Osvaldo Bertolino: Monteiro Lobato e o Partido Comunista do Brasil

Quando Luis Carlos Prestes foi preso, após liderar a insurreição de 1935 à frente da Aliança Nacional Libertadora (ANL), Monteiro Lobato estava em franca pregação petrolífera, mostrando que os males brasileiros poderiam ser sanados com o enriquecimento do país. Nutria pelo “Cavaleiro da Esperança" grande admiração, embora não o conhecesse pessoalmente.

Por Osvaldo Bertolino*

Monteiro Lobato

Lobato via em Prestes alguém que poderia materializar as suas ideias. Para ele, o Brasil precisava de um líder como Prestes para salvar a sua principal riqueza. Na década de 1930, Monteiro Lobato já era famoso pela produção literária e pela luta para provar que o Brasil era rico em petróleo. Segundo ele, no livro O Escândalo do Petróleo, escrito em 1836, até então o Brasil vivia em regime de compartimentos estanques.

A imensa extensão territorial do país e a falta de bons transportes fizeram os brasileiros serem regionais. Nasciam e morriam em um desses compartimentos e quando alguém desejava viajar corria para a Europa. As coisas começavam a mudar graça ao petróleo. O brasileiro já circulava mais, de automóvel ou de avião, e estava descobrindo o Brasil rapidamente. O país estava se transformando em uma grande coisa. Mas, dizia Lobato, existiam duas visões geológicas: uma paga para “engazopar” o público, outra para o uso interno dos trustes.

Aquele homenzinho de grossas sobrancelhas percorria o país, de Norte a Sul e de Leste a Oeste, pregando patriotismo. “Não temos petróleo? Falta-lhe (ao governo) em olhos o que lhe sobra em traidores vendidos aos interesses estrangeiros”, escreveu. Mas, afirmou Lobato, “havemos de dar olhos ao Brasil”. “Havemos de obrigá-lo a ver, a convencer-se da existência do gigantesco lençol subterrâneo. Se a fé move montanhas, a convicção rompe o seio da terra e arranca de lá os seus tesouros. Não sei, concluí em uma das minhas pregações, que sacrifício eu não faça para ver meu país arrancado à miséria crônica e elevado ao poder e à riqueza pela força mágica do maravilhoso sangue negro da terra”, asseverou.

Sem papas na língua

Impulsionado por essa ideia, em 5 de maio de 1940 ele escreveu uma carta ao presidente Getúlio Vargas expondo o que considerava a verdade sobre o problema do petróleo no Brasil. “O petróleo! Nunca o problema teve tanta importância; e se com a maior energia e urgência, o senhor não toma a si a solução do caso, arrepender-se-á amargamente um dia, e deixará de assinalar a sua passagem pelo governo com a realização da Grande Coisa. Eu vivi demais esse assunto. No livro O escândalo do petróleo denunciei à nação o crime que se cometia contra ela — e com a maior dor de coração vejo hoje que o oficialismo persiste neste crime, e agora armado de uma arma que não existia antes: o monstruoso tanque chamado ‘Conselho Nacional do Petróleo’. Doutor Getúlio, pelo amor de Deus, ponha de lado a sua displicência e ouça a voz de Jeremias. Medite por si mesmo no que está se passando. Tenho certeza de que se assim o fizer, tudo mudará e o pobre Brasil não será crucificado mais uma vez”, escreveu no início da carta.

Três meses depois, Lobato recebeu um emissário do presidente com um convite para que ele dirigisse um “Ministério de Propaganda”, que substituiria o “Departamento de Imprensa e Propaganda”, o famoso DIP. “Qual a finalidade do Ministério?”, indagou. “Ora, fazer propaganda do Brasil lá fora, a fim de atrairmos capitais estrangeiros”, respondeu o enviado de Getúlio. “Mas para isso não é preciso criar-se um Ministério. Basta constitucionalizar o país. Você acha que o capitalista estrangeiro, homem sabido, conhecedor profundo do mundo de negócios e de todas as nossas mazelas, irá inverter o seu dinheiro aqui, em nossa terra, unicamente por ter lido uns artigos meus de propaganda? Vamos mudar de assunto porque este não resiste nem sequer a uma pequena discussão”, retrucou.

Getúlio insistiu na ideia e chegou a convidar Lobato para um banquete na cidade de Campinas. Havia um lugar para ele ao lado do presidente da República, disse o emissário de Getúlio. O escritor respondeu que não era homem para banquete. Em 20 de março de 1940, às 14h30, Lobato foi procurado por dois investigadores de polícia, que lhe entregaram em mãos um mandado de prisão preventiva. Dali saiu escoltado como um criminoso vulgar para o velho casarão da Avenida Tiradentes, em São Paulo, Casa de Detenção e presídio político, onde ficou preso e incomunicável. Em 8 de abril, ocorreu o julgamento da prisão preventiva.

