A era Stálin cumpriu uma missão histórica

“A Revolução Russa foi a revolução do século XX, a mais decisiva e que mais marcou os desdobramentos políticos e econômicos”, avaliou o professor da UFRJ, José Paulo Netto, durante o “Seminário Internacional 1917: O Ano Que Abalou o Mundo”. Segundo ele, ao longo da experiência soviética, “cometeram-se graves equívocos”, mas mais importantes foram os ganhos para a emancipação humana. “O balanço é indiscutivelmente positivo do ponto de vista dos avanços civilizatórios”, disse.

Por Joana Rozowykwiat

Stalin

José Paulo ministrou, no último dia 28 de setembro, a aula “Da Coletivização a Guerra”, parte do curso “História da Revolução Russa”. O evento aconteceu em São Paulo, dentro da programação do seminário internacional realizado pelo Sesc e pela Boitempo Editorial.

Responsável por falar principalmente sobre o período em que Josef Stálin esteve à frente da União Soviética, o professor defendeu que “o isolamento, o cerco e a sabotagem” explicam muitas das particularidades do fenômeno do período de Stálin.

Ao destacar que o líder soviético despertou amores e ódios, ele reconheceu que, no mar do processo desencadeado pela Revolução Russa, “cometeram-se graves equívocos, erros substantivos e crimes”. Por outro lado, destacou legados importantes da URSS, como a derrota do nazi-fascismo.

“Eu me sinto aqui um credor da União Soviética. Porque, se não fosse a política stalinista, o império do Reich de mil anos não teria durado só 12 anos. O papel da URSS sob Stálin foi essencial”, defendeu.

Para ele, a era Stálin cumpriu uma missão histórica, uma vez que teria sido nesse período que se criaram na URSS as bases de uma sociedade urbana e industrial, com um proletariado educado – ou seja, pressupostos objetivos para a transição socialista. Ele destacou os avanços da União Soviética, que passou de país atrasado para segunda maior potência mundial.

José Paulo disse ainda que a ameaça da URSS durante a Guerra Fria foi capaz de conter o poder e agressão imperialista. “Se não fora o equilíbrio pelo terror estabelecido pela URSS, as chacinas imperialistas pelo resto do mundo teriam sido muito maiores. Se alguém tem dúvida, dê uma olhada no mundo contemporâneo. Esse que vocês estão vivendo agora”, provocou.

Revolução, polêmica e contradição

José Paulo começou sua apresentação, alertando que as avaliações históricas, os juízos políticos e a historiografia de uma revolução são sempre objeto de polêmica. “Uma revolução no sentido estrito supõe a substituição, no centro de um sistema de poder, de uma classe social por outra, implicando profundas e substantivas modificações no estatuto da propriedade. Há sempre os vencidos e os vencedores. E os juízos e análises não são imponderáveis e criados na neutralidade”, advertiu.

Ele próprio reconheceu que sua visão sobre a Revolução Russa é determinada por vieses ideológicos e políticos. E informou à plateia que formou-se na antiga tradição do Partido Comunista. “Minha avaliação é que a Revolução Russa foi um daqueles raros, porém efetivos momentos em que a humanidade dá um salto adiante”, opinou

Mas também chamou a atenção para os problemas deste processo. “Não há que passar uma borracha nesse passado. A Revolução Russa, na sua magnitude, foi também um processo marcado por contradições. Nada mais longe que um processo celestial que a revolução. Mesmo considerando que foi um processo que iluminou a humanidade, trouxe luzes novas para pensar o rumo dessa espécie que somos sobre o planeta, também lançou sombras e algumas escuridões”, apontou.

Na sua avaliação, pensar a Revolução, cem anos depois, é analisá-la em sua totalidade: “na sua grandeza, nos seus limites, nas luzes a nas sombras. A mim tocou falar aqui sobre o período mais sombrio”, disse, fazendo rir a plateia.

O ícone

Até fevereiro de 1956, quando se realizou em Moscou o XX Congresso do Partido Comunista da URSS, Stálin era objeto de culto, lembrou José Paulo. Não participavam desse culto os seguidores de Leon Trótski.

