A defesa política do BNDES

O BNDES tem enfrentado diversas situações que prejudicam fortemente sua capacidade de cumprir a missão para a qual foi criado, há quase 66 anos. 

Por João Barbosa de Oliveira*

Fachada do BNDES

A primeira que se deve mencionar é a mudança na remuneração de sua principal fonte de recursos, com a substituição da TJLP pela TLP, que na prática elimina a utilização do FAT como instrumento básico da sua atuação como banco de desenvolvimento, sem que haja substituição por outro, como isenção fiscal de suas operações de crédito, por exemplo.

Em segundo lugar, destaca-se a devolução dos recursos aportados pelo Tesouro Nacional, de R$ 100 bilhões em 2016, mais R$ 50 bilhões em 2017, com previsão até agora de mais R$ 130 bilhões para 2018, sob a justificativa de colaborar para a redução da dívida pública. Essa justificativa não resiste à mais básica análise de finanças públicas, uma vez que essa devolução permite ao governo reduzir a dívida pública bruta, mas não tem nenhum impacto sobre a dívida líquida (assim como também não teve o aporte dos recursos, pois feitos em forma de dívida do BNDES para com o Tesouro), que é o conceito relevante, conforme ensinam os livros básicos de finanças públicas adotados em qualquer curso de graduação em economia.

Em terceiro lugar, temos vivenciado a criação de controles e exigências para se aprovar operações cada vez mais complexas e difíceis de atender. Estamos sob a tutela de órgãos de controle como TCU, CGU, Bacen etc., que extrapolam a sua atribuição legal ao determinar qual a política que o BNDES deve adotar, como é flagrante no caso do apoio à exportação de serviços de engenharia.

Dezenas de colegas foram vítimas de condução coercitiva, o que coloca as áreas operacionais do Banco em posição totalmente defensiva, paralisadas pelo medo. O resultado é uma migração maciça de funcionários das áreas operacionais para as áreas meio, a redução da capacidade da instituição de fazer operações de forma ágil e total desincentivo à criação de formas ou estruturas operacionais minimamente inovadoras.

Finalmente, passamos por dois processos de re(des)estruturações em menos de dois anos, o que desorganiza o dia-a-dia da casa e dificulta a manutenção das atividades em seu curso normal.

Em suma, estamos entregues a uma verdadeira Operação Desmonte, liderada por um governo cleptocrático, que tem promovido uma desconstrução da democracia (a avaliação não é minha, é do cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, exposta no programa Entre Vistas, do jornalista Juca Kfouri1) e cuja taxa de aprovação nas pesquisas de opinião tem variado entre 3 e 6%.

Um governo que representa interesses contrários ao desenvolvimento do país, que tem promovido reformas que inviabilizam o Estado como indutor ou líder de qualquer ação positiva para os interesses nacionais.

Esse movimento foi um pouco amenizado pela postura do presidente que acabou de sair, que teve a coragem de enfrentar a área econômica do governo (liderada por um banqueiro americano) em relação à TLP e à devolução de recursos ao Tesouro, mas que por outro lado deu continuidade a um processo de planejamento estratégico que parece ter como objetivo preparar o Banco para uma realidade de país desenvolvido, como se, apenas por que as taxas de juros estão baixas, o desenvolvimento fosse acontecer por geração espontânea, sem a necessidade de formulação de uma estratégia nacional de desenvolvimento que contemple a atuação do BNDES como verdadeiro Banco de Desenvolvimento. Estamos reinventando o Banco de modo a afastá-lo da sua missão, adotando uma lógica e critérios eventualmente adequados às corporações privadas, mas que de modo algum fazem sentido em uma instituição pública.

Dentro desse contexto, a chegada do novo presidente parece indicar que o processo seja fortalecido, em especial em relação à devolução de recursos ao Tesouro.

O que pode nos dar esperança de reunir condições de reagir a esse desmonte e de alguma forma revitalizar o Banco como indutor do crescimento da grande indústria, da infraestrutura e dos investimentos em setores de alto conteúdo tecnológico é o fato de que esse ano o país vai eleger um novo governo. E essa é uma oportunidade que não temos o direito de desperdiçar. Precisamos aproveitá-la para fazer uma defesa política do BNDES e do Desenvolvimento Econômico perante a sociedade. E com o termo sociedade não me refiro aos grupos que controlam a grande mídia e seus sócios do mundo das finanças que dão sustentação ao atual governo e aos excessos dos órgãos de controle em sua ação de desmonte do Estado brasileiro. Com o termo sociedade me refiro à população em geral, aos eleitores que votarão em outubro, e que estarão mais atentos aos debates que certamente surgirão durante o processo eleitoral.