Lobato encarou a prisão como um grave sinal do que ocorria no país. Aos que o visitavam, deixava mensagens sarcásticas e irônicas. “Como tenho pena de vocês lá fora! Enquanto inúmeras preocupações os atormentam, eu aqui não tenho nenhuma. Tudo pago! Não tenho medo de ladrões, nem de assassinos, e o que mais importa: não tenho receio de ser preso”, disse certa vez. Quando lhe falavam em anistia, reagia com protesto. Não queria a anistia para ele, e sim para os presos políticos que ali, e nas inúmeras prisões do país, vegetavam pelo crime único de terem idéias e de por elas terem combatido. Dizia que quando saísse da prisão daria petróleo “a essa infame terra”. “Precisamos de muito petróleo para fazer uma imensa fogueira e assar esses tribunais de exceção”, protestou.

Sem papas na língua, dirigiu ao interventor paulista Fernando Costa um pedido de emprego para um ex-presidiário. Depois de enumerar todo o rol de crimes de que o candidato era acusado, tascou: “Vê o amigo que ele poderá ser muito útil ao Estado Novo.” O saci endiabrado que havia em Monteiro Lobato fez ele escrever uma carta ao general Júlio Horta Medrado Dias, presidente do “Conselho Nacional do Petróleo” — segundo o escritor o mandante da sua prisão —, repleta de passagens hilárias. “Bendito seja esse benemérito general, murmurei comigo ao ter conhecimento de que fora por sugestão dele que o Tribunal me prendia, isto é, me proporcionava a realização do velho sonho”, escreveu.

Má pontaria

A ironia atingiu um alto grau de acidez. “Passei nesta prisão, general, dias inolvidáveis, dos quais sempre me lembrarei com a maior saudade. Tive ensejo de observar que a maioria dos detentos é gente de alma mais limpa e nobre do que muita gente de alto bordo que anda solta. E também tive ocasião de receber inúmeras provas de amizade e solidariedade de excelentes amigos que nunca imaginei tivessem por mim tal estima. Fui leal. A todos fiz ver que a realização do meu sonho eu devia a uma pessoa apenas: o general Horta Barbosa, comandante superior do benemérito ‘Conselho Nacional do Petróleo”, provocou. Finalizou com um post-scriptum genial, dizendo que tomava a liberdade de enviar pelo correio “uma caixinha de bombons”, sobrados dos muitos com os que os amigos o obsequiaram. Os sentimentos que o animavam para com seu general benfeitor, disse Lobato, “são doces como esses bombons”.

Quatro dias depois de deixar a prisão, Lobato enviou outra carta a Getúlio. “Atirei no petróleo e acertei na cadeia, o que prova bem má pontaria”, ironizou. Em seguida, mandou nova carta ao presidente, na véspera do aniversário dele. “Amanhã é dia de seus anos. Quero dar-lhe um presente. Esse presente é uma idéia. Essa ideia é a seguinte. Assim como o governo formou a Companhia Nacional Siderúrgica com 500 mil contos de capital, por que não funda também a Companhia Nacional de Petróleo, com outros 500 mil contos de capital? Era o meio de ao mesmo tempo resolver os problemas do ferro e do petróleo, de igual importância”, escreveu. Ao contrário da primeira carta, escrita em caráter sigiloso, as demais Lobato mandou mimeografá-las e distribuí-las.

Aos que lhe pediam cautela, respondia: “Sou visceralmente imprudente e os anos não têm me modificado nisso. Os homens prudentes não sabem as delícias da imprudência.” Por motivos políticos ou pessoais, o Tribunal de Segurança Nacional (TSN) condenou Lobato a seis meses de prisão e ele voltou para a cadeia.

Ideias comunistas

Na prisão, ficou na mesma cela com o comunista José Maria Crispim. “Conheci Monteiro Lobato na prisão. Estava eu recolhido a um cubículo do ‘presídio especial’, na Casa de Detenção de São Paulo, sob um odioso regime de incomunicabilidade, quando foi mandado para o mesmo cubículo um homenzinho já grisalho, de face magra e ternosa. Era o grande escritor patrício que ali também estava pagando o crime de ser patriota e amigo do povo”, escreveu Crispim no jornal A Classe Operária. Segundo ele, Lobato havia enviado uma cópia de uma das cartas ao ministro da Guerra do Estado Novo, Góis Monteiro.