No mundo do comunismo, Stálin era um ícone. Tornou-se, em 1945, na sequência da guerra, um generalíssimo. “A referência a ele era ‘guia genial dos povos’. Quando de sua morte, em 1953, a comoção percorreu os quadros comunista do mundo inteiro. Não atingiu apenas o humilde militante, mas intelectuais e artistas. Pablo Neruda dedicou a ele poemas. Picasso prestou-lhe homenagens. As exéquias de Stálin foram um acontecimento remexido de monumentalidade. Um poeta russo, Evgueni Evtouchenko, relata o que foi o enterro de Stálin: um fenômeno de histeria coletiva”, descreveu.

Em fevereiro de 1956, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev, que era então secretário-geral do partido, apresentou um informe ao Comitê Central, revelando o que ele chamou de “crimes de Stálin”. “Uma bomba caiu na cabeça dos comunistas do mundo inteiro”, disse José Paulo.

O documento, conhecido como relatório secreto, foi vazado para a imprensa norte-americana e a reação inicial dos comunistas do mundo inteiro foi não acreditar. “Como é que o generalíssimo, o guia genial poderia ser um déspota criminoso? Para vocês terem uma ideia, aqui no Brasil, foi uma delegação do Partido Comunista a Moscou, mas só voltou ao país seis meses depois. Os comunistas que estavam aqui atribuíram o relatório a uma falsificação da CIA”, contou.

Depois do clima de perplexidade, nos anos subsequentes, passou-se a demonizar a figura de Stálin. No seu relatório, Kruschev dizia que, a partir de finais dos anos 1930, a democracia proletária, socialista, foi substituída por um regime que praticava constantes violações da legalidade socialista.

“E dizia que isso se devia a que o poder pessoal de Stálin chegara a um ponto tal que todas as instâncias partidárias tributavam a ele um culto à personalidade. O período de Stálin foi designado como o período do culto à personalidade, como se tudo que aconteceu no plano sociopolítico da Rússia Soviética, de meados dos anos 1930 até a morte de Stálin, fosse uma questão psicológica, ou psicossocial. Tudo era a culpa de uma personalidade autoritária e despótica. É claro que essa teoria do culto à personalidade vale tanto quanto uma nota de três reais, nada”, defendeu.

O professor, contudo, fez questão de frisar que o fato de não aceitar essa teoria psicológica do poder, não quer dizer que pense que o perfil pessoal de um dirigente não tenha peso nos rumos da política. “Tem peso. Mas para compreender o que se passou na URSS a partir de meados dos anos 1930, o recurso à personalidade de Stálin, seja para deificá-lo, seja para demonizá-lo, é um instrumento analítico muito pobre”.

Interpretações da história

José Paulo recordou que, quando os comunistas e marxistas começaram a pensar sobre tudo que se passara, houve uma divisão esquemática entre eles. Um grupo considerava que Kruschev era “um reformista irresponsável” e que sua crítica estava viciada pela base. Tratava-se, portanto, de restaurar a importância de Stálin.

“Outro grupo, os chamados renovadores, com a água suja do stalinismo, punham fora o bebê do socialismo, jogavam fora a criança. Defendiam que aquilo que Stálin exerceu e executou era a negação da legalidade socialista. E, tendo essa legalidade permitido toda aquela série de abusos, seria sinal de que essa legalidade não presta. Era, portanto, preciso recuperar um pouco da riqueza da democracia formal, burguesa”, detalhou o professor.

De acordo com ele, com as revelações que vieram à tona pelas mãos dos próprios soviéticos, o pensamento burguês começou a fazer uma “reciclagem” na sua postura anticomunista. “Agora os próprios comunistas denunciavam a ditadura de Stálin. Nada melhor que aproveitar isso para reforçar e reciclar a tese burguesa”, afirmou.

De acordo com o professor, o pensamento burguês tratou de estabelecer que Stálin não foi um fenômeno específico, mas que, nele “desabou a tradição que já fora implementada por Lênin, ‘o sanguinário’, que por sua vez era fiel representante no plano político de Marx. Ou seja, a genealogia estava feita — a ‘tradição antidemocrática’ começa em Marx, passa por Lênin, e Stálin é seu grande representante. Esse pensamento continua em voga até hoje”, criticou.

