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Dia Nacional do Samba: O samba do branco doido no Brasil do século 21 

Em 1966, o jornalista, chargista e humorista Sérgio Porto – que assinava com o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta – compôs o Samba do Crioulo Doido. Com ironia, definiu a política e a vida brasileira da época. A expressão ganhou vida própria e virou sinônimo de desordem geral. Se tudo está assim meio bagunçado, diz que “isso está um samba do crioulo doido”. Até o cantor e compositor – e agora também ator – Criolo tinha doido em seu o sobrenome artístico.

Por Marcos Aurélio Ruy*

Samba

Fosse vivo, Porto cunharia a expressão Samba do Branco Doido para este país com Jair Bolsonaro na Presidência e o Brasil descampando para o precipício. A parcela da elite brasileira assumiu o poder em 2016 com o golpe de Estado, aprofundou o golpe com a eleição da extrema-direita – e agora parte dela não sabe como se livrar do monstro que emergiu da lagoa. Outra parte simplesmente segura na cauda monstruosa e se regozija de ser contra o saber, a cultura, os interesses da nação.

Será que o gênero musical mais popular do país vai mais uma vez resgatar a identidade nacional? A ver.

Bom lembrar que nesta segunda-feira (2), como em cada 2 de dezembro desde os anos 1960, comemoramos o Dia Nacional do Samba. Oriundo das senzalas com suas dores, seus amores, seus desejos e sua revolta, o samba se tornou um dos grandes representantes da cultura brasileira, sendo um dos principais responsáveis pela identidade nacional.

De acordo com o estudioso da cultura popular brasileira Roque Souza, o samba nasceu da necessidade dos negros brasileiros. Abolida a a escravidão, um ritmo próprio estava na “hora de se soltar, de mostrar sua alegria”. Assim, “mesmo perseguidos pela polícia e atingidos em cheio pelo preconceito de uma elite voltada para a Europa, os ex-escravos criaram sua própria cultura, que é a força motriz de nossa cultura popular, para resistir à opressão”.

Em Desde que o Samba é Samba é Assim (1993), Caetano Veloso emendou: “O samba é o pai do prazer / O samba é o filho da dor / O grande poder transformador”. A voz de Lupicínio Rodrigues ressoa na canção Felicidade (1947): “A minha casa fica lá detrás do mundo / Onde eu vou em um segundo / Quando começo a cantar. O pensamento parece uma coisa à toa / Mas como a gente voa / Quando começa a pensar”.
 
Para a cantora e jornalista Railidia Carvalho, o samba foi essencial para a trajetória e a civilização brasileira: “Digo com muita felicidade que fui formada no samba. Não fossem as rodas de samba, nem cantora eu seria. Também estive e estou ao lado de inúmeros artistas, veteranos ou mais jovens, homens e mulheres, me expressando através deste gênero, vivendo essa música como a própria vida”.

De qualquer forma, acentua Railidia, “o samba se impõe por ser essa potência cultural. Mesmo invisibilizado na maioria das suas expressões, ele resiste. É importantíssimo ter o Dia Nacional do Samba porque, em um esforço concentrado, essas expressões se tornam notícia e movimentam a rotina cultural do País”.

Por ser um traço cultural popular, de matriz africana, os sambistas foram perseguidos e desprezados pela elite. “Os escravos não podiam ter instrumentos para realizar seus batuques. Então, começaram a utilizar os pés e as mãos – enfim, o corpo todo – para cantar suas dores e alegrias. Cantando e dançando, assim nasceu o samba de roda na Bahia, ainda no século 19”, diz Souza.
 

Um dos mais fortes traços da identidade nacional, o samba apresenta uma rica diversidade. Ao mesmo tempo, se modifica e se adapta aos novos tempos, cantando a vida de um povo que labuta para construir o país dos sonhos, onde a felicidade predomine. Como disse Chico Buarque, certa vez, “raiz a gente respeita, tradição a gente muda”. E assim esse ritmo de alma preta identifica um país e um povo.

O samba tem raízes africanas, nos batuques, no lundu, no jongo, entre outros ritmos e danças – e com uma mistura de ritmos já nasceu diverso num país de dimensões continentais. A participação das mulheres foi essencial para a difusão da nova expressão cultural. Foi nas casas das “tias” – sendo a mais famosa a Tia Ciata – que os sambistas se reuniam para mostrar seus novos trabalhos. E os cantos foram surgindo.

O samba está presente em praticamente tudo o que veio depois, porque se enraizou nos corações e mentes dos morros e das favelas. Conquistou outras classes sociais com uma tentativa frustrada de embranquecimento. Tanto que Paulinho da Viola canta, em Argumento (1975): “Tá legal / Eu aceito o argumento / Mas não me altere o samba tanto assim / Olha que a rapaziada está sentindo a falta / De um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim”.
 

Como afirma o músico Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar, o Guinga, na música popular brasileira “tudo é feito com um pé no passado, outro no presente e a cabeça no futuro”. Assim o samba vai evoluindo e mostrando talentos impensáveis para quem mora no preconceito e não vê a sabedoria de um povo que canta seus males com alegria e total irreverência. Em Samba da Bênção (1967), Baden Powell e Vinicius de Moraes acrescentam: “O samba nasceu lá na Bahia / E se hoje ele é branco na poesia / Se hoje ele é branco na poesia / Ele é negro demais no coração”.

Muito embora seja sempre muito difícil fixar uma data para o surgimento de qualquer movimento cultural, o samba tem como marco inaugural o registro, em 1916, do primeiro samba com o nome de samba: Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida, que também foi o primeiro samba gravado, em 1917.
 

 
“Como tudo o que está relacionado à população negra e à nossa cultura, o samba foi muito perseguido e discriminado ao longo de sua história”, explica a cantora e compositora Leci Brandão. “O mesmo aconteceu com o candomblé, com a capoeira e com todas as manifestações de origem negra em nosso país. Apesar de ter havido mudanças, a discriminação contra o nosso povo continua e com a nossa cultura também”.

De acordo com Leci, “o samba, para ser aceito, teve que passar por um longo processo. Muitas vezes se moldou para cair no gosto das grandes gravadoras e do grande público. Mas o samba das comunidades, por exemplo, está fora da mídia”. Ela ressalta que, no Brasil, o desafio é ainda maior para a mulher negra – por ser “o segmento mais discriminado da população. Quando uma mulher negra resolve ser cantora, ela enfrenta muitos desafios a mais. Vivemos em uma sociedade dominada não só pelo racismo – mas pelo machismo também. No samba, não é diferente”.

Mas “chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, entoa Assis Valente em Brasil Pandeiro, composta especialmente para a cantora Carmen Miranda, em 1940. “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar / O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada / Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato / Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará / Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá”. Bolsonaro e seus seguidores precisam ouvir essa canção do compositor baiano.
 

Sem xenofobia e sem nostalgia, é preciso valorizar a cultura nacional – e o samba é um dos principais representantes de nossa cultura. “Não deixe o samba morrer / Não deixe o samba acabar / O morro foi feito de samba / De samba pra gente sambar” (Não Deixe o Samba Morrer, de Aloísio Silva e Edson Conceição, 1975).
 
* Marcos Aurélio Ruy, jornalista, é colaborador do Prosa, Poesia e Arte