Avante!: Nova tragédia na Irlanda do Norte

Artigo do jornal Avante!, do Partido Comunista Português, analisa o desenrolar do processo político vivido na Irlanda do Norte, após o assassinato de Dennis Donaldson, agente duplo confesso que foi misteriosamente assassinado em 6 de abril.

A Páscoa voltou e a paz declarada na Sexta-Feira Santa de 1998 e que por um breve período parecia ganhar condições para afirmar-se, está destruída. Os partidos protestantes e reacionários, temerosos de que o sistema colonial desaparecesse e tudo acabasse numa Irlanda unida, prepararam, com a colaboração dos serviços britânicos de intelligenc’ a solução suprema.

Já assistimos ao fim do parlamento de Stormont, e estamos a ver, agora, o fim da democracia, o fim do aprofundamento das relações com a República da Irlanda (Dublin), o reaparecimento dos assassinatos, o regresso ao terrorismo, a continuação do sistema colonial antigo baseado na desenfreada exploração da comunidade católica e já recomeçaram a tratar Dublin como uma capital estrangeira como se Londres o não fosse. A nova tragédia da Irlanda do Norte (seis condados da província irlandesa do Ulster – Derry, Antrim, Tyrone, Fermanagh, Armagh, Down) remete-nos para o campo dos mais imaginosos autores de romances de espionagem, intriga, traição e morte. Mas é uma tragédia real. E que tudo isto se passe no seio da chamada União Européia de que tanto a Grã-Bretanha como a República da Irlanda são membros, transcende a imaginação dos mais audazes.

Denis Donaldson, membro do Departamento Internacional do Sinn Fein (o partido dos patriotas, dos católicos, dos republicanos, dos partidários da Irlanda unida) foi preso em 2002 sob a acusação de, sendo secretário-geral de administração das operações parlamentares daquele partido, ser, simultaneamente, uma figura chave da rede de espionagem do IRA. Como tal, operava no coração do parlamento de Stormont e, desrespeitando as novas regras democráticas, agia como espião e informador das atividades dos outros partidos e das próprias autoridades britânicas. Do seu trabalho beneficiavam o Sinn Fein e o IRA. Os protestos surgiram de mil quadrantes. Segundo os partidos que não apóiam o processo de paz e preferem a colonização britânica (os protestantes) a democracia tinha sido atraiçoada, deitada por terra. Terroristas seriam sempre terroristas, proclamaram aos quatro ventos. O parlamento foi suspenso. Até hoje, não reabriu. As forças paramilitares protestantes não perderam tempo. Reagruparam-se e, preparando-se novamente para a guerra, tanto a ‘UVF’ como o ‘UDA’ e até a ‘Ordem de Orange’ começaram a fazer fogo sobre a polícia, os bombeiros, os próprios militares britânicos. Tudo, evidentemente, ‘para inglês ver’. Queriam demonstrar o seu patriotismo quando o tal Mr. Donaldson, figura da administração parlamentar tinha atraiçoado o seu papel no seio da democracia. O falatório dos protestantes, acompanhado por toda a direita britânica e por um coro imenso da imprensa reacionária, sugeria que fora vibrado um profundo golpe no processo de paz e que os verdadeiros democratas, afinal, eram eles. Os primeiros resultados desta inacreditável reviravolta na situação geral não se fizeram esperar. O governo britânico anunciou, pouco depois, que abandonava a preparação da lei de anistia autorizando o regresso à Irlanda do Norte de cerca de 150 membros do IRA refugiados em países estrangeiros.

Agente britânico

Mas um drama profundo começava, agora, a desenrolar-se. Denis Donaldson surgiu nas telas da televisão em fins de Dezembro de 2005 a fazer uma declaração que deixaria atônito o tumultuoso mundo em que os negócios da Irlanda se desenvolvem. No fim de contas, era um duplo agente e trabalhara para os serviços secretos britânicos durante os últimos vinte anos. A sua missão consistia em fornecer informações àqueles serviços quanto às atividades militares do IRA e aos projeto políticos do Sinn Fein. Na mais inconfortável das posições, Donaldson foi refugiar-se numa vida privada distante e ficou à espera de que o matassem. Ou o IRA pela duplicidade dos seus atos, ou o MI5 e o Special Branch por ter revelado a natureza da sua condição de agente britânico em serviço no Ulster e, especialmente, no palácio de Stormont. Tão insustentável era a sua situação que, se o não liquidassem aquelas organizações teria, eventualmente, de se suicidar no caso de possuir coragem para tal. Mas os serviços de informação do IRA diziam que o desprezavam e não perderiam tempo com ele. Pelo contrário, os serviços secretos britânicos mantinham um comprometedor silêncio. Esta posição causava mistério. Inexplicável, provindo de onde procedia, dava lugar a uma perplexidade intensa.