José Paulo destacou que diversos documentos foram liberados para pesquisa desde a abertura dos arquivos soviéticos, no início da década de 1990 — uma riqueza ainda não suficientemente explorada.

A partir de 1995, surgiram várias biografias de Stálin e Lênin. “Do que eu conheço, há aspectos muito valiosos. Mas também uma série de pesquisadores norte-americanos e ingleses, financiados abertamente pela CIA e pelos serviços de espionagem britânicos escreveram sobre Lênin e Stálin”, alertou.

O professor destacou ainda que, depois da demonização de Stálin, surgiu uma certa nostalgia em relação aos tempos do líder soviético. “Isso é particularmente visível na ex-União Soviética. E, nas fileiras comunistas que resistiram à queda do muro no mundo inteiro, há uma tentação à recidiva. Trata-se de como reabilitar Stálin”, disse.

Para ele, tanto o caminho de creditar os descaminhos da Rússia Soviética a partir dos anos 1930 à personalidade e à influência de Stálin, quando a louvação ao ícone, são equivocadas.

“Faz parte da minha visão a tentativa de compreender Stálin como parte de um sistema, que sobreviveu a ele. Que não é o sistema de Lênin. Não há uma inteira continuidade entre Lênin e Stálin. Cada um é uma coisa. Penso que isso nos ajuda a entender melhor essa grande esfinge que é a Revolução Russa, e sem cuja decifração não seguiremos adiante, enquanto portadores de um projeto socialista”, avaliou.

Voltando no tempo

José Paulo repassou então o período de Stálin, abordando aquilo que ele considerou que tornaria singular o período em questão. O primeiro ponto que mencionou foi a teoria do socialismo em um só país. “Essa nunca foi a teoria de Lênin, Marx e Engels. Para toda essa gente, a revolução socialista teria um caráter mundial. Isso não quer dizer que fosse ocorrer na mesma hora, no mesmo dia, em todos os quadrantes. Mas eles pensavam, que a revolução socialista se iniciaria num país capitalista desenvolvido”, narrou.

Ele detalhou que, para os clássicos, os pressupostos da revolução socialista eram a existência de uma sociedade de base urbana industrial, com desenvolvimento das forças produtivas e uma classe operária proletária estatisticamente significativa e com experiência de luta democrática.

“A Rússia de 1917 não apresentava nenhuma dessas características. Aboliu a servidão apenas em 1861. Já era um país capitalista, mas onde o capitalismo se encontrava mesclado com relações claramente pré-capitalistas, um regime servil. Tinha 80% de sua população no campo, uma classe operária que, em 1913, somava 3,5 milhões de pessoas. Na mesma época, a população era de 165 milhões de habitantes. Sem qualquer tipo de experiência minimamente democrática. (…) Então a Rússia era o inesperado para qualquer socialista que olhasse a revolução com os olhos de O Capital, de Marx”.

Em seus escritos, Lênin vai mostrar teoricamente o porquê disso. O capitalismo entrava num estágio novo de seu processo evolutivo – o imperialismo. “E, com isso, o capitalismo se constituía como um sistema mundial, e era no elo mais fraco desse sistema que se daria o golpe político na ordem do capital. Mas Lênin não pensava que essa revolução ia acontecer só na Rússia. Ele pensava a Revolução Russa como a conexão entre a revolução socialista no Ocidente e a revolução democrática do Oriente”, afirmou.

Através da Internacional, criada em 1919, os bolcheviques jogaram toda a sua influência – e inclusive recursos financeiros e humanos – em revoluções como a chinesa, a alemã e a turca. Mas a projeção de Lênin não se mostrou fundada e a revolução não se espalhou pelo mundo.

O fato é que a revolução triunfou em 1917, mas meses depois, explodiu a Guerra Civil e a intervenção estrangeira. “Catorze potências intervieram na Rússia, fora os exércitos brancos. A guerra civil durou um ano e meio. Ao terror branco, a URSS opôs o terror vermelho. E tivemos uma hemorragia brutal. Mas os soviéticos venceram”, explanou.

Com o fracasso da revolução no Ocidente e o congelamento da revolução do Oriente, a Rússia ficou isolada. “Há um bloqueio, há sabotagem. E a direção comunista inventa uma teoria. A de que é possível construir o socialismo um só país. O isolamento, o cerco e a sabotagem vão explicar muito das particularidades do fenômeno stalinista”, defendeu.