O dirigente do Partido Comunista do Brasil, então PCB, disse que Monteiro Lobato já conhecia as idéias comunistas. “Já estou velho, doente, cansado. Encontrei vocês muito tarde. Se eu fosse mais moço…”, disse o escritor. Assim mesmo, ele trabalhava exaustivamente. De vez em quando, voltava-se para Crispim indagando sobre problemas de interesse nacional e social. Queria conhecer bem as idéias do PCB. Os assuntos giravam sempre em torno do petróleo, da siderurgia, da reforma agrária e da democracia.

À medida que ia se inteirando das linhas gerais da luta dos comunistas, repetia com acenos de aprovação: “Isso mesmo. Vocês têm razão.” Crispim narra que Lobato andava no interior do cubículo, como se falasse consigo mesmo, a meia voz: “A desgraça deste país são os trustes estrangeiros. É incrível como mandam neste Brasil de fazendeiros abastados e reacionários. Fui fazendeiro, filho e neto de fazendeiros. Nunca vi gente tão inimiga do progresso. Para salvar seus domínios, essa gente é capaz de entregar o país aos monopólios estrangeiros. É o que já estão fazendo.”

Admiração pela União Soviética

No começo de 1945, quando a ditadura já andava enfraquecida, Lobato falou ao repórter Tulman Neto, do jornal Diário de São Paulo. A entrevista foi por escrito — Lobato não confiava nos jornais, que insistiam em publicar “asneiras” atribuídas a ele. Só dava entrevistas redigidas de próprio punho. Certa vez, enviou a seguinte carta ao diretor da Folha da Manhã:

Por acaso me chegou às mãos um recorte da Folha da Manhã, de 15 do corrente, com um tal telegrama do Rio no qual se transmite uma ‘entrevista’ minha. Li e corei. Desnaturações do pensamento, vulgaridades, chatices. E esta coisa me assombrou: ‘Finalizando, disse Monteiro Lobato: vai melhorar o Brasil. Antigamente só elegiam esses sujeitos ossudos, soturnos, ou bojudos, indivíduos horríveis, mal-encarados, convencidos etc.’ Por mais que eu lesse e relesse o recorte inteiro, fiquei na dúvida sobre a substância que enche a cabeça desse repórter. Venho, pois, declarar que a tolice não é minha; e a tal entrevista desnaturada, é tão chata e vulgar, que a idéia que me vem é a seguinte: o que acima de tudo precisa melhorar no Brasil é a qualidade dos repórteres de seus jornais. Peço ao senhor diretor a inserção desta nota a fim de que meus amigos não fiquem a supor que já estou completamente gagá.

Na entrevista ao Diário de São Paulo, o escritor foi fundo em suas análises. Depois de criticar a ditadura, ele discorreu sobre o socialismo. Segundo Lobato, Prestes, ainda preso, era um dos maiores brasileiros. “É graças aos comunistas que hoje apodrecem nas cadeias que a realização do sonho socialista se aproxima”, afirmou. Lênin seria o maior reformador de todos tempos, o homem que daria “o seu nome ao século”. Sua admiração pela União Soviética era grande.

“O que a Rússia fez nesta guerra (a Segunda Guerra Mundial), e o que está fazendo na ciência, na educação e em todos os setores da vida humana é o maior dos milagres modernos e essa vitória da experiência russa, meu caro, não pode mais ser oculta aos olhos de todos os países; está aí a crise do mundo. Não há país que vagamente não queira experimentar em sua carne a experiência que o russo fez, a princípio com dor, finalmente com pleno sucesso. E como hão de os privilegiados do mundo — 1% — conter os desejos, os ímpetos, a avalanche dos 99% da humanidade?”, afirmou. Segundo Lobato, a vitória do socialismo era inevitável no mundo inteiro. E acentuou, grifando as palavras, que “idéia perseguida é idéia propagada: perpétua lei do mundo moral, perpetuamente esquecida pelo poder.” Mostrou o exemplo de Prestes, o único homem que no Brasil seduzia milhões de almas.

Estátua para Prestes

A entrevista foi um sucesso. O jornal foi reimpresso uma semana depois para atender aos milhares de pedidos. “Deve ter sido um fato inédito na história da imprensa brasileira. Vários outros jornais reproduziram-na. Em diversas cidades do interior, foi também impressa em folhetos, como resultado de coletas populares, feitas espontaneamente, em demonstrações de entusiasmo pelas palavras corajosas que continha”, disse o repórter Tulman Neto. Com a evolução dos acontecimentos — liberdade para Prestes, fim da guerra e campanhas pela redemocratização do país —, Lobato passou a ser insistentemente procurado para entrevistas. E sempre enaltecia Prestes.

