilombo dos Palmares, principalmente depois da tentativa de invasão holandesa, no Pernambuco, a partir de 1630.

Dandara dos Santos não deixou de ser uma guerreira. Viveu de acordo com o que tinha em seu coração. Não era perita em lutas, mas travou sua própria batalha. Não teve a oportunidade de escolher como seria seu fim. Quase quatrocentos anos depois, também foi escravizada, dessa vez pelo medo e pela intolerância. Vítima de uma sociedade brasileira que, séculos depois, mostra poucos indícios de evolução.

Horizonte Distante

O caso de Dandara dos Santos tomou proporções internacionais. Para os agentes envolvidos no processo resta a esperança de que, ao menos, as punições sejam o início de um novo panorama para a diminuição da violência contra pessoas transgênero e LGBT, em geral. “É muito mais do que um processo de assassinato. É sempre assim, a gente acaba convivendo, administrando o que é errado… Precisa virar escândalo, precisa virar tragédia para a gente se mobilizar. Infelizmente é o que acontece… Para mim é um caso símbolo, um marco. Nós temos que fazer desse caso um degrau para darmos um salto civilizatório de respeito, de tolerância, de valorização das diferenças!”, ressalta o advogado Hélio Leitão.

“Nós temos uma cultura extremamente LGBTfóbica. Éramos tratados como pecadores, na Idade Média. Queimados na fogueira. Depois fomos tratados como criminosos até mil oitocentos e vinte e quatro. E nós voltamos como doentes até dezessete de maio de mil novecentos e noventa e isso permanece na sociedade. Ou acham que é pecador ou é criminoso ou doente. Isso precisa ser trabalhado na educação para o respeito à diversidade. Não ensinar ninguém a ser gay, lésbica ou trans. O que nós queremos ensinar nas escolas é respeitar as pessoas as diferenças. Todos nós somos diferentes e merecemos ser respeitados na nossa religião, nas nossas praticas sexuais, na nossa orientação, no nosso time de futebol. Ninguém deve ser morto por uma das nossas especificidades!”, conclui o ativista Toni Reis.