Para José Paulo, a teoria do socialismo em só país é falsa, e a decisão de, naquele momento, não tentar expandir a revolução foi imposta pela condição do cerco à URSS. E, na sua avaliação, essa opção política preservou o Estado soviético. “Estou convencido que o caminho de estender a revolução era suicida. Sei que isso é polêmico. Do ponto de vista teórico, Trotski tinha razão. Construir o socialismo em um só país é inviável, como a experiência soviética demonstrou”.

Ascensão dentro do partido

De acordo com o professor, desde 1900, Stálin participava de ações revolucionárias na Geórgia, tendo sido inclusive preso por isso. Em 1904, aderiu formalmente à facção bolchevique do Partido Operário Social Democrata. Até 1917, teve um papel ativo nas atividades clandestinas e ilegais do partido.

“Por vias e caminhos diferentes, em 1917, Lênin, Trotski e Bukharin eram figuras que operavam à luz do dia, eram conhecidas. Já Stálin era da organização clandestina. E adquiriu ali uma enorme experiência no trato com instâncias e figuras da clandestinidade. Então em 1917, as lideranças bolcheviques vêm à luz do sol, algumas já conhecidas, com experiência de luta legal no exterior. E Stálin era desconhecido no conjunto do Partido Bolchevique”, explicou.

Em abril de 1917, o partido tinha 80 mil militantes. Em 1918; 270 mil. Em 1921, depois da vitória do Exército Vermelho sobre o Branco, eram 730 mil militantes.

“Alguns dizem que Stálin era insignificante em 1917. Não era não. Ele tinha duas décadas de luta clandestina. Já tinha experiência, nunca foi um formulador teórico, mas era extremamente inteligente. Em 1922, assumiu como secretário-geral do partido, um cargo burocrático. Começa então a ganhar relevância no interior do partido”.

A situação no campo

O Exército Vermelho venceu a Guerra Civil, mas, após o conflito, o país estava destruído. Lênin então percebeu que era necessário recuar no front da economia. O que havia estado em vigência até então era o comunismo de guerra, com o Estado recolhendo dos camponeses todo o seu excedente.

“Esse Estado havia dado aos camponeses a terra e tinha conseguido então a famosa aliança operário-camponesa, pela qual sempre batalhou. Mas, de repente, começou a perder apoio dos camponeses, que se sentiam esbulhados. Mesmo com a vitória do Exército Vermelho, 1921 se caracteriza como um quadro de crise social aguda. Não havia comida. Os camponeses começaram a retirar seu apoio. Há a revolta dos marinheiros”.

Atento a isso, Lênin decide implementar então a NEP (Nova Política Econômica). “Ele diz que é um recuo. ‘Vamos restaurar relações mercantis no campo. Vamos permitir que o camponês cultive, pague impostos ao Estado na forma de víveres, e o resto ele possa comerciar. É economia mercantil simples, da qual sempre vai sair capitalismo. E, ao adotar essa perspectiva, Lênin adverte que o caminho é perigoso, porque pode criar uma camada de camponeses médios e ricos, que vão se opor às futuras políticas. Mas agora não tinha alternativas. E ele estava certo”, defendeu o professor.

Qual era o problema? Depois dos anos da Primeira Guerra e da Guerra Civil, a indústria russa estava praticamente destruída. Oitenta por cento da população estava no campo e demandava o mínimo de produtos industriais para continuar seus trabalhos.

“Era necessário um intercâmbio entre cidade e campo, que naquele momento os bolcheviques não poderiam induzir, por que a produção industrial estava praticamente paralisada. Então como obter víveres para a cidade? Não dava mais para ser pela expropriação, como aconteceu por dois anos. Eu tinha que dar mais aos camponeses”, contou José Paulo.

Veio então o recuo da NEP e, cinco anos depois, em 1926, a economia estava recuperada. Foi possível chegar aos mesmos níveis da produção de pré-guerra, disse o professor. “Isso dava um desafogo e permitia pensar em como conduzir uma nova perspectiva econômica. Nesse período há uma intensa polêmica no interior do Partido Comunista”.