Segundo ele, o principal dirigente comunista brasileiro estava entre os trinta grandes homens do Brasil. No livro Mister Slang e o Brasil — colóquios com o inglês da Tijuca, diz Lobato: “Tomei um bonde e remergulhei-me na cidade dos monumentos e revoltosos, calculando de mim para mim onde iria erguer-se em anos futuros a estátua do Marechal Prestes.” No artigo O padrão, publicado em 1928, ele havia lamentado que o presidente Washington Luis não contemplou seu grandioso plano, pondo no Ministério da Guerra o famoso comandante da “Coluna Invicta”. Em A cegueira naval, ele escreveu que o capitão Prestes, mesmo “nu”, era general.

Ao saber dos suplícios de Prestes na prisão, Lobato protestou em uma entrevista dizendo que o líder comunista deveria ser candidato a presidente da República. Segundo ele, a grande coisa que a ditadura fez, e pela qual o povo brasileiro devia ser-lhe gratíssimo, fora preparar Prestes “para a sua grande missão por meio de um longuíssimo martírio”.

Silêncio no Pacaembu

Já doente, Lobato não pôde comparecer ao comício do Pacaembu, em 15 de julho de 1945, que homenageou Prestes. Mas fez, de sua residência, por telefone, uma saudação ao líder comunista. Quando sua fala foi anunciada, pediu-se silêncio máximo. A voz grave do escritor foi ouvida no mais absoluto silêncio:

Tenho como dever saudar Luis Carlos Prestes porque sinceramente vejo nele uma grande esperança para o Brasil. Vejo nele um homem nitidamente marcado pelo destino. Vejo nele o único dos nossos homens que pelos seus atos e pelo amor ao próximo conseguiu elevar-se à altura de símbolo. Símbolo de quê? De uma mudança social. A nossa ordem social é um enorme canteiro em que as classes privilegiadas são as flores, e a imensa massa da maioria é apenas o esterco que engorda essas flores. Esterco doloroso e gemebundo. Nasci na classe privilegiada e nela vivi até hoje, mas o que vi de miséria silenciosa nos campos e cidades me força a repudiar uma ordem social que está contente com isso e arma-se até com armas celestes contra qualquer mudança. A nossa ordem social me é pessoalmente muito agradável, mas eu penso em mim mesmo se acaso houvesse nascido esterco. Essa visão da realidade brasileira sempre me preocupou e sempre me estragou a vida. Nada mais lógico, pois, do que meu grande interesse pelo homem que não conheço, mas acompanho desde os tempos em que um punhado de loucos lutava contra todo o poder do governo. E lutava por quê? Com que fim? Pela conquista do poder? Fácil seria isso, como foi para os companheiros que desandaram. Prestes não lutava por. Lutava contra. Contra quê? Contra a nossa ordem social tão conformada com o sistema do mundo dividido em flores e esterco. E pelo fato de sonhar com a grande mudança foi condenado a trinta anos de prisão, como pelo fato de sonhar um sonho semelhante, Jesus foi condenado a morrer na tortura. Os acontecimentos do mundo vieram libertar o nosso homem-símbolo e ei-lo hoje na mais alta posição a que um homem pode erguer-se em um país. Ei-lo na posição de força de amanhã. Na posição do homem que fatalmente será elevado ao poder e lá agirá para que o regime de flores e esterco se transforme em algo mais equitativo e humano.

Poucos dias depois, Prestes e o dirigente comunista Pedro Pomar acompanharam o poeta chileno Pablo Neruda, que viera ao Brasil especialmente para o comício do Pacaembu, em uma visita a Monteiro Lobato em sua residência. O jornal Tribuna Popular registrou um trecho da conversa de Prestes e Lobato:

Lobato – Capitão, que de melhor e mais útil o senhor viu na União Soviética? Que mais lhe impressionou?

Prestes – Vi muita coisa, mas de uma coisa me convenci: o quanto é difícil construir o socialismo. E mais, que isso só é possível com um poderoso instrumento — o Partido Comunista Bolchevista.

Lobato – Capitão, será que nós podemos construir esse instrumento em nosso país?

Prestes – Temos todas as condições para construir em nosso país um poderoso Partido Comunista.

Lobato – É preciso, é preciso, capitão!

Além da cortesia, a visita teve o propósito de sondar a disposição do escritor brasileiro para se candidatar a deputado federal. Poucos dias depois, seu nome foi anunciado na chapa apresentada pelo Comitê Estadual paulista do PCB.

Conversar de espacio

Lobato desistiria da candidatura por discordar do apoio do Partido ao governo, que ele chamou de “perdão a Getúlio”. Segundo o escritor, existia também um drama de consciência. Diante da insistência da imprensa em carimbá-lo como comunista, respondeu: “Se tenho tal ou tal ideia, isso é coisa que só diz respeito a mim próprio. Tenho as idéias que quero ou posso ter. Mas serei comunista? Infelizmente, não. Apesar das minhas imensas simpatias pelo comunismo russo, uma questão de consciência me vem impedindo que eu transformasse essa imensa simpatia em adesão perfeita.”

