Temer desfere novo ataque às vítimas da ditadura de 1964

O projeto de reparação psíquica dos atingidos pela violência da ditadura civil-militar, implantada no Brasil após o golpe de 1964, pode estar com os seus dias contados. O governo Michel Temer sequer respondeu ao pedido de prorrogação do projeto, cuja segunda etapa se encerra em dezembro deste ano. O silêncio expressa a intenção do atual governo de por fim às políticas de reconhecimento dos crimes cometidos pela ditadura e de reparação às vitimas dessa violência.

sul21 - Maia Rubim/Sul21

No final de 2012, o governo brasileiro, através da Comissão de Anistia, passou a implantar uma política de reparação psíquica dos atingidos pela violência do Estado durante a ditadura civil-militar que se instalou no país com o golpe de 1964. A criação do projeto Clínicas do Testemunho fez parte do cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes-Lund, condenando o Brasil pelo desaparecimento forçado de integrantes da Guerrilha do Araguaia durante operações militares ocorridas na década de 1970.

A política de reparação psíquica, promovida pelo Clínicas do Testemunho, permitiu que centenas de pessoas pudessem solicitar atendimento, individual ou coletivo, rompendo o silêncio sobre suas próprias histórias e proporcionando o reconhecimento de pessoas que, até então, não se consideravam atingidas pela violência do Estado. Além disso, proporcionou capacitação profissional para um tipo de escuta, inédito até então.

Desde o início do projeto piloto até hoje, mais de 600 pessoas se inscreveram para participar do mesmo em todo o país. No Rio Grande do Sul, foram 56 pessoas na primeira etapa do projeto e cerca de 40 pessoas na segunda etapa. Esses números se referem apenas às pessoas inscritas formalmente no projeto. Considerando a audiência nos encontros públicos esse número chega à casa de algumas centenas.

O projeto Clínicas do Testemunho foi a primeira iniciativa do governo brasileiro para reparar e reintegrar à história do país a memória individual de vítimas da ditadura, dos familiares das mesmas até a terceira geração, bem como a memória coletiva da sociedade. Por meio de um convênio firmado com o Ministério da Justiça, o projeto começou a funcionar em três estados brasileiros: Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. Mais recentemente, passou a funcionar também em Santa Catarina.

No Rio Grande do Sul, a primeira etapa do projeto foi desenvolvida pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica (de 2013 a 2015) e a segunda, que se encerra agora no final de 2017, pelo Instituto APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). O passo seguinte seria transformar esse projeto em uma política pública, integrando-o à estrutura do Estado, mas o governo Temer sequer respondeu ao pedido de renovação encaminhado pelo instituto.

Um dos elementos centrais do Clínicas do Testemunho é o Estado poder se reconhecer como violento, assinala Otávio Augusto Nunes, atual coordenador do projeto. “Quando o Estado se omite, como está fazendo agora ao ignorar o pedido de prorrogação do projeto, ele nega a sua participação na violência e faz de conta que não tem nada a ver com isso”, diz o psicólogo. O pressuposto inicial do processo de reparação psíquica parte de uma responsabilização do Estado, acrescenta Alexis Conte Indursky, que também participa do projeto. “É importante demarcar este ponto no momento em que o Estado brasileiro está se omitindo mais uma vez”.

Denúncia do desmonte da Comissão de Anistia

Coordenadora da primeira etapa do projeto, a psicanalista Bárbara de Souza Conte relata que houve um pedido de prorrogação do projeto, prevista legalmente, mas sequer houve uma resposta por parte do governo federal. “O pedido não foi negado. Simplesmente não houve nenhuma resposta. Ao mesmo tempo, houve o desmonte da Comissão de Anistia que hoje não tem quem responda por ela”. Essa situação foi denunciada em uma carta aberta, assinada pelo Clínicas do Testemunho e por outras entidades, divulgada na Consulta Pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, realizada dia 21 de outubro, em Montevidéu.

A carta ilustra esse processo de desmonte citando uma série de decisões tomadas a partir do golpe perpetrado em 2016 contra o governo da presidenta eleita Dilma Rousseff: afastamento de integrantes da Comissão de Anistia de forma sumária; desmobilização dos meios e condições para o trabalho da Comissão, culminando com o afastamento de seu presidente; ausência de resposta sobre o pedido de prorrogação do projeto Clínicas do Testemunho; não cumprimento do prazo de 60 dias para executar a reparação pecuniária aos anistiados; interferência da Advocacia Geral do Governo (AGU) nas decisões da Comissão da Anistia, em flagrante desrespeito à autonomia da mesma.

A interrupção do projeto rompe com um trabalho de longo prazo de conquista de confiança na proposta de trabalho do Clínicas do Testemunho. “A nossa grande luta no início foi fazer com que as pessoas, que podem se beneficiar com o projeto, confiassem em uma proposta de trabalho de reparação que estava sendo autorizado e financiado pelo Estado brasileiro, o mesmo que perpetrou a violência”, conta Bárbara Conte.

