Gustavo Guerreiro: A década decisiva

“Atualmente há dois grandes catalisadores que podem desencadear guerras catastróficas na próxima década: a crise econômica no Ocidente e as rivalidades de grandes potências (EUA e União Europeia versus Rússia e China). As tensões geopolíticas que estão fervendo agora atingiram seu ápice com os últimos ataques de Trump, apoiados por May e Macron, à Síria. A humanidade está prestes a se tornar novamente vítima de um ciclo histórico inexorável”.

Por Gustavo Guerreiro*

Bombardeio contra Siria - Foto: Hassan Ammar AP

O mundo frequentemente experimenta eventos excepcionais em determinados ciclos. Durante uma crise, seus aspectos contraditórios se manifestam violentamente, sendo essa a única forma possível e necessária de manterem uma relação dialética. Na maioria dos casos, as crises não são terminais, mas soluções bruscas que restabelecem transitoriamente a “normalidade”. Daí se extrai seu aspecto cíclico.

Há 80 anos, os EUA e a Europa, mergulhados na Grande Depressão, viam a Segunda Guerra Mundial prestes a eclodir. Apesar da traumática experiência histórica, são os mesmos aspectos conjunturais que hoje estadunidenses e europeus têm dificuldade de identificar.

Atualmente há dois grandes catalisadores que podem desencadear guerras catastróficas na próxima década: a crise econômica no Ocidente e as rivalidades de grandes potências (EUA e União Europeia versus Rússia e China). As tensões geopolíticas que estão fervendo agora atingiram seu ápice com os últimos ataques de Trump, apoiados por May e Macron, à Síria. A humanidade está prestes a se tornar novamente vítima de um ciclo histórico inexorável.

As investidas dos EUA, França e Reino Unido para destruir o que chamam de “bases sírias ligadas ao armazenamento e produção de armas químicas” são uma resposta unilateral, à revelia do Conselho de Segurança da ONU, a um ataque químico conduzido em Douma, área rebelde na periferia de Damasco. Coincidentemente ou não, apresenta-se a mesma variável que “justificou” a invasão ao Iraque por tropas aliadas, após o anúncio de um arsenal de armas químicas que nunca foi localizado. O drama desta vez é que o ataque químico foi efetivado. Seria essa uma nova maneira macabra de “justificar” intervenções militares?

Do ponto de vista geopolítico, o conflito na Síria pode representar o início de um ciclo bélico muito mais abrangente: a reconfiguração que opõe de maneira muito clara os interesses econômicos e militares entre as potências beligerantes.

A história mostra que um poder estabelecido nunca assistiu passivamente a um poder ascendente que ameaçasse seu lugar. E a China, em aliança com a Rússia, é quem melhor representa essa “ameaça”. Para o cientista político Graham T. Allison, de Harvard, em pelo menos 75% dos casos, uma potência estabelecida parte para uma guerra total com seu rival emergente. Esta é a chamada “armadilha de Tucídides”.

A ascensão da China ameaça o poder e a riqueza das grandes corporações ocidentais. As previsões apontam, de modo geral, que em 2028, a China se torna a principal potência econômica global. É algo que não ocorrerá passivamente.

Há muito mais indicadores da ascensão chinesa do que apenas o PIB. No final de 2017, o jornal especializado em análises “US News and World Report” classificou a Universidade de Tsinghua, em Pequim, como a melhor do mundo em ciência da computação e engenharia, destronando o poderoso MIT. Em áreas de alta tecnologia, como 5G, veículos autônomos, elétricos, drones de passageiros (carros voadores), impressão em 3D, inteligência artificial, supercomputadores, computação quântica e vários outros campos, a China ou é a melhor ou está em segundo lugar.

Aliada estratégica da China, a Rússia e ressuscitou o urso até então adormecido desde o fim da guerra fria. A Rússia frustrou ações imperialistas na Ucrânia e na Síria e sobreviveu a uma queda brusca no preço do petróleo projetada por Wall Street (de 115 para 45 dólares em apenas seis meses). Além de impedir o colapso econômico, conseguiu desenvolver mísseis balísticos hipersônicos que podem escapar dos sistemas de defesa de mísseis estadunidenses. E como se não bastasse, desenvolve com os chineses uma rede independente da Internet, com sistema bancário e sistema de cartão de crédito.

Diante desse xadrez geopolítico, o controle do Oriente Médio também significa controlar as vias terrestres e marítimas da Rota da Seda chinesa. O corolário de Xi Jinping para a China no século 21 teve início com o programa “Um Cinturão, uma Rota”, quando em visita ao Cazaquistão,sugeriu um projeto de cooperação econômica entre China, Ásia Central e Europa. Nesse sentido, a Síria, a Turquia e o Irã são decisivos para todos os lados da luta geopolítica.

Estão previstas atrozes guerras econômicas, de propaganda e híbridas contra a Rússia e a China nos próximos anos. Os organismos multilaterais serão rebaixados a meros coadjuvantes. Não é de se espantar que o bloco dos aliados tenha tentado resolver de maneira unilateral um suposto ataque que tem tudo para ser um subterfúgio cruel e macabro para impor interesses imperialistas já em risco.

O domínio imperialista dos EUA é um devaneio de sua elite arrogante. Não passa de um pálido ponto na história. É irracional querer impor uma hegemonia durante décadas sem levar em conta outras potências e os efeitos devastadores que um conflito possa causar. Assim, manipulados pela propaganda midiática, os estadunidenses e grande parte dos europeus ignoram esse dado geopolítico. A combinação de elites desumanas com massas ingênuas é extremamente perigosa. Com o enfraquecimento da democracia e a solapamento da diplomacia, criam-se as condições para um possível desastre nuclear na próxima década.

*Gustavo Guerreiro é membro da direção nacional do Cebrapaz e editor executivo da Revista Tensões Mundiais

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