O problema era a sua admiração pelas idéias do economista Henry George. “É que sou georgista. Convenci-me de tal forma da verdade das teorias econômicas de Henry George, que por mais que me esforce não consigo substituí-las pelas de Karl Marx. Admiro a lógica tremenda de Marx, mas minha intuição é que a verdade está com Henry George. E por causa disso não tive a honra de alistar-me ao Partido Comunista, nem pude aceitar o convite de Prestes para figurar na chapa dos candidatos a deputado federal. Não entrei para o Partido, nem para a Câmara, porque seria trair as minhas idéias georgistas. De que maneira ser um perfeito deputado comunista, se eu ponho Henry George acima de Marx? Seria deslealdade acima das minhas forças”, explicou.

Mas confirmou que continuava admirando Prestes. “Sim. Admiro esse homem desde os tempos da Coluna, quando era perseguido pelas tropas de Bernardes. Acho-o admirável, um grande chefe de homens, uma grande força social, perfeito como caráter e de insuperável energia. Fiz dele, desde a ditadura Bernardes, um dos meus poucos ídolos, mas não pude estar com ele quando começou a agir politicamente. Não pude compreendê-lo quando perdoou a Getúlio, o imperdoável. Nem quando mandou o seu eleitorado apoiar Cirilo Júnior, em vez de Plínio Barreto, que era o candidato de honra de São Paulo. Sei que nessas emergências Prestes sufocou o coração para seguir uma linha política ‘realista’ — mas como não aceito o ‘realismo’, não pude estar com ele. Fiquei com o meu velho amigo Henry George”, disse.

Lobato tentaria convencer Prestes a aderir às idéias de Henry George, segundo ele “indispensáveis pontes de transição para futuros ideológicos como que os sonha o comunismo”, mas o “Cavaleiro da Esperança” desconversava. Seria melhor esperar para um encontro em que pudessem “conversar de espacio”, como duas criaturas simples. Ele se lembraria das palavras de Prestes, tempos depois, quando fez autocrítica. Mas manteve a posição contra Getúlio. A sua prisão jamais seria perdoada. “Ora, veja: umas cartinhas sem importância, que poderiam ter ficado sepultadas nas gavetas das secretárias do governo, agora andam por aí fazendo um furor. Eu não pretendia tanto. São uns imbecis, uns idiotas!”, disse Lobato.

Trauma moral

Ele lamentou ter encontrado o PCB já em idade provecta e ressaltou a importância dos comunistas. Disse ter encontrado nos comunistas um mundo novo, que não acreditava poder existir. “Vocês resgataram minha confiança no futuro da humanidade. Vocês estão certos. Por isso são invencíveis. De nada valerão as perseguições e violências dos poderosos. Vocês constituem um movimento vitorioso pela força dos princípios. Nada poderá impedir a transformação do mundo. E vocês são o artífice dessa transformação”, afirmou, completando que se tornara “admirador do único partido honesto que já vi”.

Apesar dos apelos de Prestes, Pedro Pomar, Jorge Amado, Caio Prado Júnior e Artur Neves para que mantivesse a candidatura, Lobato foi irredutível. Na tarde do dia 9 de setembro de 1945, quando Prestes concedeu entrevista coletiva na sede paulista do PCB, na Rua da Glória, o escritor Edgard Cavalheiro — que escreveu uma farta biografia do escritor — entregou-lhe uma carta. Nela estavam as razões da irredutibilidade de Lobato. “Venho pedir a eliminação do meu nome da lista dos candidatos a deputado pelo PCB. O meu precário estado de saúde impede-me ser, nessa falange, o que cumpre a todos: capaz, ativo, militante. Um Partido tão novo e saudável não pode começar a sua vida de parlamento com uma deficiência na primeira linha de combate. Para as grandes lutas requerem-se guerreiros em perfeita forma. Com a maior cordialidade, abraça-o o amigo e companheiro de ideais”, escreveu.

Depois da prisão, Lobato começou a adoecer rapidamente. Sentia cólicas de fígado, segundo um médico que o atendeu consequência de “trauma moral”. Passou a desenvolver também uma espécie de asma. Foi diagnosticado um cisto no pulmão. A solução seria uma intervenção cirúrgica. No leito do hospital, escreveu a carta para Prestes pedindo a eliminação do seu nome da lista de candidatos do PCB. Datada de 7 de setembro de 1945, foi escrita em duas vias para que uma fosse entregue à imprensa. Com a divulgação da sua posição, a desistência estaria consumada, evitando que seus amigos voltassem a insistir para que a revisse. “Não sirvo para deputado e não quero debater com tão bons amigos”, disse.