É preciso que o BNDES participe ativamente desses debates e construa espaços para mostrar ao eleitor comum que as políticas liberais não vão levar o país a ser desenvolvido, nem mesmo tanto quanto Portugal (se é que se pode considerar Portugal um país desenvolvido). E mostrar aos candidatos que esse eleitor médio anseia por uma estratégia que aponte para o Brasil um futuro de país verdadeiramente desenvolvido.

Um ponto de partida para construir um discurso pró-desenvolvimento que possa ser entendido e apoiado pela sociedade talvez seja olhar um pouco da história do desenvolvimento brasileiro. No período de 1930 a 1982, o Brasil saiu de uma economia basicamente agrário-exportadora para ser uma das 10 maiores economias do mundo, com uma estrutura produtiva industrial das mais diversificadas do mundo.

Do ponto de vista político, é importante destacar que o país teve durante esse período governos de diversos tipos: ditadura varguista; governos eleitos democraticamente, uns mais conservadores outros mais progressistas; ditadura militar etc. Mas todos eles tiveram que pensar formas de promover o desenvolvimento econômico, pois essa era uma ideia hegemônica na sociedade, independente do caráter específico de cada governo.

Esse processo teve, a partir 1952, a importante participação do BNDES, que cumpriu então sua missão de forma extraordinariamente bem-sucedida. Nas suas três primeiras décadas de existência, o Banco ajudou a promover o desenvolvimento industrial e da infraestrutura econômica brasileira, que resultou em altas taxas de crescimento econômico (média anual de 6,8% ao ano entre 1952 e 1982), tendo sido participante ativo dos diversos planos e políticas de desenvolvimento estabelecidas pelos governos do período.

No início da década de 1980, no entanto, a economia brasileira sofreu duro golpe com a crise da dívida externa, o que levou ao predomínio das preocupações com a situação de curto prazo, prejudicando fortemente o esforço de planejamento e de formulação de políticas de desenvolvimento. Foi a chamada década perdida, na qual a taxa média de crescimento foi de apenas 2,0% ao ano (entre 1982 e 1992), inter-rompendo-se assim a trajetória de forte crescimento do período anterior.

A partir da década de 1990, isto é, nos últimos quase 30 anos, o panorama político se modificou radicalmente. Cessou a hegemonia do desenvolvimentismo e passaram a predominar na política nacional (e mundial) as ideias de caráter neoliberal, segundo as quais o Estado deve interferir o menos possível nos rumos da economia. Assim, o que se viu foi um abandono da própria noção de planejamento e da própria noção de que faz sentido pensar em desenvolvimento como uma estratégia nacional.

Nessas circunstâncias, não é de surpreender que o BNDES tenha se afastado de sua missão original e passado a atuar na dependência da demanda que lhe trazem as empresas privadas. É da lógica da ideologia liberal o entendimento de que o mercado (leia-se as empresas privadas) é o grande mecanismo de escolha e determinação das alocações de recursos econômicos. Assim, deixa-se as empresas atuarem de acordo com seus interesses e espera-se que o desenvolvimento econômico aconteça por geração espontânea.

Infelizmente, não é assim que acontece na realidade. A história não registra em nenhum país algum processo duradouro de desenvolvimento econômico que não seja fruto de escolha deliberada da sociedade e de planejamento e implantação baseada numa atuação decisiva do Estado.

No Brasil, essa crença (predominante de forma ultrarradical no atual governo) nos levou a mais duas décadas e meia perdidas, com taxa de crescimento econômico novamente muito baixas, de em média apenas 2,6% ao ano entre 1992 e 2017.

No atual momento, a construção de um discurso em favor do desenvolvimento e da importância de o país ter um banco como o BNDES é absolutamente decisiva para a instituição. Se seguirmos na atual trajetória, estamos correndo sério risco de ruína. Continuando a operação desmonte e seu efeito deletério sobre a capacidade do BNDES de realizar suas operações, em pouco tempo seremos questionados nos seguintes termos: Se vocês não são capazes de fazer financiamentos, para que serve o BNDES? Ou seja, retiram de nós as condições necessárias para operarmos e usam isso de pretexto para nos questionar a existência.

Portanto, necessitamos construir um discurso coerente de defesa política do BNDES e apresentá-lo sem medo à sociedade brasileira nesse período eleitoral. Um discurso que resgate a História aqui lembrada e tenha um olhar para o futuro do desenvolvimento, em uma nova realidade de uma economia de alta tecnologia e com complexos desafios ambientais.

Esse movimento, absolutamente fundamental para a sobrevivência do BNDES como banco de desenvolvimento, requer que o corpo funcional como um todo, e em especial os seus principais executivos, superintendentes e diretores que pertencem aos quadros da casa, tenham uma coragem ainda maior do que a que teve o ex-presidente, para sairmos das nossas posições de conforto e atuarmos politicamente, com toda força e apoios que pudermos reunir, em defesa da instituição e do desenvolvimento nacional.

* João Barbosa de Oliveira é economista do BNDES