Na mesma direção, Alexis Indursky observa: “Imagina, mais de 40 anos depois, chegar para uma pessoa que foi sequestrada, seviciada e torturada, ou um parente de alguém que passou por isso, e pedir para ela falar sobre isso? Muitos até já tinham recorrido a tratamento individual. O que uma clínica psicanalítica poderia oferecer de diferente?”.

O testemunho sobre o terror do Estado

Um dos diferenciais desse projeto, diz ainda o psicólogo, é que ele se apoia na ideia do testemunho, envolvendo um processo de coletivização que busca dar voz e visibilidade a histórias muitas vezes veladas e relegadas apenas a alguns lugares, tornando-as públicas. “Para que as pessoas pudessem se engajar neste processo nós tivemos que ir a público promovendo conversas públicas para nos apresentar, dizer qual era o objetivo do projeto, dissociando-o da ideia de que a clínica está relegada ao espaço do consultório, ocorrendo também em processos grupais e em conversas públicas. O testemunho permite fazer essa passagem daquilo que é individual e ficou individualizado para um espaço público. Muitas vezes, a pessoa que sofreu o terror do Estado acha que só ela sofreu aquilo, tem vergonha de dizer que sobreviveu, que não suportou a tortura e teve que falar.

Os testemunhos exigiram um processo de construção com a formação de grupos que atuaram como mediadores entre um espaço totalmente individual e um espaço público. Esses grupos ajudaram as pessoas a prepararem os seus testemunhos. Muitas vezes elas descobriram que, aquilo que julgavam só ter acontecido com elas, também tinha sido vivenciado por outras pessoas. “A memória não é particular, ela se constrói na relação com o outro e com a sociedade. A história de um país não se faz individualmente. Ela é coletiva. Ao desmontar a Comissão de Anistia, que é um órgão do Estado, o atual governo está atacando o Estado e a memória coletiva do país”, aponta Otávio Nunes.

Política do silenciamento

No início, recorda Bárbara Conte, o projeto enfrentou a resistência de uma política de silenciamento que dizia que poucas pessoas tinham sido afetadas pela ditadura, que já havia se passado muito tempo e as pessoas não precisavam falar mais sobre aquilo e coisas do tipo. “É a ideia da página virada. Não precisamos mais tocar nesses assuntos pois eles já ficaram no passado, o que é totalmente equivocado. O fato de que as pessoas sofreram, não puderam falar e continuam tendo sofrimento, sintomas e interferência dessa violência em suas vidas é algo que está localizado no presente e não no passado. É um passado que não se constituiu como passado. Ele se mantém como presente e é proibido falar sobre ele. Tivemos todo um trabalho inicial para proporcionar a quebra desse silenciamento e fazer com que as pessoas pudessem vir a público se pronunciar em seus testemunhos”.

Muitas dessas pessoas, que não tinham participado da luta armada, sido presas e torturadas, não se reconheciam como vítimas da violência do Estado. “Isso também é efeito silenciamento. Não temos só o problema de quem diz: ‘isso não aconteceu’. Tem isso, mas há também o fato de que muitas pessoas que foram afetadas tem esse efeito rebote de olhar para o herói, para o grande símbolo da esquerda que pegou em armas, e dizer: ‘a minha história é tão pequena que eu nem vou falar’. Isso começou a aparecer nos próprios eventos públicos. As pessoas começavam a fazer um relato e, à medida que iam falando, ficava claro que elas tinham sido afetadas também”, relata Alexis Indursky.

“Como a Bárbara disse, é um passado que não termina, que não passou ainda. Ele vai se atualizando nas conversas e na articulação com o outro. As coisas não terminam onde achamos que elas terminam. Quanto tempo a gente leva para poder elaborar uma separação? Imagine no caso de alguém que é atingido pela violência do Estado, que sempre esteve presente no Brasil. A ideia desse projeto não é trabalhar com a vitimização. As pessoas envolvidas participaram de uma luta legítima. Por que elas devem ser silenciadas à força? ”, questiona Otávio Nunes. Além do obstáculo do silenciamento, outro problema teve que ser enfrentado nas Clínicas do Testemunho. Muitas vezes, as pessoas que queriam falar eram criticadas por familiares e amigos e tachadas como portadoras de uma patologia. Famílias inteiras racharam por conta disso.

Apesar de ter iniciado na capital, o projeto também passou por um processo de interiorização. “Começamos a verificar a existência de uma grande quantidade de pessoas que viveram situações de violência do Estado em cidades do interior. As pessoas não tinham como vir para Porto Alegre ou não queriam vir. Começamos a trabalhar, então, para identificar as regiões onde viviam essas pessoas, mesmo que elas não se reconhecessem como afetadas pela violência. Na segunda etapa do projeto, fizemos um importante trabalho de interiorização”, diz Bárbara Conte. O trabalho desenvolvido pelas Clínicas do Testemunho também teve uma dimensão geracional. Segundo a psicanalista, foi possível perceber a herança e o efeito nas gerações posteriores daquilo que, ou não era sabido, ou tinha sido contado meio que aos pedaços.

