Sobre a rejeição do projeto de lei que regulava as “Cotas de TV”

Depois de mais de um ano, finalmente o deputado federal pernambucano Carlos Eduardo “Cadoca” apresentou seu parecer sobre o PL 755/2015, que trata das “Cotas de TV” do futebol brasileiro, na Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados (Cespo). O voto do parlamentar foi pela rejeição do projeto. E seu parecer foi aceito pela Comissão.

Por Emanuel Leite Jr*

Tv futebol

O deputado, que em abril deste ano foi expulso do PDT após ter votado a favor da reforma trabalhista do ilegítimo governo temer, alegou em sua justificativa que “durante a análise do mérito o mercado se regulou” após a entrada de uma empresa televisiva concorrente. Refere-se o parlamentar, embora em seu texto não nomeie as empresas envolvidas, à disputa do Esporte Interativo pelo mercado da chamada “TV fechada” com a SporTV e a reação da Rede Globo, que apresentou um novo modelo de distribuição dos recursos das vendas dos direitos de transmissão televisiva do Campeonato Brasileiro — popularmente chamada de “Cotas de TV”.

Além do mais, ainda não está claro como esta divisão proposta pela Globo vai ser aplicada aos diferentes contratos — TV aberta, TV fechada e pay-per-view. Lembrando que o Esporte Interativo concorreu com a Globo/SporTV apenas no mercado da TV fechada.

Recordo que em março de 2017, em texto intitulado “O novo modelo de “cotas” da Globo: um avanço estagnante”, alertei para o fato de os clubes brasileiros terem desperdiçado “a oportunidade de tornarem a distribuição dos recursos da TV mais próxima do ideal da “justiça como equidade”, preconizada por John Rawls.”.

Fui adiante na advertência, informando que a proposta da Globo mais se assemelhava ao modelo praticado na Liga Italiana, que tem, atualmente, a divisão mais desigual entre as cinco maiores ligas europeias. Disse, ainda, que tal modelo tem sido alvo de críticas de vários clubes italianos e que já se tem discutido a possibilidade de um projeto de lei que vise a aumentar a parcela dividida igualitariamente entre todos os clubes da Serie A italiana (tendo o modelo da Premier League inglesa como paradigma — liga que também era paradigma do PL 755/2015, cuja fundamentação e justificação eram baseadas em meus estudos acerca do tema).

Não me limitei, entretanto, à chamada de atenção em relação ao modelo proposto pela Globo e agora referendado pela Comissão do Esporte, que aprovou o parecer do deputado Cadoca. Escrevi, também, sobre a questão da livre concorrência do mercado. E esse ponto me parece importante ressaltar novamente, uma vez que o parlamentar, em seu voto, alude a conceitos liberais como autorregulação do mercado e autonomia dos atores nas negociações (aqui, implicitamente, referenciando-se à autonomia das vontades nas relações privadas) para justificar seu entendimento de que a regulação do estado seria inoportuna.

Em meu livro “Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização” eu me debruço sobre esta questão da autonomia das vontades nas relações privadas e trago à discussão a “eficácia horizontal e imediata dos Direitos Fundamentais”:

“Para esta teoria, os direitos fundamentais irradiam os seus efeitos nas relações entre particulares independentemente de intermediação legislativa, contudo, salvaguarda que é necessário observar fato a fato, pois a aplicação da eficácia direta tem que se analisada diante do caso concreto.
Ressalta esta teoria que o Estado deve intervir nos casos em que há desigualdade entre as partes da relação privada. Se houver igualdade fática entre as partes, a autonomia privada deve ser maior. Se houver uma desigualdade nas relações, o Estado deve intervir em favor da parte mais fraca, a fim de estabelecer um maior equilíbrio na relação.

O Estado, responsável pelos bens comuns, deve intervir nas relações privadas quando uma das partes é hipossuficiente.

No futebol brasileiro (…) existe também um abismo que separa um pequeno grupo de clubes de todos os outros clubes que compõem o cenário do futebol nacional. A isso denominamos “apartheid futebolístico”, a lastimável divisão de um grupo poderoso e privilegiado em detrimento de um outro, frágil e menosprezado.

Diante deste caso concreto, entende-se que a intervenção do Estado em favor da imensa maioria dos clubes de futebol brasileiros não é apenas necessária, é obrigatória. E esta intervenção, a fim de que os direitos fundamentais (princípio da igualdade) sejam aplicados, pode vir através do PL 755/15.

No Brasil não há a adoção de uma teoria, contudo a jurisprudência, de forma geral, tem adotado a teoria da eficácia imediata, por entender que ela é mais condizente com a realidade social do país. Neste sentido, inclusive, julgou o Supremo Tribunal Federal, no RE 161243/DF.”

