Alexandre da Maia: “Como será amanhã?”

 O que se pretende com este texto é analisar, a partir das leis aplicáveis ao caso e da jurisprudência firmada pela própria 8ª turma do TRF4, as linhas de raciocínio que podem ser desenvolvidas no julgamento de amanhã, que, independentemente do resultado, produzirá efeitos políticos imediatos.

Por Alexandre da Maia*

TRF-4 - Sylvio Sirangelo/TRF-4

Responda quem puder o que irá acontecer na decisão a ser tomada amanhã, em grau de recurso, pela 8ª turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) no processo criminal que tem como réu, dentre outros, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que em primeira instância foi condenado pelo juízo da 13ª Vara Criminal da Justiça Federal da Seção Judiciária de Curitiba. Pelo teor da sentença, Lula teria cometido crimes de corrupção e lavagem de dinheiro a partir de esquemas ilícitos estabelecidos na Petrobras no seio da Operação Lava-Jato, com ramificações específicas em alegados negócios escusos envolvendo a construtora OAS em obras nas refinarias Getúlio Vargas – REPAR, no Paraná e Abreu e Lima, em Pernambuco. Em face dos contratos celebrados, o ex-presidente Lula teria obtido suposta vantagem indevida ao receber da construtora OAS, de forma oculta, o tão falado tríplex do Guarujá.

O que se pretende com este texto é analisar, a partir das leis aplicáveis ao caso e da jurisprudência firmada pela própria 8ª turma do TRF4, as linhas de raciocínio que podem ser desenvolvidas no julgamento de amanhã, que, independentemente do resultado, produzirá efeitos políticos imediatos, como nos lembra o jornalista Sergio Montenegro Filho em seu blog Ordem do Dia.

A despeito dos argumentos apresentados pela defesa, a 8ª Turma do TRF4 deve entrar no mérito da decisão condenatória da 13ª Vara Criminal da Justiça Federal de Curitiba, pois em apelações criminais anteriores envolvendo casos da Lava-Jato, os três desembargadores, que são os mesmos a julgar a apelação criminal interposta pelo ex-Presidente, afastaram a possibilidade de existência de omissão de sentença, bem como de vício na investigação, nulidade processual, incompetência do juízo etc. Não afirmo que tais argumentos não sejam cabíveis, apenas que, em casos precedentes, como por exemplo no julgamento da apelação criminal 5045241-84.2015.4.04.7000/PR, pedidos semelhantes foram formulados e os desembargadores entenderam que eram descabidos. Não devemos esperar que algum aspecto alheio ao julgamento do mérito, por mais relevante que seja, venha a surtir efeitos no julgamento de amanhã.

Diante desse quadro, temos duas linhas de raciocínio que podem ser utilizadas pelos desembargadores João Pedro Gebran Neto, relator do caso, Leandro Paulsen, revisor, e Victor Luiz dos Santos Laus:

a) Fazer prevalecer a aplicação do art. 4º, § 16, da Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. Essa lei define o que é organização criminosa e disciplina elementos da investigação criminal, meios de prova etc. O dispositivo citado determina literalmente o seguinte:

“Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.”

Simplificando, não é possível, por vedação legal, condenar criminalmente o réu usando como meio de prova unicamente a colaboração premiada. Esse argumento foi utilizado para a absolvição do então tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, na citada Apelação Criminal 5045241-84.2015.4.04.7000/PR julgada pela mesma 8ª Turma do TRF4. O relator daquele caso, João Pedro Gebran Neto, foi voto vencido, por argumentar que, no caso de Vaccari, havia várias colaborações premiadas confirmando a autoria e a materialidade dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Mas os demais membros da 8ª Turma entenderam que, pela aplicação do dispositivo legal aqui mencionado, João Vaccari Neto não poderia ser condenado, já que a autoria e a materialidade dos supostos crimes pelos quais era acusado pelo Ministério Público Federal encontravam elemento probatório apenas em colaboração premiada. Vaccari foi absolvido por 2×1.

