Afranio Jardim: Intervenção aprofunda insegurança jurídica e é inócua

O professor de Direito Processual Penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e promotor aposentado, Afranio Silva Jardim, afirma que a intervenção civil e militar, imposta pelo decreto do governo Michel Temer na última sexta-feira (16), é mais um retrocesso que agrava a insegurança jurídica no país, ameaçando direitos e garantias constitucionais.

Por Dayane Santos

Afrânio Jardim - Reprodução

“Não tenho dúvidas de que vivemos um retrocesso cada vez mais profundo das garantias constitucionais. E de forma inócua. Existe a violência criminalizada e a não criminalizada – que é a que mais incomoda as classes mais baixas da população, pois trata-se do transporte público, desemprego, etc. O que se quer, e é louvável, é que diminuir a prática de crimes, principalmente os crimes contra a pessoa. Mas isso está ligado a questão social”, disse ele, referindo-se ao que classifica de violência não criminalizada, provocada pelos cortes nos investimentos públicos nas áreas sociais.

“O crime patrimonial – furto e roubo – e o próprio tráfico para receber dinheiro, são crimes de pessoas que não têm recursos. Alguém já viu um empresário roubar um carro no meio da rua ou estourar um caixa eletrônico de algum banco? Não. São pessoas necessitadas de uma sociedade de consumo e dividida em classes”, explica.

Segundo o professor penalista, crime contra o patrimônio está diretamente ligado à questão social. “E se não resolver isso, não resolve as demais. O problema da criminalidade está ligado à injustiça social. A sociedade de consumo, do apelo ao consumo e a frustração que as pessoas têm de não poder participar disso tudo”, salienta.

“Então sacrifica-se garantias, que são fruto de um processo civilizatório que foram difíceis de se conquistar, em nome de um combate à criminalidade que não se mostra eficaz. Então, não vale à pena”, enfatizou Afranio.

Ele destaca que a intervenção prevista na Constituição é a de natureza civil. Mas a intervenção de Temer é também militar, o que é inconstitucional.

"Esse é um dos problemas do decreto. Na verdade, o general Braga Netto seria um "super" secretário de Segurança, com poderes amplos em relação à polícia militar, civil e sistema penitenciário. Mas seria uma função civil e teria, a rigor, apenas o comando dessas três instituições. Não poderia trazer com ele as Forças Armadas. Significa dizer que é uma intervenção federal civil e militar também", explica.

Mandados coletivos

O jurista também criticou a proposta do governo de impetrar mandados de busca, apreensão e de prisões coletivos. O ministro da Defesa Raul Jungmann chegou a falar sobre o assunto, destacando que as operações no Rio de Janeiro precisariam de mandados coletivos, que abrangessem áreas como uma rua ou até um bairro inteiro. Diante da enxurrada de crítica, o governo decidiu recuar.

“Esse nome coletivo já é uma artimanha para esconder o que são na verdade esses mandados: genéricos”, repeliu.

Afranio explica que o mandado de segurança coletivo é muito diferente da proposta apresentada pelo governo. De acordo com a interpretação da lei, coletivo teria o sentindo de “vários”, ou seja, várias pessoas podendo impetrar um mandado de segurança. “Na verdade, o que o governo quer é um mandado de segurança genérico, o que bate de frente com o Código de Processo Penal, o que se revela uma artimanha para ocultar a realidade”, frisa.

O professor reforça que a Constituição garante, em seu artigo 5º como direito fundamental, a inviolabilidade de domicílio, ou seja, não se pode entrar no domicílio sem um mandado, apenas em caso de flagrante delito, prestação de socorro e desastre.

“Quem disciplina a questão do mandado de busca e apreensão é o Código de Processo Penal, que estabelece que o mandado tem que ser específico”, aponta Afranio, referindo-se a exigência da lei de que o mandado tem determinado o endereço e o que se pretende apreender, ou seja, o que se busca. "Evidentemente pessoas devem ser revistadas em determinadas circunstâncias sem humilhação ou constrangimento", pontua.

Tratando especificamente dos casos das comunidades do Rio de Janeiro, que em sua maioria são becos, vielas, sem ter como determinar nominalmente, o professor lembrar que é possível até considerar a discrição da área e uma especificação menos genérica.

“Essa descrição genérica, incluindo bairros e ruas inteiras não é permitida. Caso contrário, não teremos mais garantia nenhuma, uma carta branca para a devassa”, reforça.

Ele aponta porque a medida se trata de uma artimanha. “O ministro disse que precisa desse mandato, que chama de “coletivo”, porque às vezes uma pessoa a ser presa se refugia em outras casas. É um equívoco porque o mandado de prisão, que é diferente do mandado de busca e apreensão domiciliar, autoriza a prender em qualquer lugar e em qualquer hora, exceto no horário noturno e respeitando a garantia de inviolabilidade de domicílio. Então, se tenho um mandado de prisão para prender fulano e este está na casa A, esse mandado não precisa de G. Se fulano vai de uma casa para outra, pode-se entrar na casa e prender em flagrante”, disse.

Para ele, a proposta do mandado de busca e apreensão coletivo trocaria 6 por meia-dúzia. “Há uma opressão pelo tráfico, não temos dúvida. Mas se o tráfico é retirado e a polícia pode entrar nas casas sem qualquer determinação judicial específica, a insegurança passa a ser também muito grande”, enfatiza.

E acrescenta: “Temos policiais respeitosos e temos aqueles que vão entrando, batendo e abusando até sexualmente das pessoas. Esse é o problema. Se não puder prender na forma da lei, paciência. Não se prenda”.