Por dentro da estratégia dos EUA: a obsessão com a Rússia

A carta de Michael McFaul, embaixador dos EUA na Rússia no biênio 2012/2014, e a obsessão dos EUA com o país liderado por Putin

Por Rita Coitinho

trump putin

Michael McFaul, embaixador dos EUA na Rússia no biênio 2012/2014 e autor de “From Cold War to Hot Peace: an American Ambassador in Putin’s Russia” (Da Guerra Fria à Paz Quente: um Embaixador Norte-Americano da Rússia de Putin), portanto um personagem central da cúpula do poder de Estado nos EUA (o governo dos EUA não nomeia amadores para o cargo de embaixador, muito menos para a Rússia), assina um artigo que chama atenção pela franqueza na revista Foreign Affairs de julho/agosto deste ano. O artigo, intitulado (em tradução livre) “Rússia tal qual é – uma grande estratégia para confrontar Putin”, apresenta as razões pelas quais a Rússia deve ser confrontada.

De acordo com McFaul, as relações Rússia-EUA vinham sendo marcadas pela proximidade e cooperação desde o fim da URSS, apesar de alguns “incidentes”, a ponto de chegar-se à incorporação da Rússia no “clube” do G-8, à construção do tratado sobre mísseis balísticos de 2002 e, finalmente, mesmo com os desentendimentos em torno da guerra contra o Iraque, em 2003, chegou-se ao New Start (sigla em inglês para Novo Tratado Estratégico de Redução de Armas). A partir de 2011, porém, as relações entre os dois países deterioram-se, segundo o embaixador estadunidense, em razão das desconfianças de Putin às chamadas “primaveras árabes”, aos protestos ocorridos dentro da Rússia contra Putin e, finalmente, aos acontecimentos de 2014 na Ucrânia, em que os EUA deram suporte a uma mudança de regime (em que, recordemos, embora o embaixador não admita, ascendeu um governo de caráter declaradamente neonazista). A reação russa ao ocorrido na Ucrânia, a anexação da Crimeia e o suporte dado pelos russos à resistência antinazista são apontados, no artigo, como as razões centrais na deterioração das relações entre os dois países.

Acima de tudo está, na avaliação do diplomata, o “fator Putin”. Para ele Putin é a peça central da virada nacionalista russa. O “putinismo” (sic) seria o principal contraponto à “democracia”. Não sendo, porém, possível “livrar-se” de Putin no curto prazo, os EUA devem construir uma estratégia duradoura de contenção da Rússia “até que Putin saia”. Para ele, os EUA devem “continuar a apoiar os direitos humanos e a democracia, acolhendo os grupos que se dispõem a lutar, internamente à Rússia, por esses valores”, embora “a verdadeira mudança política só possa começar com a saída de Putin”. Ao mesmo tempo, os EUA devem esquecer a ideia de integrar a Rússia ao multilateralismo. Neste ponto, é preciso construir uma situação de “xeque-mate”, na qual limite-se a margem de manobra russa e preserve-se o status quo internacional.

Internamente aos EUA, McFaul vê como prioridade “limitar a habilidade de Putin de influenciar nas eleições”. Ele aconselha o governo Trump a intensificar a cibersegurança, especialmente nos processos de votação. Mas ele vai além na questão da cibersegurança: propõe que os EUA organizem “as democracias em todo o mundo para desenvolver um arcabouço legal comum e protocolos de regulação da mídia”. Além da regulação, os EUA devem “encorajar as plataformas de social-mídia para conter conteúdo criado a partir do Kremlim”. De que maneira? Propõe que plataformas como o Google e o Youtube criem algoritmos que dificultem o acesso aos conteúdos distribuídos pela Rússia. Textualmente: “a cada vez que um artigo ou vídeo do canal de notícias russo RT apareça, um pop up com noticias ou vídeos da BBC deve aparecer. Até aqui as companhias de mídia-social têm resistido a assumir responsabilidades editoriais; essa era precisa acabar”. O embaixador insta os países europeus e membros da OTAN a depositarem maior esforço à luta ideológica contra a Rússia.

Para além de sua campanha pela regulação mundial da mídia de acordo com os interesses dos EUA, Michael McFaul lista os objetivos geoestratégicos centrais à contenção da Rússia. Vale a pena citar, sinteticamente cada um:

1 – “Nenhum teatro na luta para conter a Rússia é mais importante do que o da Ucrânia”. Fortalecer o atual governo ucraniano significa conter a expansão militar russa rumo à Europa. Recomenda ampliar sanções econômicas contra a Rússia e incrementar o suporte militar estadunidense à Ucrânia;

2 – Irã: “no Oriente Médio, os EUA necessitam de uma estratégia mais agressiva para conter o principal aliado da Rússia, o Irã”. Assim, é preciso ampliar o suporte às milícias que lutam contra o governo Sírio e contra os reforços iranianos. Sair da guerra da Síria, neste momento, seria dar a vitória a Moscou e Teerã. É preciso impedir o desenvolvimento da tecnologia nuclear no Irã e dar suporte a uma mudança de regime a partir de forças internas ao país.

3 – Ásia: “Os EUA devem conter as ambições do Kremlin na Ásia”. Isso inclui reanimar a participação dos EUA na Aliança do Pacífico; ampliar esforços para dividir a China e Rússia. Para esse objetivo, considerado o mais difícil, tendo em vista a parceria estratégica entre as duas nações, os EUA devem “trabalhar junto com Beijing rumo à desnuclearização da Coreia da Norte”, estabelecendo, assim, uma aliança sem a participação da Rússia.

4 – Economia: contenção da expansão econômica russa. “A Europa deve reduzir sua dependência das exportações de energia da Rússia”. Projetos como a construção do gasoduto “Nord Stream 2” (que mencionamos no artigo da semana passada) “não são apropriados e devem ser descontinuados”.

5 – “Mudança de Regime”: “fundações filantrópicas do Ocidente devem financiar o jornalismo independente, incluindo serviços em língua russa, dentro e fora da Rússia”.

6 – Choque de civilizações: “Mais amplamente, os EUA e seus aliados democráticos devem entender o alcance do seu choque ideológico com o Kremlin”.

Para McFaul, essa é uma estratégia de longo prazo, a ser implementada com persistência e paciência. De uma maneira geral, o “passo a passo” descrito no artigo do diplomata estadunidense vem sendo cumprido, ainda que Trump aparente pouca articulação com as “forças profundas” do poder estadunidense. Como se vê, sua aparente desarticulação deve-se mais ao fato de ser um outsider do que a um completo descolamento da estratégia geral do poder real que conduz a política externa dos EUA. Seguiremos tratando deste tema nas próximas semanas.