Águas que descem turvas: a crônica do fracasso de uma privatização

A rescisão do contrato com a Águas Argentinas S.A., anunciada pelo presidente Néstor Kirchner foi um final anunciado para uma das concessões mais polêmicas da era Menem. Privatizada em 1993, com a promessa de redução de tarifas e investimentos milionários

Por Rafael Gentili*

No dia internacional da Água, a administração Kirchner rescindiu, “para resguardar a vida, a saúde e o patrimônio da população atendida pela concessão”, por culpa do concessionário, o contrato entre o Estado argentino e a empresa Águas Argentinas S.A. (AASA), prestadora do serviço de água potável e esgotos na cidade de Buenos Aires e 17 municípios da mesma província. Ao mesmo tempo, criou Águas e Saneamentos Argentinos (AySA), na figura de sociedade anônima, com 90% das ações em mãos do Estado e os outros 10% em mãos dos trabalhadores.

 

Se bem a decisão tomou de surpresa os principais acionistas da empresa (o grupo francês Suez e a catalã Águas de Barcelona), foi um final anunciado para uma das concessões mais polêmicas da era de Menem.

 

Antecedentes

 

Privatizada em 1993 com a promessa de uma redução de tarifas e investimentos milionários, o fato é que aconteceu exatamente o contrário. As tarifas não poderiam ser tocadas até 2003. Contudo, houve sucessivas renegociações pouco transparentes com o Estado, que quase duplicaram a tarifa, além de dolarizá-la. Os acionistas tomaram a decisão de assumir dívidas irresponsavelmente no mercado de capitais para não comprometer recursos próprios nem reinvestir lucros no plano de investimentos. Mesmo assim, sempre investiram menos do que aquilo a que tinham se comprometido.

 

Segundo um relatório da Entidade de Controle (ETOSS), no primeiro quinquênio da concessão estavam previstas obras por 1.449 milhões de pesos, mas foram executadas somente as correspondentes a 837 milhões (58%). No segundo quinquênio, o resultado não melhorou: foram realizadas obras por 428 milhões de pesos, sendo que o compromisso era de 752 milhões.

 

A partir da desvalorização da moeda, disposta no começo de 2002, foi iniciado um novo processo de renegociação, que se conduzido da maneira adequada teria provocado a imediata rescisão do contrato, pelas mesmas razões agora levantadas. No entanto, a decidida intervenção do governo francês (que, por outro lado, era um firme defensor da Argentina na renegociação de sua dívida em default) e do FMI, advogando em favor da empresa, levou este mesmo governo a negociar, no ano de 2004, uma trégua com os principais acionistas, que já haviam interposto, no CIADI, um processo contra o Estado argentino por 1,7 bilhões de dólares.

 

Passado um ano, a trégua foi quebrada e as posturas tornaram-se irreconciliáveis, até que no final de setembro de 2005, Suez comunicou sua decisão de abandonar – de maneira ordenada – o serviço, responsabilizando o Estado por essa situação; contudo, ainda não tinha definido uma data para sua saída. A partir desse momento, o governo argentino embarcou na busca frenética de um investidor privado para encarregar-se do cargo da empresa, como sinal de que a estatização não era um fim em si mesmo. Nesse processo, chegou inclusive a anunciar que Águas de Barcelona (cujo principal acionista é o grupo catalão La Caixa – a mesma de Repsol-YPF-, e que tem com Suez um acordo estratégico de associação a nível mundial) ficaria como operador.

 

Contudo, esta alternativa foi frustrada diante da exigência de Suez de que o novo sócio assumisse a dívida de U$S 670 milhões da AASA e sua negativa de desistir do processo no CIADI; e também pela firme decisão de Néstor Kirchner de não conceder aumentos de tarifa para uma empresa que mesmo com as tarifas congeladas desde 2002 tinha lucros suficientes para realizar as obras necessárias para melhorar o serviço (as projeções para este ano são de lucros operacionais de $ 270 milhões, enquanto que as obras necessárias para acabar com a alta concentração de nitrato na água requerem apenas $ 144 milhões).

 

Investimento que faz falta

 

Apesar de a empresa dizer ter investido U$S 1.700 milhões nos primeiros nove anos da concessão, na expansão de redes, a falta de investimentos denunciada pela ETOSS é evidente: ainda restam 1,5 milhões de lugares sem acesso à rede de água potável e 3 milhões sem esgotos, num universo de 10 milhões de habitantes e uma área de 1.830 km2.

 

E muitos dos que têm acesso ao serviço sofrem sérios problemas de pressão da água e una concentração de nitratos que, em alguns casos, supera em 200% o nível permitido (45 mg/l), o que – segundo o Decreto 303 – “gerou alarme na população” – especialmente entre as 300 mil pessoas que estão em áreas sujeitas a risco de excesso temporário de nitratos.

 

Segundo o governo argentino “o problema é sempre o mesmo: a AASA não realizou as obras necessárias para garantir que a origem da água administrada não esteja contaminada com nitratos” nem para melhorar a pressão da água, especialmente nas pontas da rede e nas zonas precárias. Por outro lado, a reativação de perfurações que estavam em reserva e fora de uso por terem alta concentração de nitratos, para satisfazer a crescente demanda, tornou a situação ainda mais grave, uma vez que significou “continuar injetando, de maneira direta, água não potável na rede de distribuição, com o conseguinte risco para a saúde da população, especialmente do setor mais vulnerável”.

