Samuel Oliveira: os Comunistas e os Evangélicos

 

samuel oliveira

Recentemente três símbolos foram reunidos (a foice, o martelo e a cruz) num objeto dado por Evo Morales ao Papa Francisco, líder máximo da Igreja Católica, que tem dentro de suas divisões internas uma ala progressista. Mas o cristianismo tem uma outra vertente: a igreja evangélica, conhecida pelo conservadorismo e reacionarismo influentes inclusive nos rumos da política no nosso país. É possível então que os evangélicos, ainda que em partes, um dia também possam juntar a foice e martelo com a cruz?

O setor evangélico tem crescido de forma intensa no Brasil nas últimas décadas, sobretudo com o movimento neopentecostal, que se difere em questões teológicas e nas práticas litúrgicas das igrejas evangélicas tradicionais, mas que no seu conjunto, exibem no fundamento da maioria de suas denominações, posições conservadoras e reacionárias. Diferente da Igreja Católica, que apesar de também ter divisões em determinados aspectos, os evangélicos não têm uma igreja unitária. Na verdade, se fracionam em dezenas de denominações, das mais tradicionais às igrejas contemporâneas, muitas delas independentes.

As igrejas de maior porte como a Assembleia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, Mundial do Poder de Deus, Internacional da Graça, entre outras, são igrejas que dialogam cotidianamente com um número expressivo de fiéis brasileiros através de diversos canais, indo além dos encontros religiosos nas igrejas, como rádio, canais de TV’s, revistas e jornais. O número de fiéis evangélicos nos últimos anos aumentou exponencialmente e, ainda sendo a segunda maior religião no país atualmente, em 2014, os evangélicos já representavam cerca de 29% dos brasileiros, segundo o Datafolha. Esse grande número de seguidores é que sustenta a liderança de muitas figuras de grande expressão de opinião no meio evangélico e inclusive de muitas lideranças que ocupam a política de forma muito influente como temos visto no último período.

Em diversos momentos e experiências ao longo da história, houve uma distância entre os cristãos e os movimentos comunistas, muito por falta de percepção da similaridade entre a ideologia com a fé cristã e a incompreensão da necessidade do indivíduo, que deseja se conectar espiritualmente através da fé no imaterial. Do contrário, os setores liberais e o capitalismo vislumbraram um espaço vago nesse setor e o instrumentalizaram, criando hoje o que podemos considerar uma das armas mais fortes do capitalismo na sociedade pela intensidade da sua influência social. Os crescentes números citados de fiéis, só reforçam o vasto campo atingido por esse setor, com ideias vendidas através da fé individual de seus seguidores, mas que levam consigo um punhado de doutrinação incompatível com o verdadeiro cristianismo e que faz uma manutenção ferrenha do sistema capitalista na igreja evangélica. Isso notadamente se vê, por exemplo, com as pregações que estimulam o bem estar pessoal a partir do acumulo de capital, norteando desta forma a vida dos fiéis, mesmo tendo Jesus – o líder máximo das ideias cristãs e divindade a qual se presta culto – pregado à divisão de riquezas entre a parcela mais pobre da sociedade. Facilmente podemos ver que esses e outros temas, dos quais esses setores se apropriaram da igreja evangélica, fazem distorção teológica na leitura e compreensão histórica da Bíblia (livro guia do cristianismo), a fim de manipular as massas de fiéis de forma ideológica, deturpando totalmente a fé dos crentes.

Com uma idealização manipuladora feita nessa legião crescente na sociedade, o passo que esse setor da direita tem dado, é a ocupação dos espaços da política com líderes religiosos eleitos pela massa a qual doutrinam. O número da bancada evangélica, nos mais diversos espaços políticos, é altíssimo e crescente, fruto de um trabalho real de base que se faz de doutrinação política nas igrejas, construída a partir da fé numa ótica totalmente distorcida. Cada vez mais, os aspectos sociais têm sido deixados de lado na política para dar lugar às questões morais pois é o que sustenta como pilar principal essa crença distorcida no setor evangélico. Esse movimento é preocupante para os dois lados, tanto para nossa política, prejudicada com o enfraquecimento de suas estruturas necessárias, quanto para o movimento cristão, que tem sua essência devastada por ideias incompatíveis com seu sentido original.

“Por sorte” ou “graças a Deus”, ainda que de forma tímida, no último período também vimos crescer e tomar expressão um movimento evangélico contrário, sob uma lógica progressista. Isso se dá pela compressão de diversos pastores e líderes evangélicos que fazem uma leitura teológica óbvia acerca dos ensinamentos Bíblicos e de Jesus. A Bíblia sobre diversos direitos humanos. Jesus, por exemplo, foi um ativista por várias causas e defendia uma sociedade justa, igualitária e fraterna, e inclusive, era de igual modo aos movimentos sociais de hoje; perseguido pela classe conservadora e reacionária que, se fossem nos dias de hoje, taxariam no de comunista e o mandariam para Cuba. Apesar de não ter uma posição política declarada, nem ser o tempo para isso e não ter ideias de sociedades pensadas naquele período, Jesus viveu uma vida onde pregava contra a violência, pela paz, pela divisão de riquezas, contra modos de opressão… O que até sucedeu nas comunidades cristãs primitivas lideradas pelos apóstolos seguidores de Jesus e que se assemelham muito a uma organização social comunista. Por essa compreensão teológica natural, essas lideranças evangélicas que surgem, fazem o contraponto do setor majoritário conservador, mantendo a fé monoteísta com diferenças específicas dentro da religião. O setor progressista questiona e aponta a participação política dessa igreja reacionária como instrumento nítido de reprodução dos movimentos liberais e a contradição disso com os princípios verdadeiramente cristãos.

Além de líderes surgirem paulatinamente, as denominações evangélicas que se mantiveram afastadas dessa crescente parte evangélica doutrinada, aparecem alguns movimentos sociais para fazer o contraponto nas ruas e na política. Partidos progressistas passam a ter coletivos inter-religiosos com presença forte dos evangélicos críticos e o mesmo ocorre nas organizações dos movimentos sociais. Em 2016, durante o processo do golpe institucional, foi criada a Frente de Evangélicos Pelo Estado de Direito, que dialoga amplamente com o setor fazendo peso fundamental na disputa política e também teológica pela compreensão de uma sociedade justa e dos direitos humanos embasados sobretudo pela fé cristã, contrapondo o que é pregado equivocadamente na maioria das igrejas evangélicas. O posicionamento político desses movimentos tem sido muito importante nessa oposição ao setor evangélico majoritário, fazendo uma persistente crítica e criando novas perspectivas para os fiéis manterem a crença sem necessariamente estarem ligados às absurdas instituições existentes.

É possível ver que os principais motivos para o distanciamento político da cruz à foice e martelo, aos poucos passam a ser superados. Com esse movimento progressista que cresce entre os evangélicos podemos ver o quanto é possível esse setor identificar na política. O comunismo como algo muito próximo do que os direciona nas práticas de vida, que são os ensinamentos cristãos. Ao mesmo tempo, os comunistas também rompem ideias históricas de distância da religião e passam a compreender a liberdade individual e coletiva de culto e fé como um processo natural e particular dos indivíduos interessados da sociedade. Essas barreiras que são superadas podem garantir um processo importante e necessário para o futuro, bem como garantir unidade para a retomada do campo progressista na política e a defesa do Estado de Direito. O comunismo e o cristianismo são coisas diferentes, mas não são coisas distantes, pelo contrário, tem uma proximidade muito grande na ideia de sociedade, mas respeitando, obviamente, as particularidades do que cada um é dentro da sociedade.