Martín Rangel e a nova geração de poetas que está no Tumblr

Nesta entrevista, o poeta mexicano MartínRangel fala sobre iniciativas de auto-edição em ambiente digital, diferencia o spoken word do slam e comenta “a solidão que se experimenta na internet, um meio que deveria nos tornar mais próximos, mas que no entanto nos aliena.”
Por Giselle Porto*

Martín Rangel - Divulgação
Nos anos 1970, como resposta ao bloqueio do mercado editorial e à censura da ditadura militar, surgiu no Brasil uma “cena” de poesia caracterizada por publicações independentes, lançamentos em festas e bares e saraus performáticos em que o poeta mais parecia um cantor de rock do que qualquer coisa. Até mesmo a esquerda institucional era vista como um sinal de “caretice”, razão pela qual Charles Peixoto declamava, em Perpétuo socorro: "o operário não tem nada com a minha dor/ bebemos a mesma cachaça por uma questão de gosto/ ri do meu cabelo/ minha cara estúpida de vagabundo/ dopado de manhã no meio do trânsito".

Enquanto cooperativas de poesia, livrinhos artesanais e revistas experimentais pipocavam de norte a sul do país, falava-se, na imprensa e na academia, em um momento de “vazio cultural”. O sociólogo Luciano Martins, por exemplo, chamava de reações "meramente reativas de comportamento" as atitudes contraculturais deflagradas pelos jovens que ficaram conhecidos como poetas marginais. O poeta e crítico literário Régis Bonvicino também dizia que eles tinham estabelecido como paradigma do fazer poético "o fácil, o diluído (…) uma semi-ideia articulada por rimas terminais pobres, eis o poema."

A proposta de escritores como Chacal, Cacaso, Ana Cristina Cesar e Chico Alvim não era entrar no circuito das grandes redes de livrarias, mas "transar mais diretamente com o leitor (…) recuperar talvez um certo caráter artesanal, a lição do cordel", como dizem Ana Cristina Cesar e Italo Morinconi Jr. em um artigo publicado no jornal Opinião, em março de 1977. Passadas quatro décadas desde então, hoje temos um movimento análogo ao desse período, no sentido de ser contra o bloqueio editorial e de viver uma experiência fundamentalmente coletiva – agora, não mais usando o papel como suporte, mas a internet como principal veículo e substituto da mídia impressa.

É aí que surgem iniciativas de auto-edição como as revistas digitais La Bodeguita (Recife), Shiva Press (São Paulo), Throll Thread (EUA), Malos Pasos Ediciones (México) e a Gauss Pdf (EUA), como tentativa de resgatar o caráter experimental da poesia, dialogando com as novas tecnologias e fazendo uso das redes sociais para desinstitucionalizar a língua.

O poeta mexicano Martín Rangel é um dos expoentes dessa nova geração que busca um leitor diferente do “leitor literário”: o – nas suas palavras – “consumidor de conteúdo multimídia”, público “consideravelmente maior que o do leitor de livros”. Martín começou a escrever poesia com 17 anos e hoje tem 5 livros publicados, entre eles “Emoji de algo morto”, que deve ser lançado em junho no Brasil pela Munganga Edições.

Na entrevista a seguir, ele diferencia o spoken word do slam ("batalhas de versos" ou "campeonatos de poesia falada" que vêm ganhando destaque nas periferias), fala sobre a divulgação em NewHive (rede social que permite o cruzamento de várias mídias, como texto, gifs, memes, vídeos, etc.) e comenta “a solidão que se experimenta na internet, um meio que deveria nos tornar mais próximos, mas que no entanto nos aliena.”


Leia a entrevista na íntegra:

Quando você começou a escrever poesia e por quê?

Comecei a escrever poesia quando tinha 17 anos. Nessa época ganhei um concurso nacional de criação literária no Técnico de Monterrey, o curso preparatório em que estudava. Comecei a escrever poesia como uma consequência natural de ter lido muito. Nessa época não tinha muitos amigos, passava quase todo o meu tempo livre lendo na biblioteca. Isso me transformou em um freak, mas também me deu muitas ferramentas para escrever posteriormente.

Você disse que também tem outras atividades: fazer rap e “spoken word”. É o mesmo que chamam de slam por aqui?

Não, é algo bem diferente do slam. No slam se utiliza a voz e o corpo. Minhas peças de rap e spoken word são bem mais virtuais. São performances virtuais que às vezes são apresentadas diante de um público físico e real, mas a maioria está dirigida ao público da internet. O rap foi uma consequência de experimentar gravando minha voz lendo poemas sobre faixas instrumentais que eu produzia, ou roubava da internet. Mas há certos tons próprios da poesia que não posso fazer caber dentro do formato rap, e vice-versa. É aí que entra meu trabalho com spoken word, que é um campo muito mais livre e aberto à experimentação.

