Um concreto realismo mágico

O realismo da literatura latino-americana tem sido descrito como fantástico. Mas está solidamente ancorado na vida concreta em nossos países.

Por José Carlos Ruy

zambra ilustração - Felipe Pellisser Albergard

Pude ter uma compreensão um pouco melhor do que significa a expressão realismo fantástico em 2011 quando, numa viagem de carro entre a fronteiriça Pacaraima (RR) e Santa Elena de Uiaren (Venezuela) fui parado na beira da estrada onde queriam me mostrar uma pedra “presa”. Pouco maior do que um prosaico paralelepípedo, aquela pedaço de pedra havia sido a causa de alguns acidentes na estrada e, por isso, julgada e condenada à prisão.

Não pude deixar de me sentir em Aracataca, que inspirou a imaginária Macondo, o cenário criado por Gabriel García Márquez para o clássico Cem Anos de Solidão. Ou na mexicana Comala, onde Juan Rulfo fez transcorrer a história de Pedro Paramo. Ou na Santa Maria que o uruguaio Juan C arlos Onetti criou para suas histórias, sobretudo Juntacadaveres. Cheguei mesmo a me ver no meio da guerra dos escravos que, em 1804, conseguiu a independência do Haiti, contada pelo cubano Alejo Carpentier em O Reino deste mundo, onde o herói Ti Noel, baleado em combate, vira borboleta, pássaro, um ser que escapa da morte para inspirar a luta de seus companheiros.

A literatura do México. Colômbia, Peru, Cuba e Guatemala e as demais nações latino americanas está repleta de descrições semelhantes. Mesmo a brasileira. Basta recordar as histórias repletas da força do candomblé contadas por Jorge Amado de Capitães de Areia a Tenda dos Milagres. Ou o maravilhoso Os cavalinhos de platiplanto, de José J. Veiga.

O realismo dos escritores latino-americanos reflete a percepção do mundo – e dos problemas do mundo – próprias de nossa gente. Percepção que mistura a observação concreta com a visão, tornada concreta, de seres e situações que, imaginários, refletem a dureza da vida, e também suas belezas. Vidas marcadas pela opressão de oligarquias locais e da dominação estrangeira.

Realidade dura que García Márquez lembrou no discurso que pronunciou, em1982, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, e se referiu à “desproporcional realidade” de nossos povos. “Uma realidade não de papel, mas que vive dentro de nós e determina cada instante de nossas incontáveis mortes de todos os dias”, mas “que nutre uma fonte de criatividade insaciável, cheia de tristeza e beleza, da qual este errante e nostálgico colombiano não passa de mais um escolhido pelo acaso”.

“Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este, meus amigos, é o cerne da nossa solidão”, completou o mestre do realismo fantástico.