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Adrienne Savazoni, a filha do Cerrado que escreve para lutar

Quando escreve para o Prosa, Poesia e Arte, Adrienne Kátia Savazoni Morelato é creditada como “mestre e doutora em Estudos Literários pela Unesp”, além de “professora da rede estadual de São Paulo”. Mas a faceta de Adrienne que se apresenta nas linhas abaixo é outra: temos aqui a poeta, não a ensaísta, embora uma e outra se confundam. Seus versos expressam um discurso pela via lírica.

Por André Cintra

Adrienne

A Ode ao Rio, por exemplo, atribui desejos e sentimentos aos rios, associando-os, harmoniosamente, às pessoas: “Um rio nunca é só / Nunca é um rio só / Apesar de aspirar / A solidão profunda / E inspirar o desejo / Dessa solidão em nós”. Se obras do porte de Finnegans Wake e Grande Sertão: Veredas já foram chamadas de “romance-rio”, Adrienne tem aí seu poema-rio.

A Natureza e seus fenômenos comparecem com frequência – são referências para as mais intensas sensações: “Nenhum caminho que trilhei depois / tinha aquele cheiro, aqueles sons / cheiro da relva orvalhada cedo / cheiro das flores frescas da noite / cheiro do mato seco apodrecendo / das cascas e sementes criando terra”. É como se os mundos interior e exterior estivessem algo em compasso: “O prenúncio do abismo / em meio ao céu sereno / o meu acaso, o meu desespero / torna ocioso aquele tempo / em que a vida era pelo menos triste”.

“Minha poesia sempre partiu do existencial, da pureza da infância e da imaginação. A experiência de ter vivido quase toda ela e a adolescência dentro do Parque Estadual do Juquery, última reserva de Cerrado da Grande São Paulo, proporcionaram-me inspirações únicas, sensíveis e poéticas”, afirma Adrienne. “O meio ambiente e a natureza, por essa razão, serão temas e símbolos constantes na obra, mas sempre repensando a questão humana: nossos sentimentos, nossas indagações e angústias.”

Biografia é outro poema emblemático, a entregar as origens e as impressões da autora. Por ser “filha do Cerrado” (seu blog, aliás, se chama Poesias e Cerrado), ela aponta uma sina que lhe define o corpo e a alma: “Por isso tenho: / Os pés rachados, / Os braços tortos, / A pele grossa, / A alma em chamas, / Os sonhos ingênuos, / O olhar pleno de horizonte”. As comparações se voltam, aqui, à flora e à fauna – mas também a astros e lendas:

Continuo…
Como uma seriema querendo asas,
Uma coruja que se esconde da noite
Uma raposa caçada que chora,
Uma jaguatirica assustada
Que não sabe a sua real beleza.

O Cerrado em mim
Escorre flores e lágrimas
Mato e capim
Lua e sapos
Vaga-lumes e sacis,
Enquanto eu neste mundo
Da guarita para cá
Sou pária.

Há mais comparações e metáforas, umas e outras belíssimas, no conjunto da obra de Adrienne. Em Música profética, ela transita suavemente de um “quem somos nós?” para um (digamos assim) “quem devemos ser nós?”:

Teceremos o vazio em cada ato
Na busca do adeus mais perfeito
E ao vento, nos desfaremos
Em pedra, flor e mato.

Os cânticos antigos reprovados
Os amores infelizes mais intensos,
Trazem-nos o dilúvio dos desgraçados
E nos traem com a vitória dos eleitos.

Seremos do universo um chamado?
Ou apenas a poeira dos banidos
O vento dolorido dos humilhados
Ou a chuva que caí no abismo?

Sejamos do vale, o nu sagrado
da morte, a criação dos espíritos
das profecias, o adeus calado
e da vida, a ressurreição dos perdidos.

Adrienne diz que a poesia brotou cedo em sua vida, “primeiramente pelo ouvido”, já que a mãe lia para ela poemas de escritores brasileiros. “A poesia surge como voz, acalanto e aconchego. Naturalmente, aprendi a recitá-las muito antes de aprender a escrever. Por isso, escrever poesias surgiu como algo tão essencial quanto respirar, tão vital quanto o ato de brincar, afagar e ser afagada.”