Quantos livros você tem publicados, e que meio você usa para fazer a divulgação? São zines, e-books ou livros feitos por editoras?

A divulgação eu fiz sempre através das redes sociais. Eu publiquei 5 livros em papel até agora. O primeiro, Rojo, foi uma edição de autor. Depois vem O rugido leve (as canções de Ryan Karazija), que a Secretaria de Cultura de Hidalgo publicou, emoji de algo morto a editora Malos Pasos publicou e é um livro em formato zine. Logo publiquei um zine ainda menor chamado delirioamateur, que foi publicado pela editora Niño Down, com muito poucos exemplares. É um livro muito intimista, por isso decidiram não reimprimir ele. É uma raridade encontrá-lo, haha. À margem do mundo veio à luz através da Tiempo-que-resta Ediciones (em português, Tempo-que-resta Edições), a editora com o catálogo mais arriscado do México, ao meu parecer. Também publiquei um e-book chamado a total theory of the universe and the poetry within it que é uma peça de arte textual baseada em um fragmento de um livro do Ulises Carrión: A arte nova de fazer livros.

Neste artigo, você diz que “no mundo literário, o mercado é limitado” e que “há muito poucos leitores de poesia”. Quem lê poesia hoje? Existem mais poetas do que leitores?

Eu acredito que a concepção de que não existem consumidores de poesia é algo que está ficando para o passado. Parece que o trabalho que estamos fazendo com a literatura na internet tem atraído um certo tipo de leitor, um leitor diferente do leitor “literário”, mas consumidores de conteúdo multimídia nas suas telas. Ao levar a poesia para a tela, acompanhar o seu som, a voz e os visuais, entra-se nesse grupo de não-leitores que, me parece, é consideravelmente maior que o do leitor de livros. Acho que há mais poetas-leitores e leitores-poetas, porque a facilidade de se auto-publicar na internet evita o processo de triagem que as revistas de papel antigamente realizavam. Acho que isso é bom: que a poesia exista e transborde é o melhor que poderia acontecer com o mundo.

Nesse mesmo texto, você diz que “além de conhecer o trabalho de Canek Zapata e Horácio Warpola”, você começou a experimentar com “plataformas como Newhive e a chamada poesia expandida”. O que são essas plataformas, como funcionam?

São plataformas multimídia. Na não-virtualidade a gente só tem o papel, a voz, o corpo: um de cada vez. No newhive é possível mostrar vídeo, texto, GIFs, voz e música ao mesmo tempo. É uma plataforma que permite expandir a literatura para outras artes e gerar um objeto virtual multi-formato muito interessante.

Você gostou do formato da “poesia expandida”- você acredita que é a única, a melhor maneira de se expressar hoje – ou ainda é um experimento?

Creio que é a maneira de me expressar com a qual eu me sinto mais cômodx. Acho que já está deixando de ser um experimento e é algo cada vez mais cotidiano, entre os escritores da minha geração e nos leitores.

Em “Emoji de algo morto” aparecem muitas referências aos memes, à internet, a uma geração jovem. Por que isso chama tanto a atenção de outras pessoas? Esse é o “grande tema” (se é que há um) do livro?

Sem dúvida é o tema principal do livro, internet, a juventude, etc. Creio que chama a atenção das pessoas porque é muito imediato, natural e fácil de se relacionar com ele. No entanto, a terceira parte do livro tem um viés mais experimental, muito influenciado pelas pós-vanguardas latino americanas. Penso que é sobre a solidão que se experimenta na internet, um meio que deveria nos tornar mais próximos, mas que no entanto nos aliena. Por isso digo que a internet é um lugar solitário, como o inferno de Bukowski. Ou essa é minha perspectiva: no final, é o leitor quem decide.

Quais são suas outras influências (literárias, principalmente)?

Mira Gonzalez, Tao Lin, Eduardo Lizalde, Rubén Bonifaz Nuño, David Meza, Rasé, Augusto Sonrics, Alí Chumacero, Junot Díaz, Yuri Herrera, Britanny Wallace, Gustav Elijah Åhr, Salvador Novo, Amparo Dávila, Carlos Pellicer, Jaime Sabines, Gizeh Jiménez, Ashauri López, etc.

Você está familiarizado com o trabalho dos poetas marginais brasileiros dos anos 1970? Ana Cristina Cesar, Chico Alvim, Chacal, etc.

Não estava familiarizado com o seu trabalho, mas ao fazer uma busca no Google descubro que suas obras são muito interessantes. Parece similar, uma espécie de análogo ao movimento literário underground da Cidade do México. É uma bonita coincidência, você não acha?