Cartas de Lobato e Prestes

Na autocrítica sobre a posição do PCB de se aproximar de Getúlio, em carta de 2 de fevereiro de 1947 enviada a Prestes da Argentina, Lobato disse:

Permita que me dirija ao grande chefe com a mesma simplicidade com que a ele me dirigia quando cá esteve exilado, ao tempo da perseguição. Nunca tivemos (nem espero que tenhamos) ensejo de conversar ‘de espacio’ como duas simples criaturas humanas capazes de idealismo. Mas estou perto do fim e não quero ir-me sem falar com quem me encontrei na vida e o mais corajoso de todos.

Quando depois de oito anos de incomunicabilidade carcerária o amigo saiu e, dentro da apoteose com que o recebemos, cometeu o erro de aceitar Getúlio — malandro que realizou a mais enervante e cansativa ditadura da América — um véu de melancolia desceu sobre os corações sinceros. E eu, mero contemplador da vida, estranhei que o grande general brasileiro, ‘o único que mesmo nu continuava general’, cometesse na política semelhante erro estratégico. Tomar em consideração uma fruta bichada e já em início de apodrecimento, foi fato que a mim mesmo só pude explicar como a momentânea cegueira de um enterrado vivo que súbito emerge da escuridão para a plena luz do sol. Mas fiquei na dúvida. Ter-me-ia iludido com meu herói? As águas correm. O incidente ‘Brasil-Rússia’ sobrevém e Prestes se afirma como um homem de coragem sobre-humana. Ainda ontem, recordando em conversa com Roger Pla a façanha, escabichamos na história um exemplo de coragem moral daquele vulto — e não o encontramos (…). Entre manter-se fiel a si mesmo e cortejar a avalanche esmagadora que podia desabar sobre ele, Prestes não vacilou, a avalanche despeja — mas vai pelo mesmo caminho se transformando em espanto e admiração. E Prestes emerge do incidente maior do que nunca. As águas continuam a correr. Chega o dia das novas eleições. Até o céu e o inferno são mobilizados pelos cardeais contra os seguidores de Prestes — mas o antigo estrategista militar se revela estrategista político de igual valor, e vence. E conquista uma vitória tríplice: 1) enterra o ditador que tentava ressuscitar, 2) dá xeque-mate na intromissão do clero na política, 3) desvanece para sempre o fantasma PRP. Minha velha admiração por Prestes ressurge — aumentada. Era bem o homem que eu queria. De coragem moral absoluta e capaz na política de vencer o número por meio de hábeis golpes estratégicos. Sinto-me hoje grandemente feliz com a volta de meu ídolo ao velho nicho; e mais feliz ainda sentirei, se o grande líder der apoio ao Adhemar para a implantação em São Paulo das idéias de Henry George — essa indispensável ponta de transição para futuros avanços ideológicos como os sonham os comunistas. Eis explicado, meu caro capitão, o motivo desta carta e do abraço de parabéns que aqui deste repouso manda o seu amigo Monteiro Lobato.

Prestes respondeu:

Sua carta de 2 do corrente trouxe-me grande satisfação, não só pelo carinho e bondade de suas expressões, como também pela explicação que me dá da atitude sua para conosco — pobres políticos de carne e osso, que nem sempre podem fazer o que desejariam seus impulsos e sentimentos pessoais, obrigados que somos por convicção, profunda e científica, de que muito acima de nossos sentimentos e paixões estão os interesses do proletariado, da classe historicamente destinada a enterrar para todo o sempre esta fase da pré-história da humanidade em que vivemos, da exploração do homem pelo homem. Compreendo, agora, que não foi propriamente por culpa nossa que você nos abandonou e folgo imensamente por vê-lo a nos aplaudir num momento como este, em que tão necessário para prosseguirmos vencendo os obstáculos que se sucedem em nossa marcha é o seu aplauso de patriota, sincero, de homem independente e de artista de verdade. Suas palavras sobre o que denomina de incidente ‘Brasil-Rússia’, sobre a nossa posição diante da guerra imperialista, servirão — e muito — para desmascarar os lacaios do imperialismo aqui em nossa terra, e ajudarão, sem dúvida, aos intelectuais honestos, mas em geral ainda tão atrasados e equivocados, a encontrar o verdadeiro caminho do patriotismo, o caminho de Lênin, de Barbusse e Romain Rolland. Quanto às idéias de Henry George, que lhe poderei dizer? Será melhor esperarmos pelo encontro em que possamos ‘conversar de espacio como duas simples criaturas’. Afirmo-lhe somente que apoiaremos com entusiasmo todas as medidas efetivamente progressistas que venham a ser tomadas pelo senhor Adhemar de Barros no governo de São Paulo. Se entre elas estiver a implantação das idéias de Henry George, tanto melhor, porque será satisfeito o seu apelo. Assusta-me somente essa situação de ídolo, e que se prolongue por muito tempo. A residência incômoda no nicho a que me destina.