Quem matou Denis Donaldson?

A 6 deste mês, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, e o seu homólogo da República da Irlanda, Bertie Ahern, voavam para Belfast com a finalidade de iniciarem um novo ciclo de conversações de paz, quando lhes foi anunciado o assassínio de Denis Donaldson. O corpo do agente duplo tinha sido encontrado numa pequena casa agrícola perto de Glenties, província de Donegal (República da Irlanda) para onde fugira em janeiro. Os assassinos tinham-lhe amputado a mão direita antes de o liquidarem. A especulação começou. “Foi o IRA!”. “Foram republicanos dissidentes!”. “A polícia irlandesa já o tinha avisado”. A verdade é que os derradeiros quatro meses da sua existência foram vividos num terror intenso. Quem viria matá-lo? E quando?

Na vila de Glenties não se falava de outra coisa. Agora, todos recordavam que Donaldson recebia visitas de gente jovem com fala de Belfast. Eram os filhos e os sobrinhos. Mas ninguém sabia quem era aquele homem antes de aparecerem por ali os jornalistas e os fotógrafos do Sunday World. Tinham-no visto, é certo, ocasionalmente, ao almoço no Highland Hotel ou a tomar bebidas no Leo’s Bar, do outro lado da rua. Também se notara que, ocasionalmente, se deslocara a Neenagh, no condado de Tipperary (República da Irlanda). Veteranos da luta em que a Irlanda do Norte mergulhou desde 1969, asseveravam que se Donaldson se refugiara naquela casa e naquela região seria porque o IRA, provavelmente, lhe oferecera uma espécie de anistia. De certo modo confiante em alguma proteção por parte dos republicanos já solicitara da autarquia local uma aprovação para obras na casa. Mas conhecida a sua morte, em Belfast e noutras localidades do Ulster apareciam inscrições sinistras nas paredes: “O MI5 e o Special Branch mataram Donaldson”. Entretanto, a família do assassinado emitiu um comunicado através dos advogados, Madden e Finucane, apontando responsabilidades aos serviços secretos da Grã-Bretanha. E afirmou, claramente, acreditar nas palavras do IRA que negou qualquer envolvimento no assassínio.

Como desaparecer do mapa

Quando a morte de Denis Donaldson se tornou conhecida, os próprios serviços secretos confessaram: “A coberto da noite, rodeados por um cordão de agentes, atiradores especiais da polícia e soldados, informadores que haviam servido bem a Coroa durante os piores dias da guerra na Irlanda do Norte eram retirados de suas casas no caso de suspeitar-se de que poderiam ser expostos. (…) Se decidem, rapidamente, aceitar a nossa oferta de uma vida nova no estrangeiro, são transportados com as respectivas famílias para um quartel do exército ou para uma esquadra da polícia”.

“Em vinte e quatro horas, um avião ou um helicóptero militar procede à sua recolha levando-os para uma base militar em plena Grã-Bretanha e, aí, serão interrogados quanto a tudo o que sabem. Depois, estuda-se a oferta de opções relativamente a locais para onde poderão ir viver. São informados das múltiplas condicionantes a que essa vida nova pode obrigar e de como devem evitar ser descobertos. A Grã-Bretanha tem acordos recíprocos com os serviços de intelligence de outros países, incluindo os Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá no sentido de fornecer aos agentes duplos em fuga um passaporte e uma nova identidade”.

“Se o informador escolhe, de fato, mudar-se para o estrangeiro, uma equipe de especialistas oriundos do seu novo país saberá onde colocá-lo e à sua família – numa zona remota ou no anonimato de uma grande cidade. Nem sequer a polícia local será informada de quem são ou da sua presença. A Grã-Bretanha colocará à disposição destes novos cidadãos uma anuidade de entre 28 e 42 mil Euros. Todas as medidas são tomadas para que qualquer comunicação com familiares no Ulster não possa deixar rasto quanto ao país onde se encontram. Há um serviço postal especial que não requer carimbo do local de origem, ou selos”.

Denis Martyn Donaldson concordou trabalhar para os britânicos como agente remunerado em 1980, e entregou-lhes uma lista discriminando os contactos do IRA no estrangeiro. Chefe dos serviços de administração do Sinn Fein no parlamento de Stormont a partir de 1998, era visto, invariavelmente, como um republicano convencional. Contudo, a sua alegada antipatia pelos britânicos era falsa, o que ficou provado. Deu-lhes a sua integridade. Nada recebeu. Não lhe fizeram uma oferta de fuga. E porquê? Porque, apesar da duplicidade que o perdeu, a sua alma continuava irlandesa, católica e republicana.

Por Manoel de Lencastre

Reproduzido do jornal Avante!