Diante do exposto, discordo frontalmente da opinião do deputado que entende ser inoportuna a regulação do Estado “nesse momento”. Não me parece que seja oportuno o Estado se omitir nesta questão, uma vez que, como também já destaquei acima, o novo modelo apresentado pela Rede Globo é mais próximo do italiano (o mais desigual entre as maiores ligas europeias e por isso alvo de críticas no país) do que o do modelo inglês (que embora não se coadune integralmente com a teoria da justiça como equidade de John Rawls, é aquele que mais se aproxima daquele ideal), que é paradigma do projeto de lei agora rejeitado.

Ainda no que tange à defesa dos princípios liberais defendidos pelo deputado em seu voto, sinto a necessidade de salientar que o contrato defendido pelo parlamentar em seu parecer — “em outras palavras, os contratos assinados com os clubes, que vigerão a partir de 2019, promoverão maior equilíbrio entre os participantes da série A do campeonato brasileiro” — agride frontalmente os princípios do livre mercado. E explico.

Em março deste ano, no já referido texto, destaquei que a Comissão Europeia já se manifestou favorável às negociações coletivas, por considerar que preserva a igualdade e a competitividade. Além disso, a Comissão Europeia também sugere que os contratos tenham um período máximo de três anos, de forma a garantir a livre concorrência do mercado.

Pois bem, vamos por partes. Primeiro, o que temos no Brasil são negociações individuais, como era praticado na Espanha até que o Estado espanhol interveio através do Real Decreto-Ley 5/2015. A Comissão Europeia entende que as negociações coletivas tornam a “competição mais atrativa, uma vez que as equipes competem em um contexto de maior igualdade de oportunidades” e proporcionam “uma maior estabilidade financeira para as equipes de futebol, devido a uma melhor redistribuição dos dividendos da televisão”. O primeiro contrato coletivo celebrado na Espanha após a vigência da intervenção estatal representou um aumento de faturamento em cerca de €335 milhões, se comparado à última temporada com negociações individuais.

Portanto, o modelo de negociações individuais aplicado no futebol brasileiro, e referendado pela Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados, contraria o entendimento da Comissão Europeia que considera que para haver livre concorrência e seja assegurado um maior balanço competitivo é necessário que haja negociações coletivas. A propósito, no campo da economia do esporte a visão mais estabelecida é de que uma liga esportiva só assegura sua sustentabilidade a longo prazo se mantiver um equilíbrio competitivo (Borooah & Mangan, 2012; Evans, 2014; Goossens, 2006; Manasis, Avgerinou, Ntzoufras, & Reade, 2013; Oughton & Michie, 2004; Pawlowski & Nalbantis, 2015; Szymanski, 2010a, 2010b).

Ou seja, defender que haja negociação coletiva (como estava proposto no PL 755/2015) não contraria a autonomia das vontades nas relações privadas, pois significa defender o interesse dos clubes (que negociam os seus direitos de transmissão) na busca da obtenção da maximização do faturamento nos acordos. A própria legislação brasileira vigora neste sentido, afinal o art. 42 da Lei Pelé ao tratar do chamado “direito de arena” estabelece uma forma de Princípio da Solidariedade, cumprindo, inclusive, o disposto no art. 3º da Constituição Federal.

Em segundo lugar, o deputado Cadoca menciona os contratos que vigerão a partir de 2019 sem fazer referência ao tempo de duração dos contratos. Muitos dos novos acordos dos clubes com a Rede Globo vão até 2024, ou seja, com duração de seis anos. É preciso destacar a falta de transparência nesse ponto, pois nem a Globo nem a maioria dos clubes costumam revelar os detalhes dos acordos. O que sabemos é muito superficial, como revelado pelo diretor da Globo Esportes Pedro Garcia, em entrevista ao jornalista Rodrigo Mattos — “já fechamos, inclusive, com um desses que você citou [o jornalista havia citado Vasco, Botafogo, Cruzeiro e Corinthians] e com vários outros que não estão nesta sua lista, contratos que chegam até o ano de 2024, já no novo modelo” (https://rodrigomattos.blogosfera.uol.com.br/2016/02/23/globo-confirma-mudanca-na-divisao-de-cotas-de-tv-no-brasileiro-2019/).

Quando defende a autorregulação do mercado e a autonomia das partes nas negociações e, ao mesmo tempo, legitima os novos contratos com duração de seis anos, o deputado contradiz o seu próprio argumento. Isso porque contratos de longo prazo, como os novos acordos que vigerão a partir de 2019, representam, conforme posicionamento da insuspeita Comissão Europeia, uma ameaça à livre concorrência do mercado.

Em suma, o dia 29 de novembro de 2017 fica marcado como uma data triste para o futebol brasileiro. Pelo menos para aqueles que lutam por um futebol mais justo, igualitário e democrático.


*Emanuel Leite Jr. é doutorando em Políticas Públicas na Universidade de Aveiro (Portugal), bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pelo Centro Universitário Maurício de Nassau. Autor do livro “Cotas de televisão do campeonato brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização”, que serviu de base para o PL 755/