História do Rei Vesgo

Prestes divulgou a carta de Lobato como instrumento da luta política contra os golpes que os comunistas sofriam. Em uma carta ao amigo Artur Neves, Lobato declarou: “Se eu admitisse a hipótese de que o Prestes iria tornar pública a minha carta, teria escrito coisa mais decente. Enfim…” O PCB já estava com seu registro cassado e começava a campanha contra a cassação dos mandatos comunistas. Em comício realizado em São Paulo, em junho de 1947, quando os dirigentes comunistas Pedro Pomar e João Amazonas discursaram, foi lida a parábola “História do Rei Vesgo”, escrita por Lobato especialmente para o evento.

O povo ouviu:

Na frente do palácio de certo Rei do Oriente havia um morro que lhe estragava o prazer. Esse Rei, apesar de ser vesgo, tinha uma grande vontade de “dominar a paisagem”; vontade tão grande que ele não pôde resistir, e lá um belo dia resolveu secretamente arrasar o morro. Tratava-se, porém, de um morro sagrado, chamado o Morro da Democracia, e defendido pelas leis básicas do reino. Nem essas leis, nem o povo jamais consentiriam em sua demolição, porque era justamente o obstáculo que limitava o poder do Rei. Sem ele o Rei dominaria ditatorialmente a paisagem, o que todos tinham como um grande mal. Mas aquele Rei, que além de vesgo era malandro, tanto espremeu os miolos que teve uma ideia. Piscou e chamou uns cavouqueiros, aos quais disse:

— Tirem-me um pouco de terra desse morro, ali há umas touceiras de craguatá espinhento. Se o povo protestar contra a minha mexida no morro, direi que é para destruir o craguatá espinhento; e que se tirei um pouco de terra foi para que não ficasse no chão nem uma raiz ou semente.
Os cavouqueiros arrancaram os pés de craguatá e removeram várias carroças de terra. O povo não protestou; não achou que fosse caso disso. Só alguns ranzinzas murmuraram, ao que os apaziguadores responderam: “Foi muito pequena a quantidade de terra tirada; não fará falta nenhuma”.

Vendo que não houve protesto, o Rei, logo depois, deu nova ordem aos cavouqueiros para que arrancassem outro pé de qualquer coisa, mas com terra – ele fazia muita questão de que a planta condenada saísse sempre com um bocadinho de terra… Continuando o povo a não protestar, prosseguiu o Rei por muito tempo naquela política de “extirpação das plantas daninhas do morro”, e as foi arrancando, sempre “com terra”, até que um dia…

— Que é do morro?

Já não havia morro nenhum no reino. Desaparecera o Morro da Democracia, e o rei pôde, afinal, estender o seu olhar vesgo por todo o país e governá-lo despoticamente – não pelo breve espaço de apenas quinze anos, mas pelo de trinta e tantos, segundo rezam as crônicas históricas.
Isso foi no Oriente. Mas nada impede que aqui aconteça o mesmo, porque também temos o nosso morrinho da Democracia, cheio dessas plantas más que costumam nascer em tais morros. É preciso, pois, que o povo se mantenha sempre vigilante, para que os nossos Reis vesgos não as arranquem “com terra”. Do contrário o morro se acaba – e… como é? Ditadura outra vez? Tribunalzinho de Segurança outra vez? Paizinho dos pobres outra vez?

Este comício tem essa significação. É um protesto do povo contra as primeiras carroçadas de terra que o nosso Rei, sob o pretexto de arrancar o craguatá espinhento do Comunismo, tirou do nosso Morro da Democracia. Cesteiro que faz um cesto faz cem. Quem tira uma carroçada de terra tira mil. Se não reagirmos energicamente, um dia estaremos privados do nosso morro e com um terrível soba dominando toda a planície.

E se tal acontecer e esse soba instituir o Relho como instrumento de convicção, será muitíssimo bem feito, porque outra coisa não merece um povo que deixa seus governantes despojarem-se pouco a pouco das suas mais belas conquistas liberais.

O preço da liberdade é uma vigilância barulhenta como a dos gansos do Capitólio.

Discurso de Pedro Pomar

Logo depois, Caio Prado Júnior foi preso por assinar um manifesto em defesa da autonomia de São Paulo. Em carta ao amigo intelectual comunista de longa data, Lobato escreveu: “Cada ato teu, o eleva mais — e agora vem a maravilha da prisão: preso por ser digno, sincero, honesto, nesta hora de desonestidade, corajoso neste tempo de covardia, limpo neste século de sujeiras.”