No início, os encontros tinham um convidado especial ou exibiam um filme para estimular as pessoas a falar. Ao longo do projeto, as pessoas começaram a assumir esse lugar, lembra Alexis Indursky. “Tivemos conversas públicas onde a gente simplesmente abria o encontro e convidava os participantes do projeto a falar. Alguns deles estavam indo pela primeira vez. Fizemos audiências públicas com cinco testemunhos, todos eles inéditos e causando grande emoção, pois esses relatos fugiam muito do que aparece no testemunho mais militante. Isso tem um efeito convocatório horizontal, como chamamos. Não era mais o Estado convocando a pessoa a falar, mas um efeito lateral onde as pessoas se identificavam com fatos vividos no cotidiano por outras pessoas”.

Em determinado momento, neste processo de testemunhos, destaca Bárbara Conte, as pessoas que antes relatavam a tortura que sofreram, não queriam mais falar sobre isso, mas sim sobre o que era importante ser feito a partir de agora. “Apareceu a proposta de que esse trabalho de memorialização fosse acompanhado por um processo de educação. Nós recebemos muitos convites para eventos em escolas e universidades e o tamanho do desconhecimento que encontramos foi muito grande. As pessoas não sabiam o que tinha acontecido”.

O agravamento da crise política no país, com o afastamento da presidenta eleita pelo voto popular em 2014 e com o aumento da repressão policial contra lutas sociais, teve impacto também nas Clínicas do Testemunho. Muitas pessoas passaram a ter receio de falar, temendo a repetição de eventos que ocorreram na ditadura. Depois de abril de 2016, houve uma diminuição de participantes do projeto. As pessoas passaram a ter medo de falar, receando perseguições e violências. Essa conjuntura produziu uma quebra de confiança. Entre setembro e outubro de 2016 ninguém procurou o projeto, o que foi algo inédito.
A reatualização do trauma e o retorno das trevas

Bárbara Conte relaciona a conjuntura atual ao tema da reatualização de traumas passados. “Sempre, ao falar, aquilo que aparentemente estaria mais organizado e sedimentado, volta a estar presente sob a forma de desorganização psíquica. Essa possibilidade de reviver o trauma, em uma situação de acolhimento, é trabalho psíquico e elaboração simbólica. Frente a uma situação de retirada dessa possibilidade, que é o que está acontecendo hoje, as pessoas se afastam com medo de passarem por situações pelas quais já passaram”.
“A tendência à militarização é geral o que é muito preocupante, pois significa o retorno às trevas”.

“O Estado brasileiro nunca parou de ser violento”, assinala Alexis Indursky. “O que era violência política na ditadura se deslocou para as periferias. Neste sentido, o Estado matou muito mais na democracia do que na ditadura. Nós fizemos um movimento para criar as Comissões da Verdade da Democracia que, no Rio de Janeiro, já está instalada. No ano passado, começamos um trabalho associado à Comissão da Anistia, com financiamento de um fundo britânico (British Council), para fazer estudos de reparação psíquica, envolvendo episódios de violência do Estado no período da democracia. Temos indicadores que mostram que essa violência contra a juventude negra das periferias, população LGBT, povos indígenas e outros grupos, deve se incrementar, assim como a eclosão de grupos proto-fascistas”.

Para Otávio Augusto Nunes, um dos principais problemas neste cenário atual é a existência de uma instância supostamente acéfala que fica sob a égide do mercado. “Bolsonaro começa a encontrar apoiadores no mercado, noticiou a Folha dias atrás. Dizer que o dinheiro não tem ideologia é uma grande falácia”. Nesta ideologia, complementa Bárbara Conte, o sujeito é responsável pelo seu fracasso. “A tendência do Estado é voltar a responsabilizar o sujeito. É o sujeito que não é um bom sujeito, é o sujeito que não trabalha como deveria. Essa política de retrocesso é geral, atingindo inclusive países que tinham avançado muito mais do que nós no tema da memória e da reparação, como Argentina e Chile. Países que tinham consolidado determinadas conquistas estão perdendo-as. A tendência à militarização é geral o que é muito preocupante, pois significa o retorno às trevas”.

E as trevas são alimentadas, entre outras coisas, pela ausência, por parte do Estado, de uma política de reconhecimento de seus crimes. “Na Argentina, tivemos militares que morreram na cadeia. Houve julgamentos que não ocorreram aqui no Brasil. A ideia da justiça no Brasil é muito falha. Tivemos torturadores citados nas comissões da verdade, mas nenhum deles se reconheceu como torturador e nenhum deles foi indiciado como torturador”, lembra Barbara Conte.