Havia duas posições claramente delineadas. A primeira era de que, recuperada a economia, era preciso criar condições para uma industrialização acelerada do país e quem bancaria tal investida seria o campo – era preciso coletivizar o campo. Na outra ponta, estavam os avaliavam que se devia andar muito lentamente com o processo industrial.

Só no XV Congresso do Partido, em dezembro de 1927, Stálin apoiou o projeto de industrialização acelerada, que ia implicar a coletivização forçada da agricultura e abrir caminho para o planejamento econômico central – vão surgir depois os planos quinquenais.

“Isso se dá em um momento em que a vida democrática do partido começa a se estreitar. Desde 1921 já havia a proibição das frações. Nesse Congresso, há uma vitória clara do grupo político que se aglutinava em torno de Stálin. Não é apenas a vitória de uma proposta de estratégia econômica. É uma vitória política de Stálin no interior de uma luta intensa na direção partidária. E é a partir dali que Trotski vai ser crescentemente marginalizado, até sua exclusão em 1929 e seu subsequente exílio. Stálin, no fim da década de 1920, enquanto secretário-geral, não desempenha apenas funções burocráticas, ganha destaque na direção política do país”, observou.

Industrialização acelerada e coletivização do campo

A classe operária havia sido dizimada na guerra. “Como renovar a força de trabalho, do ponto de vista da industrialização acelerada? São camponeses que vêm para a cidade. Você vai constituir um novo proletariado na Rússia. Em 1928, havia 12 milhões de operários urbanos. Em 32, havia 23 milhões. Quem são? São os camponeses. Exceto se você tem uma visão idealizada da produção industrial, você sabe que tem que educar e disciplinar o trabalhador. É só ver a história da revolução industrial capitalista. Você acha que se forma classe operária em quatro anos por meios democráticos e suaves?”, provocou José Paulo.

De acordo com ele, implantou-se nas fábricas um regime “tão despótico como o fordismo”, com hierarquias e enorme poder dos gestores. “Foram contratados gestores capitalistas, que ganhavam um dinheirão, então há uma modificação na escala salarial. Vocês acham que os camponeses vieram alegremente pra cidade?”, perguntou para a plateia.

O professor explicou que, em novembro de 1917, a política para o campo dos bolcheviques, que era a estatização das terras, não foi posta em prática. “Como a maioria camponesa não estava sensibilizada pelos bolcheviques, eles incorporam uma demanda de um aliado, o Partido Socialista Revolucionário, que é a distribuição da terra aos camponeses, que aderem então ao projeto bolchevique não porque se tronam bolcheviques, mas porque é um regime que lhes dá a terra”, resgatou.

Mas chegou o momento em que o regime quer conduzir a socialização do campo e propõe as explorações ou fazendas coletivas – kolkhozes. Como se deu essa coletivização massiva? “Em 1930, as unidades coletivas envolviam seis milhões de camponeses. Em 1933, envolviam 15 milhões. Isso foi feito na marra, na coação. Forçando o deslocamento de populações. Foi na base da porrada. É claro que os camponeses não ficara paradinhos. Simplesmente sabotaram”, denunciou.

Para ilustrar a situação, o professor informou que em 1930, o rebanho de gado bovino somava 67 milhões de cabeças. Em 1933, havia sido reduzido para 38 milhões. “Eles abateram o gado”, disse.

Em 1929, das famílias camponesas, apenas 4% estavam nos kolkhozes, ou seja, nas explorações coletivas. Um ano depois, em 1930, estavam ali 58% das famílias. “Ou seja, encostava o fuzil nas costas e mandava para a fazenda coletiva. Com isso, se liquidaram os camponeses médios e ricos, mas isso promoveu um nível de tensão absurda, uma crise sociopolítica”, observou.

Crise, divergência e traição

O contingente operário industrial, em 1928, era de 12 milhões. Em 1932, havia crescido para 23 milhões, computou. “Do ponto de vista quantitativo, houve a criação de uma base material que haveria de permitir nos anos seguintes um enorme crescimento da produtividade do trabalho urbano e agrícola. Mas sob coação”, ponderou.