Suas referências – seus “poetas formadores” são Cecília Meireles, Sophia de Mello Breyner Andresen, Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Jorge de Lima, embora ela dedique um poema a Mário de Sá Carneiro (“Queria ser alguma coisa / De útil, neste mundo / Talvez árvore, talvez nuvem / Quem sabe vento / Ou água escorrendo // Menos essa sombra / Esse vago, essa angústia / Esses minutos de dúvida / Esse olhar de descontentamento”). No estilo, a poeta aprecia o Simbolismo e o Surrealismo – “escolas literárias que mais se aproximarão do meu jeito de escrever poesia”.

Adrienne é ativista, feminista, socialista, e é inevitável que essas três marcas se reflitam em sua poesia. Uma de suas peças se chama Consumismo: “Satisfeito, / O corpo quer outro encontro / Para abolir de imediato; / As palpitações cardíacas, / As tremedeiras nas mãos, / O coro no rosto / Com medo da vergonha do não. // Deixa o humano cru e perdido, / Sem o amor, / Ele de si mesmo se esconde / E se torna mais uma engrenagem / do selvagem Capitalismo”.

É uma inflexão na vida da menina que cresceu “no mato” e se expôs às agruras da vida urbana. Ainda assim – ou talvez por isso mesmo –, a poesia de Adrienne não é diletante. “Em um mundo cada vez mais urbanizado, mercantilizado, utilitarista, globalizado, coisificado, objetificado e falso, mostrar novas relações do humano com o meio e com o outro, uma natureza inspiradora, imaginativa e humanizada é lutar por uma sociedade mais justa através da poesia”, afirma.

O sentido de sua arte é o movimento, a ação. Adrienne encara o fazer poético como “uma luta para que nossos sentimentos sejam aprofundados e expressos com um novo ideal de mundo, de construção de uma nova sociedade igualitária, harmônica e plena. As questões sociais, políticas e de justiça não deixarão de ser uma constante em meus poemas e perpassam essa nova relação do humano com a natureza e com o outro”.

E existe, em seus versos, o amor. “Estaremos perto do gênesis da vida / Ou seremos um esquecimento perene / Da fome, do amor, do saber e do odiar?”, questiona-se ela em Sem lugar. A poeta vê lirismo nos amores não correspondidos – “na eterna compreensão de que amar por si só é um ato sem correspondência”. É o que sobressai, entre outros poemas, no sublime Barco de Papel:

Ando à deriva neste mundo
Não sei partir sem deixar rastros,
Apego-me aos largos rochedos
Ensaboados pelos seus passos.

Ando à deriva, um papel ao vento
Sobre os mares e lagos me afundo,
Naufragar é o que me resta,
Pois não me encontro neste mundo
Sem teu rosto, tua barba e cabelos.

Sua imagem vai embora
Um buraco nas águas é o que vejo,
Entre areias e ondas, piso e choro
Procurando o teu vulto nos espelhos
Dos antigos corais encharcados
Pela saudade.

Ando à deriva nestes oceanos
Minha meta é sofrer! E quem se importa?
Dissolvida nas gotas e nos desenganos
Como a luz do Sol desmanchada de verdade
Colorida e vazia por canções e histórias.

Não há mais navios e nem mais pianos
Navegar é preciso, mudar os planos
Ancorar novos ares, novas terras
Novas rotas, novos cantos, novas metas…

Minha meta é sofrer! E quem se importa?
Uma garça sem pouso deslizando
Quando se está inteira e morta?

Há uma noite em cada sonho
E uma linha em cada viagem.

No amor, a poeta lança, assim, uma “reflexão sobre as relações humanas dentro de uma sociedade capitalista e mercantilizada, onde as pessoas viraram coisas e se tornaram voláteis como os produtos que consomem. A poesia terá essa permanência de debater o amor em seu sentido mais esvaziado, para ressignificá-lo”.

No melancólico Fim de tudo, a poeta nos reduz a “pó da superfície perene / Gélida da terra magra e santa / Onde as folhas apodrecem sempre / E as coisas emudecem pálidas”. Sim, as coisas do mundo também se apequenam, conforme deduzimos de Indagação vital: “Há de certo só o vento / Só a sombra / Entre o sereno / Perdidos na memória / Da passagem… // Sobrou mesmo / Os pés e as lembranças / Do caminho”.

Adrienne acredita que nossa sociedade, de tão “fria e insana”, está condenada – “desaprendeu a dançar e se nega ao amor, ao pensamento, ao sentimento, à imaginação, à reflexão e à natureza”. A resposta possível, para ela, é a escrita, a poesia: “Escrevo para sobreviver, escrevo para compensar, escrevo para consolar-me e consolai-vos, escrevo para não morrer e, principalmente, escrevo para lutar. A dor é de menos. O mais importante é voar”.