Recordando: João Vaccari Neto foi condenado em primeira instância pelo mesmo juízo singular e pelos mesmos crimes pelos quais Lula foi condenado, mas em processos distintos. No caso de Lula, o problema parece ser mais frágil para a condenação, já que a prova do alegado só estaria ancorada na segunda versão de uma única colaboração premiada, como tal a do então executivo da OAS Leo Pinheiro. Se a 8ª Turma do TRF4 aplicar ao caso, como o fez ao absolver João Vaccari Neto, o art. 4º, § 16, da Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013, mantendo a coerência jurisprudencial no plano interno de suas decisões, um resultado previsível seria o de absolvição do ex-Presidente pelo placar de 2×1, já que, no caso anteriormente citado, o relator entendeu ser possível condenar criminalmente um réu utilizando-se unicamente a colaboração premiada, mas numa situação em que várias colaborações diferentes confirmaram a autoria e a materialidade dos crimes. No caso de amanhã, em que a autoria e a materialidade só teriam sido confirmadas na segunda versão de um único colaborador, não sabemos como seria o seu posicionamento, mas parece clara a tendência de relativizar a aplicabilidade da Lei 12.850/2013 (art. 4º, § 16)

b) Utilização de “estratagemas” do direito estrangeiro, em geral distorcendo seu sentido original. Desde os tempos da utilização por aqui da “teoria do domínio do fato”, vimos que nosso direito tem a capacidade de buscar um ar de sofisticação em seu debate ao trazer elementos e conceitos da experiência de outros países para adaptá-los ao sabor do freguês. As bolas da vez, como bem nos alerta o professor da USP Rogério Arantes, são os estratagemas da proof beyond a reasonable doubt (prova além de uma dúvida razoável) e da willful blindness (cegueira deliberada), ambos já discutidos em processos envolvendo a Lava-Jato na 8ª Turma do TRF4, a mesma que proferirá o julgamento amanhã.

O primeiro estratagema da prova além de uma dúvida razoável envolve a relação entre a prova e as dúvidas que envolvem um caso, especialmente na esfera criminal, como agora. As provas trazidas superam a dúvida de que aquele fato delituoso ocorreu? As provas superam a dúvida de que aquela pessoa foi a autora daquele fato delituoso? Ou seja, o valor da prova, nas instruções que o Tribunal do Júri recebe no direito dos Estados Unidos, é maior na medida em que ela é capaz de superar essas dúvidas razoáveis quanto à autoria e à materialidade do crime. Se a dúvida persiste, o peso das provas diminui, já que elas não teriam superado a reasonable doubt, a dúvida razoável e, por conseguinte, as provas só passam a ser suficientes na medida em que venham a suplantar e “sobreviver ao teste da dúvida razoável”. Apesar dessa diferença clara, o que o relator do caso no TRF4, desembargador Gebran Neto, entende sobre o tema, já começa com o equívoco bem apontado pelo prof. Rogério Arantes: traduzir “beyond” por “acima”, e não “além de”. E isso não é apenas um problema de tradução. Diz o relator Gibran Neto na p. 99 do acórdão da mesma ação criminal 5045241-84.2015.4.04.7000/PR:

“Essa ‘prova acima (SIC) de uma dúvida razoável’ importa no reconhecimento da inexistência de verdades ou provas absolutas, devendo o intérprete/julgador valer-se dos diversos elementos existentes nos autos, sejam eles diretos ou indiretos, para formar sua convicção. Assim, tanto provas diretas quanto indícios devem ser considerados para composição do quadro fático que se busca provar
Além disso, a ‘prova acima (SIC) de uma dúvida razoável’ implica no firme convencimento acerca da ocorrência do fato e da culpa do acusado. Não é necessária a existência de certeza absoluta, porquanto esta seja praticamente impossível ou ao menos inviável. Entretanto, as evidências devem levar o julgador, para que possa ser emitido um decreto condenatório, ao firme convencimento da culpa, sendo que a dúvida deve levá-lo à absolvição”
 
Clara é a distorção da ideia original. O relator maneja o argumento da inexistência de verdades absolutas para justificar a utilização de fragmentos que podem estar desconexos e dispersos do processo e evidências que não são necessariamente provas para emitir a decisão condenatória. Ou seja, a falta de provas não seria um empecilho para condenar, como também esse juízo de convicções sem provas estaria acima das dúvidas porventura existentes, como se esse fosse o conceito de proof beyond a reasonable doubt.