Tudo isso terminou provocando uma crise política, que afetava a legitimidade do Estado bolchevique. “Nos anos 1930, o único espaço de debate político é o partido. Nós já vimos que, no fim dos anos 1930, a democracia socialista já estava muito reduzida. Mas é ainda, até 1934, um partido em que se pode discutir alguma coisa. E é claro que surgiram articulações anti-Stálin, em função do clima criado pela industrialização acelerada e a coletivização”, ressaltou.

José Paulo sublinhou então o início do que ele descreveu como “a prática de identificar na divergência a traição”. Para ele, tal prática não era algo absurdo, uma “invenção maquiavélica para se livrar dos inimigos. “ Stálin e seus companheiros não inventam conspirações para liquidar seus oponentes. Boa parte das conspirações eram reais. O problema é que elas foram identificadas não como divergências, mas como traições”. Apontou.

Na sua avaliação, havia um clima mundial que permitia isso. “Os anos 1930 são a consolidação da dominação nazifascista. E desde o início, o inimigo do nazismo não estava a Oeste, estava a Leste. Num quadro como este, é perfeitamente compreensível – não estou justificando – que, num partido que passou pela guerra civil, pela cissiparidade nos anos 1920, que quem estivesse no topo das decisões, considerasse que o debate estava eivado de conspiração e traição”, opinou.

Medidas excepcionais como práticas regulares

Segundo o professor, a partir de então inicia-se a instalação de um Estado policial. “A partir de 1936, configura-se uma nova Constituição e é ativado o mecanismo que foi fatal. Em face da identificação da divergência e dissidência com a traição, só tem um caminho: a polícia política”.

De acordo com ele, a partir de 1920, 1921, o Estado soviético fundia-se com o partido. “Os quadros dirigentes com experiência no Partido Bolchevique passaram a ocupar o aparelho de Estado, eram ministros, secretários. Por outro lado, o partido estava mudando, cresceu, mas não com gente que vinha das lutas do passado. É gente nova. E há também os arrivistas. É um partido que está fusionado com o Estado, logo, o que parece ameaçar o partido torna-se uma ameaça ao Estado”, indicou.

Segundo José Paulo, é isto que vai explicar os Processos de Moscou, de 1936 a 1939. “Aí se constitui o que eu chamo de autocracia stalinista. Entre o que vigia a Constituição e o que era a prática política há abismo enorme. É o período da liquidação dos velhos comunistas: 70% do Comitê Central eleito vai ser dizimado”, relatou.

Ele ressaltou que a conjuntura nacional e internacional em que se via metido o Partido Bolchevique, na segunda metade dos anos 1930, ia no sentido de constranger os projetos emancipatórios do comunismo. “Pode-se compreender então o uso de medidas e processos excepcionais. Mas não se pode desonerar as lideranças, quando elas transformam esses processos excepcionais em normas de ação. O que caracteriza a meu juízo, o fenômeno stalinista é que ele transformou medidas excepcionais compreensíveis, momentâneas, em práticas políticas regulares”, criticou.

O papel na Guerra

Conforme o professor, o “terror de 1939” certamente se prolongaria, não fosse interrompido pela Guerra. “Aqui é bom lembrar a importância de Stálin. Ele sempre reconheceu que o inimigo do nazi-fascismo era a República Soviética. E tentou por todos os meios manter o modus vivendi, mesmo sabendo que isso era provisório”, disse.

O acordo de Ribentropp-Molotov, de assistência mútua e relações pacíficas com a Alemanha nazista, incomodou os comunistas do mundo inteiro e só durou dez anos. “Mas foi a garantia para a transferência e a construção de unidades industriais a Leste. Com isso, foi possível sustentar o esforço de guerra. O ponto de vista de conceber a luta contra o fascismo foi tão importante quanto a ideia do socialismo num só país. O acordo foi um tributo que a URSS pagou para se preparar para a guerra”, defendeu.

Com a Guerra, a URSS passa a ter um único inimigo, o invasor que em 1941 violou a soberania. “A guerra era patriótica, não era dos bolcheviques. Era a guerra de todos os russos”, disse. A importância soviética na guerra só não aparece nos filmes norte-americanos, reclamou.

“Os jovens que já foram educados em tempos de Guerra Fria e neoliberais, com todo o peso dessa ideologia horrenda, devem se lembrar que quem mete a bandeira lá no alto do Reichstag, que está derrotado, é o soldado soviético”, disse, sob aplausos da plateia.

