Sem categoria

Como Dorival Caymmi se tornou o mais original compositor brasileiro 

Neste mês de abril, completam-se 105 anos do nascimento do cantor e compositor Dorival Caymmi (1914-2008), autor de clássicos como O que É que a Baiana Tem?. Em função da data, o Prosa, Poesia e Arte recupera um dos mais belos e completos textos sobre ele, escrito pelo jornalista Carlos Rennó, na Folha de S.Paulo, em 17 de agosto de 2008, um dia após a morte de Caymmi. Para Rennó, o artista baiano era um “perfeccionista sem esforço”, que compunha “devagarinho” e “aos pedacinhos”. Confira.

Dorival Caymmi
"Preguiça criadora" gerou o mais original compositor brasileiro

Por Carlos Rennó*

O que chama a atenção na obra de Dorival Caymmi, se comparada a de outros compositores brasileiros, é a sua relativamente pequena produção e o seu grande percentual de “standards”, isto é: de canções-modelo. Nesse aspecto, nem nosso maior compositor, Tom Jobim, o superou. À luz da informação estética, seria o mais original, pois o menos redundante. Qualidade muita, quantidade pouca.

Foram pouco mais de cem canções em cerca de 60 anos de atividade como compositor. Pudera. Uma (João Valentão) levou nove para ser acabada, outra (Saudade da Bahia) passou 12 na gaveta. Perfeccionista sem obsessão e sem esforço, Caymmi compunha “devagarinho” e “aos pedacinhos”, como chegou a dizer.

A esse método correspondeu uma atitude de descompromisso com o mercado e comprometimento só com o público. Caymmi raramente compôs por encomenda e sempre cantou menos pelas circunstanciais avaliações comerciais de sua arte do que pela sua disposição. Quis e ganhou o bastante para poder curtir o “dolce far niente” de uma “vida de artista” (ou o ócio do ofício…). Aliás, foi para tirá-lo da vadiagem que seu pai, o funcionário público Durval, neto de italiano, lhe arranjou seu primeiro emprego no jornal O Imparcial, de Salvador, como auxiliar de escritório, aos 16.

Mas a convivência com a música começava já em casa -onde o pai tocava piano, violão e bandolim, e a mãe cantava- e prosseguia na rua, nos festejos do povo baiano. Desse modo, da primeira composição, uma toada sentimental intitulada No Sertão, de 1930, às primeiras apresentações em rádio, em 1935, foi um passo. O salto ele daria em 1939, já no Rio e com uma coleção de canções sobre a Bahia na bagagem.

Os trejeitos de Carmen

Com a sua O que É que a Baiana Tem? na voz de Carmen Miranda, Caymmi entrou em cena para não mais sair. A associação, se foi determinante para a projeção nacional dele, também o foi para a construção da imagem internacional dela – Caymmi lhe ensinou os trejeitos que se tornaram inseparáveis da sua interpretação.

Em 40, saía o seu primeiro disco, com O que É que a Baiana Tem? e A Preta do Acarajé, em duo com Carmen. Data do mesmo ano, e com outra cantora, Stella Maris, o início de uma parceria que duraria de fato até que a morte os separasse, e da qual resultaria a outra parte da sua herança musical: os filhos Nana, Dori e Danilo Caymmi.

Costuma-se dividir a obra de Caymmi em duas fases/faces principais. Na primeira, tendo como referente uma Bahia pré-industrial e idealizada, sobressaem as canções praieiras – obras-primas como O Mar e O Vento. A segunda, “carioca” e urbana, põe em relevo os sambas-canções em cujas harmonias se viu um prenúncio da bossa nova – joias tipo Marina, Só Louco, Nem Eu, etc.

Há quem acrescente uma terceira, definida pelo predomínio de canções com forte acento afro-religioso. É quando intensifica sua relação com o candomblé, assumindo obrigações sócio-administrativas como Obá de Xangô do terreiro Axé Ôpô Afonjá, em Salvador, em 1969. Ele e seus grandes amigos Jorge Amado e Carybé.

Na verdade, todas constituem expressões distintas de uma mesma e sempre presente baianidade. Até a chamada fase carioca. Nesta, os casos – e descasos – amorosos são tratados com uma doçura que quase não se nota num compositor do Rio. Quanto às dissonâncias harmônicas, elas já estavam lá, no violão do período marinho-soteropolitano; à época, diziam que ele tocava errado: “Mas eu sempre achei que havia beleza fora do acorde perfeito”.

Um baiano no Rio

Caymmi viveu em Salvador só até os 24 anos, mas, como disse Vinicius de Moraes, “é difícil encontrar alguém mais baianamente dengoso que ele”. De fato, o Rio, onde chegou em 1938, foi a sua principal sede.

No Rio, Caymmi fez as mais diversas amizades nos meios artístico e jornalístico. Da esquerda à direita; dos padrinhos de casamento Jorge Amado, que o chamava de irmão caçula, e Samuel Wainer, que o chamou para uma coluna sobre rádio no Última Hora, nos anos 50, a Carlos Lacerda. De Rubem Braga a Carlinhos Guinle, com quem, segundo outro amigo, Fernando Lobo, a parceria funcionava nessa base: Dorival entrava com a música, e Carlinhos, com o uísque…

Foi gravado pelos maiores intérpretes da MPB, de Elis Regina e Gal, que lhe dedicou um álbum em 1976; de João Gilberto, que recriou três músicas suas em plena bossa nova, a Gil e Caetano. Nenhuma dessas gravações, contudo, se compara ao próprio Caymmi se interpretando. Ele próprio era convencido disso. Não porque fosse vaidoso – coisa que ele, naturalmente, era. Mas porque tinha plena consciência de si.

Sua famosa e, segundo Amado, “criadora” preguiça inspirou a divulgação de histórias folclóricas e a criação de anedotas gozadas. Durante um tempo, se contou muito esta: existiriam três ritmos na Bahia: o devagar, o muito devagar e o Caymmi.

Eu mesmo tive uma prova de sua lentidão. Em 1994, eu coordenava a área de música do Museu da Imagem e do Som de SP e quis trazê-lo para um depoimento. Conversávamos muito, toda semana, por telefone, mas na hora de decidir vir, ele sempre dava uma desculpa. Numa dessas, chegou a me propor que eu ligasse para ele num dia para marcarmos então o dia em que eu ligaria de novo para marcarmos enfim o dia em que viria…

* Carlos Rennó é letrista, produtor e jornalista