Nesse texto, afirmam que você faz parte de uma geração de “novos poetas mexicanos que são verdadeiros animais devoradores de livros”. Tem uma cena aí?

Eu sou perigo para o meu cartão de crédito quando entro em uma livraria. Eu já cheguei a gastar o dinheiro da minha comida em livros. É como um vício do qual eu estou me livrando. Agora tenho um “dealer” de livros de segunda mão e só compro os livros raros que ele consegue para mim. Só li um de Roberto López Moreno, poeta mexicano envolvido com o movimento de vanguarda dos anos 1970 no México. Eu gosto de comer, então agora modero meu consumo de literatura para sobreviver. Sem contar todo tempo que passa enquanto consumo conteúdo na internet, outro dos meus vícios. Mas não me arrependo de nada, hahaha. Sobre eu ser um animal, sim, eu sou. Às vezes mais do que gostaria.

Conheça alguns poemas de Martín Rangel:

uma voz em minha cabeça disse ‘yolo’ e eu perdi todo o meu sorvete

o que deveria estar acontecendo não é nunca o que acontece é dizer
em vez de escrever ‘a neve cai em silêncio’
indicando que a neve cai do céu sem fazer nenhum som
escrevo ‘o silêncio cai sobre a neve’ e isso é impossível
o silêncio não pode se precipitar sobre nada
simplesmente invade as coisas como uma névoa
vinda de um lugar que é invisível e portanto ilocalizável
quem emite o silêncio que sobre a neve cai no poema?
na poesia acontecem coisas como esta o tempo todo
alguém bate à porta do seu subconsciente
e quando você vai abrir já não está mais lá
sobre o seu tapete de ‘welcome’ deixou uma caixa fechada
você abre a caixa e dentro há uma bomba
a contagem regressiva se inicia instantaneamente
você pensa no silêncio que cai sobre a neve
e pela janela aberta entra a melodia do caminhão de sorvete
tic toc tic toc a bomba em suas mãos
seus braços em movimento como a cauda de uma baleia
que volta a submergir depois de tomar um pouco
de ar
e a bomba que viaja pelos ares e aterrisa sobre a bandeja
com sorvete de limão
no caminhão dos sorvetes
não é o silêncio que cai sobre a neve
sobre a neve o que se precipita é o estrondo
o último e estridente grito da morte
o silêncio
agora você sabe
é apenas remanescente
de um estalo primitivo (big bang)
por segundos posterior à criação do universo
por milênios anterior à invenção da poesia

yahoo! weather

se dissesse que esta manhã faz calor em pachuca
(pachuca é a cidade onde vivo)
mentiria
revejo o clima no aplicativo de clima no meu celular
compartilho-a no twitter junto com uma selfie em que
um cobertor cobre metade da minha cara
em outros lugares quando faz frio alguém acende a lareira
mas não há lareiras aqui
muitas vezes me sinto como a lareira que me faz falta

estou sentado perto de você enquanto você produz chillstep em um aplicativo para ipad e usa meias da hello kitty e seu ombro esquerdo está sobre seu joelho esquerdo e sua mão esquerda sustenta seu rosto e seu cabelo cobre seu rosto quase por completo

quero caminhar pelo centro de todas as cidades com você
quero tomar café e ouvir mariah carey cantando músicas natalinas em
todos os cafés do mundo com você
escutar você produzir chillstep ao meu lado
até morrermos hipnotizados
quero destruir o mundo e voltar a criá-lo com você
por todas as ruas do nosso novo mundo
ressoaria seu chillstep
as pessoas dançariam o tempo todo
as pessoas caminhariam todo o tempo como se dançando
faria falta uma nova palavra para isso
“dançandando”
talvez
até que chegasse mariah carey com suas músicas natalinas arruinando tudo
ou nem mesmo destruindo o mundo e voltando a criá-lo
poderíamos evitar o natal
e mariah carey dançando por todos os lados
o mesmo não importaria
porque estaríamos juntos
o resto do ano
em todas as ruas
de todos os centros
de todas as cidades do mundo
dançando ao ritmo do seu chillstep
até morrermos hipnotizados

lote 20 bloco 22

assim como existe o termo “dor fantasma”
para nomear a dor que se ‘sente’ em uma extremidade amputada
deveria existir também o conceito de ‘espaço fantasma’
para nomear todos aquele lugares que já não existem
mas podemos vê-los
habitamos eles
e nos doem
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As traduções foram feitas por Italo Dantas e Victor H. Azevedo, a revisão é de Giselle Porto e Rubén Arriagada Amaya