O bolsonarismo e a convergência da esquerda

Vilão de novela mexicana dá raro ensejo para esquerda convergir. Com esse título, Angela Alondo, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, escreve no jornal Folha de S. Paulo, enquanto a direita é prodigiosa em gerar caras novas, o outro lado traz nomes usuais ou experimentalismos.

Bolsonaro, 8 meses

“Bolsonaro precisa de oposição? Está bem servido dela em casa, seus aliados a fazem”, afirma.  Segundo ela, a parte presidente-e-família vai de “não há mendigo japonês” aos enroscos com milícias, da Amazônia ao Chile. Os ministros colaboram, destruindo ativos cruciais para o futuro do país: o meio ambiente, a educação, a ciência. E há o partido do presidente, que excomungou Alexandre Frota, seu único articulador político eficiente.

Com seu exército de Brancaleone, afirma, o governo não necessita de opositores. “Precisa é de governantes. Faltam quadros, organização, inteligência. A anarquia ajuda a motosserra na poda de políticas públicas. Uma parte da administração não toca o Estado porque quer diminuí-lo, outra, porque está na pindaíba. E há os que nem saberiam como fazê-lo”, constata.

Difícil apoiar, daí a fila de desembarque, diz ela. “Uns lentos, outros envergonhados, aderem à procissão dos arrependidos. O Datafolha registrou gordo estrato da elite econômica, que até outro dia vivava a dupla Bolso-Guedes, tirando seus cavalos de estirpe da chuva de desatinos”, analisa.

Como o presidente não preside, o vácuo se preenche, afirma Angela Alondo. “Rodrigo Maia age e é tratado como primeiro-ministro. O deputado emotivo, com cara de inseguro, mas hábil e eficiente, vem jantando o banquete todo. Faz a agenda, a articulação e o discurso que presidente e companhia deveriam fazer. Ocupou o centro político e o da cena. E não só por sua moderação, mas por funcionar como contraponto simbólico.”

Segundo ela, enquanto o presidente da República tem achaques infantis, o da Câmara pondera. Se Bolsonaro se lança a caubói carismático, Maia saca arma matadora, a normalidade. Lá onde um quer quebrar tudo, o outro se projeta como guardião das regras. Maia é líder burocrático, sua monotonia, sua previsibilidade operam como antídotos. É o antipresidente, logo, um presidenciável.

Se em Brasília segue esse baile, escreve Angela Alondo, quem lá almeja chegar ensaia valsa. À direita, Doria enverga terno presidencial, lançando-se “gestor”, agasalhando a dissidência e a agenda bolsonaristas —vide a censura à “ideologia de gênero” em material escolar. Luciano Huck dança conforme outra música, sapateia por fora, mas com plateia cheia e endinheirada.

Temos, então, um (des)governo de direita, uma oposição de direita e um centro. E a esquerda, cadê?, indaga.

Para Angela Alondo , a crise do país e a da esquerda se entrelaçam, mas são distintas. A barafunda é antiga. Quando o PT chegou ao poder, deflagrou-se uma disputa dentro do governo. Na reforma da Previdência de Lula, houve defecção no partido. Ali nasceu o PSOL. A briga desenvolvimento/sustentabilidade gerou outro racha e a saída de Marina Silva.
Movimentos sociais, de pendor socialista ou autonomista, criticaram o mensalão, alianças pragmáticas, ajuste fiscal e, assim, adensaram a outra banda do teatro político, diz ela.

Dilma enfrentou oposições à direita e à esquerda, fora como dentro do PT. Só recebeu apoio em bloco nas vésperas do impeachment. E este bloco logo se desfez. A campanha Lula Livre agrega muitos, mas não a todos, analisa.

De acordo com ela, nas encruzilhadas brasileiras decisivas, a direita se uniu e a esquerda rachou. Será diferente agora? O lançamento do “Fórum Democracia Direitos Já”, com PDT, PC do B, PSB, PSDB, PV e Solidariedade, ilumina este fim de túnel.

Mas irradiará o bastante para esvanecer desavenças entre redistributivistas, identitários, autonomistas, socialistas, social-democratas, liberal-democratas etc? A história da esquerda conta contra, tem sido de autofagia. Duela a si mesma, fragmenta-se e mirra aspirantes a líder.

O vilão de novela mexicana dá raro ensejo para convergência. Mas inexiste candidatura de consenso à esquerda, dentro ou fora da cela de Curitiba, prossegue Angela Alondo.

Enquanto a direita é prodigiosa em gerar caras novas, o outro lado traz os nomes usuais ou experimentalismos, como a Bancada Ativista, sem chances de virar o jogo na próxima eleição presidencial.

A esquerda carece urgentemente de quadros novos com apetite para o Executivo e para a briga. Nas questões cruciais —desigualdade, reforma do Estado, sustentabilidade— é pouco apontar descalabros alheios. É preciso apresentar projetos alternativos, consistentes, factíveis.

E conclui: Há um campo progressista, que vai além da esquerda puro-sangue. Agrega a centro-esquerda e a parte dos liberais que defende a democracia e se envergonha com a desigualdade. Essa gente, que inclui nacos das elites social e econômica e dos “formadores de opinião”, está farta das boçalidades bolsonaristas e anseia por voz que a expresse. Procura-se uma nova liderança que ponha a boca nesse trombone.