Potência

Em 1945, Stálin foi reconhecido como generalíssimo. “Mas logo voltam os métodos administrativos do período 36/39. E aquela excepcionalidade já não se torna mais viável. Na reconstrução do pós-guerra, a economia soviética se recompõe rapidamente. Em 1952, a URSS é a segunda potência mundial. Não apenas em poder bélico. Em 1949, a URSS quebra o monopólio da arma nuclear”, enumerou.

“Não estou fazendo apologia a nada disso, mas sou credor da URSS não só porque impediu o nazi-fascismo, mas porque os anos da Guerra Fria foram capazes de conter o poder e a agressão imperialista. E, onde houve agressão, a URSS foi solidária. A União Soviética não patrocinou nenhum regime regressivo”, disse.

Desmistificando Stálin

José Paulo voltou a falar então sobre o momento em que “o guia genial dos povos” foi apresentado como o “promotor de crimes horrorosos”. Para ele, esse processo ajudou a “tirar a pátina” sobre o cultivo da personalidade de Stálin ou qualquer outro dirigente.

“Os dirigentes são expansões privilegiadas de seu tempo. Alguns avançam sobre seu tempo. Qualquer forma de torná-los ícones para além do cultivo da demanda histórica que garante a continuidade da tradição revolucionária, a mim me parece uma forma de deificação que não faz parte de uma cultura verdadeiramente revolucionária”, defendeu.

De acordo com ele, o relatório secreto permitiu “tirar o véu ideológico” e conhecer “as luzes e as sombras da construção socialista”. Por outro lado, contribuiu também demonizar Stálin e passar a ideia de que qualquer coisa era culpa do líder.

“Eu penso que ele foi a expansão de conjunturas históricas e, no interior dessas conjunturas históricas, de uma correlação de forças dentro do partido, que se stalinizou, assim como a internacional comunista também se stalinizou. Por outro lado, não pode gestar a ideia de um Stálin como se fosse ele, lá no alto, e o partido e massa da sociedade soviética cá embaixo, sob sua ditadura e tirania. Foi algo muito mais complexo que isso. Se eu pudesse figurar, diria que era uma pirâmide, onde tem Stálin no alto e, embaixo dele, todo um conjunto de status com stalinzinhos à imagem e semelhança do de cima, até embaixo”, opinou.

Segundo José Paulo, a denúncia de 1956 abriu todo um período de “desestalinização”. “Entretanto, em uma sociedade estratificada dessa maneira, quem poderia tomar a iniciativa disso? O partido. E tem que começar pela cúpula”, disse, mencionando as tentativas autorreforma do socialismo, que, na sua avaliação, não deram certo.

“Stálin já não era mais viável. Porque ele pegou o país onde a agricultura deveria ser puxada por boi, onde o nível da educação era baixíssimo, restrito, uma população de 65% no campo. E ele deixou o país como segunda potência mundial. No seu período se criaram as bases de uma sociedade urbana e industrial, com proletariado educado. Sabe o que estou dizendo? Que a era stalinista cumpriu uma missão histórica. Criou, na URSS, as bases objetivas para a transição socialista”, citou.

Para ele, a forma de Stálin tornou-se inviável no quadro de uma sociedade urbana industrial, gestada por ele próprio. “O diabo é que nem Kruschev, nem Gorbachov conduziam a luta contra os restos burocráticos do stalinismo por métodos capazes de ativar a democracia socialista por fora do partido. Combateu-se o stalinismo com métodos stalinistas. Esta experiência estava com seu destino selado”, avaliou.

Ao encerrar sua apresentação, ele afirmou que, considerando o conjunto da obra, “os ganhos para a emancipação humana excedem largamente os crimes cometidos em seu nome”.

“Gostemos ou não, o nome de Stálin está vinculado a essa experiência, que é exemplar, também pelas lições que nos legou. É irrepetível e não é uma mortadela em que se separa fatias boas e más”, colocou, citando ideias do escritor peruano José Carlos Mariátegui sobre a revolução.

“Se a revolução implica violência, períodos obscuros e até certa crueldade, eu não tenho medo de dizer que me responsabilizo por tudo isso, porque a revolução é mais que tudo isso”, resumiu.