A cegueira deliberada, também oriunda da experiência dos Estados Unidos, seria um estratagema para atribuir ao réu o comportamento de fingir desconhecer a origem ilícita ou as condutas criminosas antecedentes que vieram a gerar a obtenção de uma vantagem subsequente. Um exemplo típico seria o crime de lavagem de dinheiro, que envolveria um ato ilício anterior por meio do qual o criminoso obtém o dinheiro ilegalmente para ser “lavado” em algum negócio escuso posterior. Mas a utilização da cegueira deliberada deve envolver o somatório de muitas provas por meio das investigações oficiais de modo a mostrar de forma categórica que o alegado desconhecimento não se sustenta. Ou seja, a cegueira deliberada só encontra fundamentação na medida em que ela vem embasada em um arsenal probatório capaz de “encurralar” o réu.

Mas não se pode, na possível tentativa de utilização desse estratagema, argumentar ser cabível a cegueira deliberada frente à situação da fragilidade, anteriormente comentada, dos elementos comprobatórios dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro contra o ex-Presidente. Como bem asseverou o prof. Rogério Arantes, a cegueira deliberada não pode representar a miopia dos órgãos persecutórios do Estado. Se existem indícios de materialidade, a Polícia deve investigar, e a Polícia Federal tem toda a estrutura de pessoal, de equipamentos e de logística para isso. O Ministério Público Federal também dispõe de todos os elementos necessários para zelar pelos interesses da sociedade. Portanto, a pouca consistência dos elementos probatórios não pode ser contrastada com a tese da cegueira deliberada, que pede para sua utilização o seu exato oposto.
 

Acredito que, se a 8ª Turma do TRF4 for na linha da sua jurisprudência e da aplicação da lei, o resultado será 2×1 pela absolvição do ex-Presidente, vencido o relator João Pedro Gebran Neto. Caso os desembargadores venham a divergir do seu próprio posicionamento em casos análogos da Lava-jato, julgados de 2015 para cá, acredito que Lula será condenado pelo placar de 3×0, com a utilização pelos desembargadores dos estratagemas do direito estrangeiro com as “adaptações” acima expostas. Seja qual for o resultado, o mundo estará de olho, o que vai exigir um grau de fundamentação dos votos muito mais cuidadoso por parte dos magistrados.

Efetivada, no final do dia, a segunda hipótese, fica a pergunta: por que a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região modificaria o seu próprio entendimento? Se ela absolveu João Vaccari Neto pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro pelo fato de a condenação em primeiro grau estar lastreada apenas em colaboração premiada, ferindo o art. 4º, § 16, da Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013, por que seria diferente com Lula?

Há, talvez, duas respostas possíveis e compatíveis entre si.

A primeira delas, restrita ao âmbito do direito: não há uma vinculação obrigatória das Cortes de Justiça aos entendimentos jurisprudenciais, muito embora a aplicação da lei seja imperiosa, sobretudo em matéria penal. Caso a 8ª Turma do TRF4 não aplique o citado dispositivo de lei federal, ficaria configurada a possibilidade de interposição de recurso especial junto ao STJ.

A segunda, deixo como uma especulação: o nome de João Vaccari Neto não pretende estampar qualquer urna eleitoral no mês de outubro de 2018.

*Alexandre da Maia é professor e coordenador do curso de graduação da Faculdade de Direito do Recife – UFPE e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE