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Fernanda Montenegro faz 90 anos, lança biografia e renova a fé na arte

Prestes a completar 90 anos, a atriz Fernanda Montenegro pertence a uma geração que não apenas construiu uma trajetória artística – mas ajudou a criar o próprio teatro moderno brasileiro. Com ele, ajudou a construir também uma ideia de país – em um Brasil que procurava se reinventar naqueles 18 anos de uma breve e turbulenta democracia, pós-era Vargas, que desembocariam em duas décadas de ditadura, a partir de 1964.

Fernanda Montenegro

“A arte é o que determina o país, o que dá sentido de nação, é o batimento de um país, de um povo. Senão você é apenas um território, um país sem caráter”, diz. A essa geração – que se manteve ativa e criativa ao longo de duas décadas de ditadura, enfrentando a censura, e ao longo da redemocratização –, Fernanda dedica boa parte de sua biografia, Prólogo, Ato, Epílogo (Companhia das Letras, 342 págs.), escrito com a colaboração da jornalista e dramaturga Marta Góes.

“Tenho profunda saudade da minha geração. Toda semana, praticamente, um se vai”, afirma. “É uma profissão que só existe enquanto você está viva e mais um tempo enquanto vive alguém que viu você. Quando morre o último que o viu, você sai de qualquer memória. Só tem presente, não tem futuro.”

Contemporânea de atores como Ítalo Rossi (1931-2011) e Sergio Britto (1923-2011), com os quais, entre outros, criou o Teatro dos Sete, junto de seu marido, Fernando Torres (1927-2008), uma das companhias que fez história no país, Fernanda buscou, artisticamente, criar-se como uma atriz brasileira. “Teatro, faça na sua terra e nas circunstâncias dessa terra”, disse-lhe, como narra no livro, a atriz francesa radicada no Brasil Henriette Morineau (1908-90), quando atuou na sua companhia teatral em São Paulo.

“Havia um milagre acontecendo em São Paulo, quando chegamos lá, em 1954.” Era o ano do 4º Centenário, período em que “as companhias cinematográficas Vera Cruz” buscavam criar uma indústria de cinema nacional, enquanto companhias teatrais como o Teatro de Arena buscavam criar uma linguagem brasileira de teatro.

Mas o renascimento paulistano confrontou-se com uma tragédia nacional, em 24 de agosto: o suicídio do presidente Getúlio Vargas, após 19 dias de crise política iniciada com o atentado a Carlos Lacerda (194-1977), opositor a Vargas, que culminou na morte do Major Vaz e pôs o País – e, logo, a classe artística – em situação de instabilidade.

Desestimulada a deixar o Brasil e a deixar o teatro, como cogitou diante da crise, atuou na companhia Maria Della Costa (1926-2015) e no Teatro Brasileiro de Comédia, que tinha o polonês Zbigniew Ziembinski (1908-1978) como diretor-artístico e Cacilda Becker (1921-1969), então a maior atriz brasileira, como sua estrela.

Fernanda Montenegro também dedica parte de sua história às gerações anteriores à sua, com destaque para as mulheres: além de Cacilda, Dulcina de Morais (1908-1996), renovadora do teatro brasileiro na primeira metade do século 20, e Itália Fausta (1879-1951), “atriz que participou de movimentos decisivos do teatro brasileiro” a partir das primeiras décadas do século passado. “Uma adolescente vai se fixar nas mulheres que deram certo”, afirma.

Atores também a influenciaram, como na montagem de Hamlet de 1948, feita pelo Teatro dos Estudantes do Brasil (TEB), com Sérgio Cardoso (1925-1972) no papel principal. “Eu era muito jovem. Ele era um estudante recém-formado em Direito. Era um espetáculo que não era bom, amadoríssimo. E aí eu vi esse rapaz sem formação teatral sabendo dizer aquele texto”, diz. “Eu me formei vendo esse monte de atores que me seduziram.”

Depois da crise de 1954, nunca mais cogitou desistir da batalha teatral, enfrentando problemas de financiamento, empréstimos bancários, a necessidade de educar dois filhos (o cineasta Cláudio Torres e a atriz e escritora Fernanda Torres), fracassos e sucessos de público e a censura da ditadura civil-militar. “Eles [os censores] não negavam o texto. Eles cortavam alguma coisa do texto. [A gente] arrumava mais ou menos e prosseguia. Na véspera, o pré-ensaio geral tinha que ser para a censura. Eram três sempre: um, com uma lanterna, acompanhando o texto, e dois olhando [o ensaio]”, recorda-se.

“Aí você já tinha se empenhado em banco, contratado as pessoas, o elenco pronto para sobreviver com sua criatividade, proibiam [o espetáculo]. Deixavam o processo chegar para terminar com ele, trazendo junto desemprego e ruína econômica para o grupo”, conta. “Mesmo assim se fazia, sobreviveu-se. Não tem história de ator sem muita luta. É quase sempre um esforço monstruoso para vir à luz.”

Desencantada com o valor social do teatro nos dias de hoje, não confunde desencanto com desesperança. “Teatro tem sempre momento de desencanto. Mas não morre. Faz-se muito teatro no Brasil – para ganhar nada. É uma vocação inarredável. Não vamos deixar de existir. Eles acham que a gente tem que acabar. Até por razões morais. Não é só uma avaliação de caráter de valor social, é moral. Nós [para eles] somos imorais. Somos demônios ou coisa parecida. Não sei quantos anos vamos esperar para gente renascer na nossa plenitude.”

Dedica a mesma reverência a dois dos maiores dramaturgos brasileiros: Millôr Fernandes (1923-2012), a quem considera um “renascentista”, e Nelson Rodrigues (1912-1980), um dos principais alvos de Millôr e da turma de O Pasquim, jornal de humor que circulou entre 1969 e 1991. “São autores com quem convivi muito, não só pessoalmente, como com a obra deles, cada uma ao seu modo”, afirma. “O Nelson é um gênio. É de humanidade descompromissada com um comportamento que esteja na moda.”

Foi em uma adaptação de uma peça de Nelson Rodrigues, A Falecida (1965), dirigida por Leon Hirzman (1937-1987), que estreou no cinema, vivendo Zulmira, a suburbana a que desejava um enterro digno. “Hirzman, como Nelson e eu, era suburbano. Sempre conhecemos o valor de um sepultamento naquele mundo”, narra no livro.

Mais de três décadas depois, a atriz se reencontraria com esse universo, e suas professoras, ao interpretar a professora aposentada Dora, em Central do Brasil (1998), dirigido por Walter Salles. Personagem que lhe valeu a indicação ao Oscar de melhor atriz e pela qual é, até hoje, parada nas ruas. “Tenho guardadas redações que me foram enviadas durante, pelo menos, um ano, como se eu fosse a professora De muitos estados, de muitas cidades vinham essas cartas, bilhetes de salas de aula, de alunos de primeira série, segunda série. O mundo escolar se envolveu com aquela personagem.”

Na TV, onde atua desde 1951, quando estreou no Teleteatro na TV Tupi do Rio, recorda-se de Francisca Newman, de Brilhante (1981), de Gilberto Braga, e Bia Falcão, de Belíssima (2005), de Silvio de Abreu. Duas vilãs que, diante do sucesso de público, quebraram a regra do folhetim e tiveram um final feliz – a primeira ao lado do homem que amava, a segunda ao lado do homem que desejava. “Eu gosto muito de fazer televisão. Não tenho censura sobre a loucura que é o folhetim. Tem que ter coragem. Mas eu sou do tempo que o folhetim chegava [em versão impressa] na porta da nossa casa. Isso tudo vai somando na sua vida.”