Foi um dos seus últimos atos políticos. Lobato morreu no começo de julho de 1948. “Foi um fato doloroso para o povo”, registrou Crispim no jornal A Classe Operária. “Sim, escritor, o homem bom, o amigo do povo morreu. Seu desaparecimento se dá no momento em que crescem as manobras imperialistas visando assaltar nossas reservas petrolíferas”, afirmou. “Os jornais da reação, noticiando o fato doloroso, como velhas carpideiras, apressaram-se em derramar lágrimas de crocodilo. Essa imprensa de aluguel que silenciou na ocasião em que Lobato foi preso e condenado pelo tribunal fascista do Estado Novo e que não protestou quando, recentemente, uma edição de seu último livro, de combate ao latifúndio, ‘Zé Brasil’, foi apreendido pela polícia de São Paulo e de outros Estados, procura falsear o sentido da obra e da vida do grande escritor. Não diz uma palavra sequer sobre a atitude do grande patriota em defesa do nosso petróleo ameaçado pelos trustes imperialistas”, escreveu. “Morreu Lobato em plena batalha antiimperialista. Tombou como um soldado da boa causa, como um guerrilheiro que jamais se rendeu”, completou.

O mesmo jornal publicou a seguinte nota:

Com a morte de MONTEIRO LOBATO, ocorrida nesta semana, não é somente a cultura que perde a sua mais forte e mais autêntica expressão nos dias de hoje. É também o povo brasileiro que se vê desfalcado de uma das mais corajosas figuras do movimento patriótico de libertação nacional. De fato, o que caracterizava MONTEIRO LOBATO, apurando o seu talento e dando uma verdadeira popularidade à sua obra, era o patriotismo conseqüente, a preocupação honesta e constante pelos problemas de nosso povo, pelo progresso de nossa gente. Esse patriotismo é que fez de LOBATO um revolucionário de nossa cultura e, depois, um revolucionário militante, aproximando-o cada vez mais de Prestes e dos comunistas, a cujo partido se filiou com orgulho nos últimos anos de sua existência. E é isso, sem dúvida, o melhor de seu exemplo e a razão de sua grandeza. O seu exemplo é o de que, nos dias de hoje, é impossível se ser patriota, lutar pelo progresso e pela felicidade de nosso povo, pela independência nacional, sem se marchar junto dos comunistas, ao lado dos comunistas, quando não seja dentro de suas fileiras. Lutando contra o atraso semi-feudal de nossa terra, pela exploração de nosso petróleo, pela industrialização nacional, pela liberdade e pela democracia, MONTEIRO LOBATO, filho das classes dominantes, com a sua inteligência, sua cultura e sua corajosa honestidade, teve de encontrar-se com a vanguarda do proletariado, com o Partido de Prestes — aprendendo a admirá-lo e compreendendo-o dentro das próprias prisões. Este encontro com o proletariado e seu Partido deu a LOBATO novos horizontes, libertando-o do ceticismo, do desespero ou do cinismo apodrecido em que se afundam os intelectuais que se confinam no ambiente mesquinho das classes dominantes. Compreendendo isso é que o povo paulista, representando o povo brasileiro, soube prestar no enterro de MONTEIRO LOBATO uma vigorosa consagração à sua memória.

O dirigente comunista Pedro Pomar também era um admirador de Lobato, para ele um brasileiro de grande valor. Como deputado, quando ele visitou João Saldanha, que se recuperava de uma doença pulmonar no Sanatório Vicente Aranha, na cidade de São José dos Campos, fez questão de levar Lobato, por quem o famoso jornalista e militante comunista nutria grande admiração. “Estivemos juntos por pouco tempo, mas guardei para sempre a melancolia e a infinita doçura daquele homem”, disse Saldanha. Quando Lobato morreu, Pedro Pomar fez um vibrante discurso sobre sua campa em nome dos comunistas brasileiros e de Prestes.

A morte de Lobato, em 4 de julho de 1948, causou comoção nacional, em especial entre os comunistas. Diógenes Arruda Câmara disse na Câmara dos Deputados que a personalidade de Monteiro Lobato era tão rica que para examiná-la de maneira mais precisa seria necessário citar alguns fatos que definiam bem a sua posição na política brasileira. Citou a luta do escritor contra o Estado Novo, a sua participação na campanha da anistia em 1945 e a sua posição “firme e clara” contra a cassação do registro do PCB. “A grande homenagem de Monteiro Lobato nesta época foi, ao chegar do Prata, solicitar inscrição nas fileiras comunistas, porque nessas estava, realmente, seu lugar como escritor de vanguarda”, afirmou.

* Osvaldo Bertolino é jornalista, autor das biografias de Maurício Grabois, Pedro Pomar, Vital Nolasco e Aurélio Peres

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