Dupla exposição: uma leitura dos diários de Sylvia Plath

Quando a escritora Sylvia Plath tinha 20 anos, tentou se matar. Aos 30, conseguiu. 55 anos depois, sua vida continua a ser dissecada. São muitas as tentativas de encaixá-la em arquétipos simplistas: a mulher traída que morre por amor — ou por desgosto, dependendo da versão. A escritora incompreendida que vive à sombra do marido. A mulher ciumenta e descontrolada consumida por inveja. A feminista à frente do seu tempo. A órfã que nunca superou a morte do pai. A menina prodígio. A suicida.

Sylvia Plath - Divulgação

É provável que Plath tenha um pouco de todos os rótulos que recebeu, mas é impossível que se encaixe em apenas um. Como na metáfora da figueira em A redoma de vidro (1963), seu único romance, ela foi assombrada pela angústia de viver poucas vidas: queria viver muitas. A ironia é que conseguiu, ainda que na mão de outros, especialmente depois de morrer. Em A redoma de vidro, escreve:

Eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele conto.

Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, outro era Ê Gê, a fantástica editora, outro era feito de viagens à Europa, África e América do Sul, outro era Constantin e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remo, e acima desses figos havia muitos outros que eu não conseguia enxergar.

Me vi sentada embaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com qual figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés.

2017 foi um bom ano para os fãs de Plath. No Brasil, tivemos o relançamento de seus diários pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros, e o anúncio de que sua coletânea de contos, Johnny panic and the bible of dreams (1977), será publicada em 2018. Nos Estados Unidos, a exposição One life: Sylvia Plath foi inaugurada no Instituto Smithsonian, em Washington, trazendo peças como sua máquina de escrever, pinturas, fotografias e um punhado de seus cabelos conservados por sua mãe. Um novo filme baseado em A redoma de vidro, dirigido por Kirsten Dunst e protagonizado por Dakota Fanning, foi anunciado. Também houve a revelação de cartas inéditas para sua terapeuta, Ruth Barnhouse, com relatos de violência doméstica, bem como o lançamento do primeiro volume de suas correspondências, com quase 1.500 páginas trazendo as cartas escritas entre 1940 e 1956, ano em que conheceu seu futuro marido, o poeta Ted Hughes.

Os editores esperam que o lançamento dos diários seja uma oportunidade de devolver a voz à Plath, que assim poderia escrever sua autobiografia como um contraponto às tentativas anteriores de publicação do seu material com cortes e alterações. Mas a ideia de encontrar as respostas definitivas para tantas perguntas que rondam a história da autora, ou de encontrar confirmações para as dezenas – quiçá centenas – de certezas disseminadas, seria ingênua, já que enquanto diários dão vazão a exageros e ego, cartas costumam projetar uma imagem agradável ao receptor.

Até então, seu único volume de cartas publicado era Letters home (1975), uma coleção compilada e editada por sua mãe como uma tentativa de mostrar um lado menos sombrio da própria filha. O resultado, entretanto, alimentou o contraponto entre o conteúdo desse volume e o conteúdo dos diários, desenvolvendo um conceito de duplo na vida — e não na literatura — de Plath. Enquanto a autora criava uma personagem diante da própria mãe, muitos estudiosos defendem que, em seu íntimo, Plath a odiava. Sua monografia de formatura na faculdade, The magic mirror, aplicava o conceito de duplo ao analisar os romances Os irmãos Karamazov e O duplo de Dostoiévski.

Mergulhar em seus diários é uma experiência à parte, embora tão voyeurística quanto ler suas cartas. Há mais de meio século, Plath não poderia imaginar que estaríamos em uma era na qual o conceito de privacidade está desaparecendo: transmissões ao vivo infestam as redes sociais, bem como vídeos, fotos e posts formam um arquivo público da geração atual, que vive permanentemente disponível. Daqui a meio século, será nesse cemitério virtual que buscaremos a biografia de quem admiramos? Conversas em aplicativos poderiam ser impressas e publicadas em uma tentativa de conhecer a verdade de alguém? De certa forma, é esse o tipo de invasão descontrolada que fazemos cada vez que investigamos aquilo que Plath escreveu de maneira privada. Portanto, tanto as cartas quanto os diários se mostram escorregadios para quem busca uma compreensão definitiva.

