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1964 pelas lentes de Fellini

Eu tinha doze anos em 31 de março de 1964. As lembranças que marcaram uma geração de brasileiros não possuem nenhum romantismo, apenas dor e desejo de reparação e justiça. Para mim, uma criança na época, elas são imagens fragmentadas como as do filme Amarcord, do cineasta Federico Fellini.

Por Ronaldo Correia de Brito*

Amarcord - Divulgação

Tanto na cidadezinha italiana de Rimini, como no Crato, dois meninos assistiram ao espetáculo do fascismo, sem compreender o que se passava. Em Rimini, os sinos das igrejas tocavam pela chegada da primavera e pela visita de Mussolini. Na minha cidade, mandaram tocar os sinos em louvor ao golpe militar, que bania o perigo do comunismo ateu. E na visita do marechal Castelo Branco, a Igreja e a Prefeitura do Crato ofereceram um banquete das arábias ao cearense ditador e sua comitiva.

No dia 13 de março, meu pai ouvira o comício da Central do Brasil, num velho rádio Philips, que antes funcionava a bateria. Lembro os discursos de Arraes, Brizola e João Goulart, pois o rádio ficava junto de minha rede, e eu não conseguia dormir com o barulho. Achei a voz de Brizola parecida com a dos profetas de Juazeiro do Norte. Os personagens da cena política brasileira não significavam quase nada para mim, mais ocupado com os banhos nas nascentes do Cariri, o cinema e as revistas em quadrinhos. Minha mãe, sempre temerosa de tudo, acendia velas para Nossa Senhora Aparecida, uma imagem de porcelana que ganhei de uma tia, quando fiz a primeira comunhão.

Meu pai, um udenista fervoroso, votara em Jânio Quadros para presidente e, durante a campanha política, usara uma vassourinha dourada, presa ao bolso da camisa. Tomou um porre no dia em que saiu o resultado da eleição. Foi a primeira vez que eu o vi embriagado. Minha mãe, como todas as esposas da época, votava em quem o marido indicasse e preocupava-se apenas com a administração da casa, de sete filhos, um irmão solteiro, dois sobrinhos e três empregadas, todos sustentados por meu pai. Política não era assunto de mulheres.

Prenderam nosso vizinho Dedé Alencar. Ele pôs na vitrola um disco da campanha de Miguel Arraes para governador de Pernambuco, e deixou que tocasse o dia inteiro. Falaram que era comunista, mas nunca foi. Vivia ocupado com o comércio de farinha de mandioca, num armazém perto da estação de trem. Soltaram Dedé no começo da noite. A mesma sorte não teve um bancário de nossa rua. Levaram o rapaz de manhãzinha, quando passávamos pro colégio, e nunca mais tivemos notícia dele. A esposa nervosa e chorando perguntava aos curiosos se nunca tinham visto um homem honrado sendo preso.

Havia muito alvoroço em torno da casa de D. Benigna, mãe de Miguel Arraes, uma casa sertaneja de portas sempre abertas, onde todos eram bem recebidos, proseavam e enchiam a barriga. As irmãs do governador de Pernambuco cantavam no coro da igreja de São Vicente, onde eu assistia missa. Dona Anilda, a mais velha, foi minha professora de francês e um dia me passou uma reprimenda porque falei que o hino do Brasil era mais bonito que a Marselhesa.

Pairava sobre as pessoas interessantes do Crato a aura de comunista. Ninguém falava com elas, para não ficar suspeito. Igualzinho ao tempo da epidemia de peste bubônica na cidade. Foi no começo do século 20. Prendiam os suspeitos da doença, levavam para um hospital improvisado e de lá eles nunca retornavam. Algumas pessoas também desapareciam sem deixar rastro, igualzinho aos empestados.

Nem sei que fim levou os jogadores de gamão com seus copos de conhaque, ocupados no jogo e conversando sobre política. Cochichavam que todos eram comunistas, e eu nunca alcançava o significado desse comentário. Também não compreendia o que fosse ser burguês. O habitante de um burgo? A cidade e seus personagens enchiam minha cabeça de fantasias. E o revendedor de cigarros? E o dono da sapataria, com um eterno palito entre os dentes? E as duas professoras gaúchas, aparecidas de uma hora para outra?

Nós, meninos, para quem as notícias tardavam nos jornais do cinema, compreendíamos vagamente a “Revolução”, o nome que o Regime militar inventou para o golpe e os anos de horror. Havia as novelas de rádio, sempre doutrinárias. Havia a “Aliança para o Progresso”, cujo símbolo era duas mãos apertadas, uma brasileira e uma americana. Os gringos que financiaram o golpe mandavam esmolas de roupas velhas, grandes demais para os nordestinos nanicos, e alimentos, que o bispo diocesano dava aos pobres, quando não vendia. Sonhava-se com a visita de John Kennedy e sua esposa Jacqueline, e com o tricampeonato no futebol.

Somente em 1968, enxerguei de perto o lado truculento de 64. As lentes da câmera se modificaram e fotografei estudantes sendo presos e jogados dentro de camburões, em Fortaleza. Em 1969, quando vim morar no Recife, compreendi o significado da expressão “tempos sombrios”. Foi o ano em que assassinaram o Padre Henrique, assistente do arcebispo Dom Hélder Câmara, e balearam o estudante de engenharia Cândido Pinto. Em 1970, quando já estudava medicina, nosso professor de anatomia nos ameaçava com o IV Exército, em plena sala de aula. Respaldado no terror e na ditadura, ele procurava nos manter submissos. Eu já não era mais criança e começava a ver a realidade sem poesia, através de outras lentes. Mas essas são lembranças dolorosas, sem humor nem inocência, bem pouco fellinianas.