O assassinato de Marielle Franco ou, a metáfora de um país perverso

O assassinado da vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes, é um daqueles fatos que nos desperta tristeza e indignação. Não por seu ineditismo ou excepcionalidade, mas por revelar de forma crua, inequívoca, o que se tornou o Brasil: um país onde o ódio tem colocado em risco não só a democracia, mas qualquer esperança civilizatória.

Por Maria Valéria Duarte de Souza *

Marielle Franco - Foto: Guilherme Silva/UJS Brasil

O recurso ao extermínio de pessoas ou grupos considerados inferiores, inconvenientes ou que representem uma ameaça aos interesses de poderosos tem sido largamente empregado nessas terras. Assim, lutar pela defesa dos mais elementares direitos tem sido uma atividade de altíssimo risco em um país acostumado com a violência e a banalização da vida, decorrente, em grande parte, dos séculos de regime escravista onde matar índios, negros, pobres, mulheres era algo naturalizado, “incorporado à paisagem” nesse país que, inacreditavelmente, construiu seu imaginário coletivo como sendo um “país pacífico”. 

Há, porém, no assassinato de Marielle e Anderson um aspecto que coloca definitivamente por terra esse mito de um país pacifista, onde a violência seria um ponto fora da curva; um desvio praticado por pessoas de mentes degeneradas. Trata-se dos autodenominados “cidadãos de bem”, cristãos, honestos, cumpridores de seus deveres e conscienciosos contribuintes, não veem a si próprios como pessoas violentas. No entanto, desde que a notícia do assassinado da vereadora Marielle Franco ganhou o mundo e provocou a indignação mesmo naqueles que não comungavam com suas posições políticas, uma verdadeira rede de difamações e agressões dirigidas a sua pessoa tomou conta das redes sociais. Nessas tentativas de difamação existe um mar de notícias “fake” tentando desqualificar e vítima, evidenciando a natureza eminentemente política deste assassinato. Mas, nossa preocupação não deve ser apenas com o “fake”, seja ele na forma de notícias ou de perfis falsos disseminando o ódio. Esses perfis, criados por empresas pagas por facínoras acovardados e que, desde a conspiração que, com o largo respaldo de grupos midiáticos, colocou os atuais golpistas no poder, foram transformados em trincheira para os que perceberam que a disseminação do ódio possui um incrível poder mobilizador. Essas notícias e esses perfis falsos, fazem, é claro, um grande estrago e são inimigos da democracia. Mas, preocupante mesmo é saber que, na trilha desses “fakes” há uma multidão de pessoas reais, pessoas comuns, os tais “cidadãos de Bem”, que não sentem o menor pudor, o menor constrangimento em expressar sua aprovação a um ato de extrema violência sob o argumento moralista de que a vereadora era “defensora de bandidos” – em alusão à sua origem na favela da Maré, e a sua militância pelos direitos humanos das populações que habitam as comunidades populares do Rio de Janeiro. 

A culpabilização das vítimas não é uma estratégia nova. Trata-se de uma deturpação fundada em concepções moralistas tenta fazer crer que a violência sofrida por alguém cuja conduta não está alinhada com padrões dominantes, é uma violência merecida. Basta conferir os frágeis argumentos daqueles que cometem crimes como o feminicídio. Nesse e em outros casos são argumentos torpes, que visam a eliminação moral da vítima, mas que servem de base para a legião de idiotas, que, como disse o escritor italiano Umberto Eco, ganharam voz com as redes sociais. O fato é que, são posições que disseminam a intolerância e beiram o fascismo uma vez que naturalizam o extermínio do diferente, ou simplesmente, daquele que manifesta uma outra opinião. 

A violência é sempre algo lamentável, seja de onde vier, seja contra quem for direcionada. Banalizá-la é atentar contra qualquer esperança de construirmos uma sociedade minimamente civilizada e naturalizar a barbárie, permitindo sua ampliação até o desvario, contra quem se expresse politicamente para defender suas convicções. 

As mortes brutais de Marielle e Anderson não podem ser banalizadas, ou seja, não podem ser tratadas como um fato envolvendo apenas a esfera da segurança pública . Trata-se de um crime político, cometido por razões políticas e que escancara toda uma cultura do ódio que tem ganhado cada vez mais espaço.

Nesse sentido, o assassinato de Marielle, claramente premeditado, constitui-se na metáfora de um país perverso que teima em querer eliminar não apenas corpos, mas também, ideias. Os atiradores ceifaram a vida de Marielle não queriam apenas silenciar sua voz, mas também eliminar suas ideias e mandar um recado para todos aqueles e aquelas que ousarem trilhar o caminho da indignação diante das injustiças. Uma parte do serviço sujo já foi feita; a outra parte está sendo realizada pelos pacatos cidadãos que, sob o véu do anonimato utilizam as redes sociais para desqualificar a luta de Marielle que é a luta de todos e todas que defendem um outro projeto de país, radicalmente diferente do modelo que nos tem sido imposto quer pela força, quer pela fraude. 

Superar a perplexidade e o desalento diante de tal truculência e continuar a luta, eis a melhor homenagem que poderemos prestar a Marielle e a todos e todas que sucumbiram vítimas da barbárie. Que suas mortes não tenham sido em vão.