Além de sua própria voz, há também dezenas de biografias: sobre seus anos antes do casamento (Mad girl’s love song, de Andrew Wilson); sobre o ano de 1953, que inspirou seu único romance (Pain, parties, work, de Elizabeth Winder) e tantas outras (Isis americana, de Carl Edmund Rollyson; Rough magic, de Paul Alexander; Method & madness, de Edward Butscher etc). Em 1994, a jornalista Janet Malcolm tomou como missão analisar as duas principais biografias, que em muito são contraditórias. De um lado, Sylvia Plath: a biography (1987), de Linda Wagner-Martin, que pinta a escritora com cores feministas e revolucionárias que ela mesma nunca assumiu, colocando Ted Hughes como um vilão imperdoável. De outro, Bitter fame: a life of Sylvia Plath (1989), de Anne Stevenson, escrita quase em conjunto com Olwyin Hughes, irmã de Ted e controladora do espólio de Plath, com sua visão bastante tendenciosa. O livro de Malcolm é um dos mais potentes sobre a mistificação da autora já escritos: a jornalista utiliza relatos de pessoas próximas da autora para tentar compreender tanto o embate entre biógrafos quanto a necessidade de respostas definitivas, transcendendo a vida da autora para lançar questionamentos sobre a função primordial do jornalismo ou das biografias.

Existem alguns momentos da história de Plath que se tornaram quase mitológicos, gravados na memória dos leitores. É o caso do último encontro com Hughes, dois dias antes de morrer, quando Plath queima a carta de suicídio que chegou cedo demais pelo correio. A mística envolvendo a escritora costuma seguir uma das direções: o suicídio ou o matrimônio. Especulações sobre como era ela quem datilografava os poemas de Hughes, adicionando essa tarefa aos cuidados com a casa e com os filhos, roubando o seu tempo de trabalho em prol das obrigações domésticas; trechos inteiros dos diários em que descreve impressões do marido, alto, grande, moreno, magnético, “um Adão com uma voz que lembrava uma trovoada de Deus”; a história da mordida que Plath dá no rosto de Hughes quando se conhecem, em 1956, tantas vezes recontada. A constante batalha entre o que ela queria ser e o que acreditava que deveria ser, principalmente manifestada na antítese escritora versus esposa, se apaga quando a maior parte do que encontramos sobre ela se torna concreto demais.

O que os diários, as cartas e os ensaios têm de mais precioso foge do que se costuma buscar quando se pensa em Plath: o que importa não são os supostos fatos, remontados um atrás do outro como uma sequência de vida ordinária, utilizados por muitos de forma amadoramente freudiana, mas sim a escrita, as reflexões, as digressões. Os diários são menos valiosos pelos episódios narrados e mais pelas ideias expressas.

Embora existam muitas adaptações audiovisuais sobre a vida de Plath, estamos órfãos de bons retratos. O filme mais conhecido sobre a sua vida é Sylvia (2003), com Gwyneth Paltrow no papel central, e é um desserviço. Se o arquétipo de feminista não é preciso, o de moça alienada que vive para o amante também não é. Foi no Brasil que uma das representações artísticas mais bem sucedidas talvez tenha ocorrido: Pulso (2016) é uma peça de teatro do grupo de criação e pesquisa cênica Vulcão. Protagonizada por Elisa Volpatto e dirigida por Vanessa Bruno, o acerto começa na concepção de sua dramaturgia: o texto inteiro é tirado de relatos, entrevistas, poemas e cartas da autora. Na contramão de buscas aceleradas por explicações e respostas, a peça freia, diminui a velocidade e direciona os holofotes pra onde eles devem ir: são as perguntas que interessam, não as respostas.

A importância da publicação de suas cartas e de seus diários é inegável. Para seus leitores, pesquisadores e para quem se identifica com a personagem complexa que precisa se haver com uma depressão grave em A redoma de vidro, dividida entre a tentativa de ser uma boa moça, seguindo os padrões vigentes, e o desejo de buscar seu próprio caminho, é reconfortante estar de novo em contato com a sua voz. Podemos imaginar Plath sozinha na faculdade em Smith ou Cambridge, ou no apartamento pequeno de Londres escrevendo no final da noite ou nas primeiras horas da manhã, colocando seu coração em palavras com uma habilidade que poucos têm.

Nesses momentos conflituosos, quando reconhece que, embora não fosse plenamente feliz, conseguia estar contente, nos aproximamos não do mito, da grande escritora e da poetisa premiada, mas de quem foi Sylvia Plath.

Como no título de seu romance inacabado, talvez só possamos ter acesso à sua imagem de forma borrada e imprecisa, a uma imagem que oscila entre a dualidade que foi parte importante de sua verdade em vida — tal qual uma fotografia em dupla exposição.