 

Ao mesmo tempo, o mau gerenciamento dos recursos hídricos gerou graves desequilíbrios, provocando inundações com águas servidas que emergem das águas subterrâneas em zonas da periferia, particularmente zonas pobres, enquanto que nos bairros de classe média e alta da cidade o serviço era prestado em condições satisfatórias.

 

A razão disso é que, tal como aparece no Decreto citado, AASA priorizou “seu interesse econômico, prestando serviços em áreas mais lucrativas da concessão e deixando os setores mais humildes da população desprovidos de água potável, ignorando o caráter de serviço público do serviço que presta”.

 

Pressão

 

A decisão argentina gerou um novo curto circuito na relação, já delicada, com o governo francês. O porta-voz das Relações Exteriores da França, Jean-Baptiste Mattéi, falou de uma “decisão repentina” do governo argentino e exortou a adotar “medidas adequadas” (leia-se indenização) para que Suez possa encerrar suas atividades em “condições satisfatórias”. Ao mesmo tempo, deixaram transcender que, em sinal de represália, Chirac excluiu o país da sua viagem pela região.

 

O presidente Kirchner foi o encarregado de responder. Fez isso do jeito que mais gosta: em ato público e sem meias tintas: “Tenho grande respeito pelo povo francês e pelo presidente Chirac, mas que fique claro que não estou disposto a abaixar a cabeça e permitir que sejam contaminadas as águas que bebem os argentinos só para que nos visite um presidente ou uma Chancelaria fique tranqüila”.

 

A nova empresa

 

Sem dúvidas, o que mais incomodou a opinião pública, tanto da direita como da esquerda, foi a criação de uma nova empresa estatal para se encarregar do serviço e a decisão de nomear Carlos Ben como presidente, uma vez que ele teve uma participação ativa no processo de privatização e até o dia anterior era um dos três diretores-gerais adjuntos, em representação de Suez, além de ser um aliado político do chefe do sindicato, o “gordo” José Luis Lingeri, um ex-menemista, fortemente comprometido com a gestão dos franceses.

 

Por parte da direita, o temor é que seja o início de um processo de estatização de empresas de serviços de envergadura. Até agora, a Administração Kirchner foi obrigada a estatizar o correio oficial, a empresa encarregada da radarização e uma das linhas ferroviárias. Nenhuma delas tem a magnitude nem a dimensão política que tem AASA. E em nenhuma destas decisões foram usados argumentos tão ideologicamente contrários à cartilha neoliberal.

 

O temor é que os próximos sejam Aerolíneas Argentinas e Repsol-YPF. Contudo, no primeiro caso, esse fantasma parece expressar mais um desejo dos atuais acionistas da empresa aérea. No segundo, a situação é mais complexa e, se bem tem sido cogitada a idéia de fazer uma oferta hostil por parte de alguns estados da região, resta muito caminho a ser percorrido até chegar a materializar essa decisão.

 

Por parte da esquerda, a crítica é pela designação de Ben e pela inocultável aliança selada com a burocracia sindical, que seria parte do problema e não da solução. Também se objeta que não existe, por parte do governo, uma idéia clara sobre o que fazer com as privatizadas, além de reforçar a utilização discricional dos recursos para fazer obras públicas por parte do ministro do Planejamento, Julio de Vido.

 

Apoio popular

 

Seja como for, a medida conta com a esmagadora aprovação da sociedade. É isso que reflete uma pesquisa realizada pela agência OPSM, do sociólogo Enrique Zuleta Puceiro, que mostra que 11,1% e 72,3% dos entrevistados disseram “concordo totalmente” ou “concordo”, com a rescisão do contrato. E 4,3% e 67,3% “concordo totalmente” ou “concordo”, respectivamente, com a criação da nova empresa estatal.

 

O interessante desta decisão é que o governo argentino ousou confrontar em duros termos a prédica neoliberal, afirmando que “enquanto a AASA concebe a água potável exclusivamente de uma perspectiva de economia de mercado, o Estado pretende que, sem por isso deixar de ser um bem econômico, seja valorizada e administrada como aquilo que é: um bem social e cultural, que em linguagem jurídica se traduz como Direito Humano”. Deste modo, o governo tomou partido pela postura defendida pelas organizações que convocam o Fórum Internacional em Defesa da Água, realizado recentemente na cidade do México.

 

Por outro lado, parece claro que a estratégia do governo argentino com relação às empresas privatizadas durante os anos 90 aponta para que o Estado volte a ter um papel fundamental e excludente na definição dos investimentos que devem ser realizados em cada serviço (a exceção seria a telefonia pública). Para isso está disposto, inclusive, a financiar esses investimentos ou procurar as fontes para fazê-lo, seja através de empréstimos ou de encargos específicos nas faturas. Essa estratégia não é incompatível com a gestão privada dessas empresas, na medida em que elas aceitem transformar-se em meros “gerenciadores”, encarregados da operação e manutenção.

 

Sem dúvida, um jeito muito argentino de encarar a solução de problemas complexos.

 

* Membro do Laboratório de Políticas Públicas, Buenos Aires.

 

Fonte: Agência Carta Maior
Com intertítulos do Vermelho