Adalberto Monteiro lança em Recife 'As Delícias do Amargo'

Numa das melhores passagens de As Delícias do Amargo & uma Homenagem — Poemas, Adalberto Monteiro lamenta os dissabores de quem compõe versos: “os poetas sequer a arte os alimenta / É preciso mil outros dons / E uma centena

O evento ocorreu no restaurante cultural Sabor de Pernambuco, na Rua do Apolo, no Recife Antigo. Com uma faixa de trânsito e 300 metros de extensão, a rua é uma prova da vocação cultural pernambucana: só nessa viela, além do restaurante cultural, há teatro, cinema e casa de show. Foi nesse estado, também, que nasceram Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e outros grandes nomes da literatura nacional. Para o cinema contemporâneo, Recife se tornou reduto da mais inovadora produção do País, revelando filmes como Amarelo Manga e Cinema, Aspirinas e Urubus.

Nutrindo-se dessa vocação e aproveitando sua estada na cidade — onde participa do 2º Fórum Social Brasileiro —, Adalberto reuniu cerca de 30 pessoas e lançou seu terceiro livro de poemas. É também autor de Os Sonhos e os Séculos (1991) e Verbos do Amor & Outros Versos (1997). Poeta desde os 15 anos (atualmente, tem 48), calcula que escreveu cerca de 350 composições. Se contarmos apenas os poemas de As Delícias do Amargo, já são 144 — os quais Adalberto dividiu em seis partes. A última delas traz um emocionante tributo ao líder comunista João Amazonas (1912-2002). Para o poeta, ser editor de Princípios, revista criada por Amazonas, é um de seus maiores orgulhos.

A preocupação com temas da realidade se faz presente em diversos poemas, a exemplo de Chove sobre Bagdá (II) (republicação em 2003, com alterações, de um poema sobre a primeira Guerra do Iraque, em 1991). O futebol aparece em Quando Perdemos o Penta, dedicado ao presidente da Câmara Federal, Aldo Rebelo. Mas o ponto mais alto de As Delícias do Amargo está no lirismo introspectivo do poeta. O escritor Miguel Jorge, na apresentação do livro, afirma que Adalberto “melhor incursiona por suas vivências existenciais”, na medida em que “sua poesia de mobiliza entre corpo, pele, coração, razão, sensibilidade”. Seja nas composições eróticas, seja na produção política, o poeta procura ir na contramão do senso comum, revelando, em linhas gerais, por que o gosto amargo pode ser de bom gosto.

Em meio à cerimônia de lançamento de As Delícias do Amargo, Adalberto Monteiro concedeu a seguinte entrevista ao Vermelho Online.

Lançar o livro em Recife — e nesta rua tão repleta de atrativos culturais — é mais motivador?
Recife, tal como Olinda, é um território épico-lírico, que rende muitas lutas. O Brasil brasileiro começou aqui. É a terra de João Cabral de Melo Neto, de Manuel Bandeira e também de cantores e poetas populares. A vida nos dá privilégios, uns poucos — e menos ainda para os poetas e para o povo. Mas considero que é um privilégio estar agora nesta rua, com esta vizinhança, lançando meu livro. Na terra do açúcar, venho eu exaltar as delícias do amargo (risos).

E por que o título? O que há de delicioso no sabor amargo?
Esse título causa certo estranhamento, mas convida o leitor a sair, como diz o poema, dos “monótonos domínios do mel”. Convida o leitor a se adentrar a mares de prazeres desconhecidos ou mesmo amaldiçoados.

É uma resposta involuntária ao verso “Acabou-se o que era amargo”, de Paulo Leminski (risos)?
Veja bem: a cerveja é amarga. O chimarrão, bebida mais popular no sul do País, também é chamado de amargo. Entre as comidas, temos o jiló. O amargo foi desaparecendo do paladar das pessoas. Foi feita uma pesquisa segundo a qual as crianças de hoje não sabem o que é o amargo. Mas, quando precisamos recorrer a algo de ruim mas necessário, temos aí o amargo mais benevolente que se tem sobre o amargo. É quando falamos de um remédio amargo mas útil, por exemplo. O que eu tento fazer é tirar esse estigma. Ao fazer isso, a poesia está combatendo a rotina — essa coisa de as pessoas ficarem presas a um círculo de giz. Então venha para os domínios do amargo. Venha conhecer outros prazeres, outros sabores, outras pessoas, outros países, outros lugares. Venha abraçar causas libertárias.

Os mais de 140 poemas do livro surgiram em tempos esparsos ou num período específico, de inspiração?

A minha oficina é um tanto quanto lenta para produzir. Os livros compreendem um período relativamente longo e advêm de uma diversidade de motivações poéticas. Neste último, comparecem o lirismo, o erotismo, as temáticas social e ecológica, a poesia falando de si. E o livro também tem uma homenagem, na sexta parte — uma poesia em legado de um grande brasileiro, líder histórico dos comunistas, que é João Amazonas.

O livro é dedicado à memória de seu pai, Antônio Alves Monteiro. Qual foi o peso, a influência, que ele teve sobre sua formação? Como ele alterou seu jeito de ver o mundo?

No poema que dá título ao livro, digo que, entre tantas coisas que devo às severas regras de meu pai, está “a pluralidade do meu paladar”. Numa mesa nordestina, sertaneja, é proibido rejeitar alimentos, porque são frutos de muito trabalho. Meu pai foi um exemplo disso. De fibra, de trabalho incansável. Era um sertanejo com aquilo que Euclides da Cunha disse — “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. A vida exigia dele ser um homem bravio. Mas com o passar do tempo, atrás daquele sertanejo forte e rústico, foi deixando-se revelar um homem muito carinhoso com seus filhos, muito sensível com seus amigos e com os problemas que havia à sua volta.

Confira três poesias de As Delícias do Amargo & uma Homenagem — Poemas.

Da Fugacidade

Eu, alcoólatra de ti, vinho nobre.

Freqüento escolas de lentidão e paciência.

Se te beber com compulsão

Será um prazer inebriante

Mas me restará o cálice vazio, a solidão

 

Macio e tinto e quente

O encontro contigo,

Bebo-o homeopaticamente.

Mas a cada gota que de ti sorvo

Vais desaparecendo.

Quanto mais eu te possuo,

Mais eu te perco

 
 
?

Andando nessas estradas vicinais de Goiás

Vi, no lombo de um morro, gigantes de uma perna só.

Um bando deles, uma quantidade de uns duzentos.

Quase calvos, poucos cabelos embora bonitos

Pois que dispostos em longas mechas verdes

A perna única, elegante, fina,

A ventania a verga,

Mas ela mantém-se ereta,

Não reclama da sina.

 
 
As Delícias do Amargo

— Engole o choro menino, engole!

A austera mão paterna

Proporcionou-me prazeres

Que sem ela não desfrutaria jamais

 

É um ultraje, no sertão, rejeitar qualquer alimento.

Roer a casca da banana,

Comer vivo uns invertebrados

De nome saramundongo,

Puro azeite do coco tucum.

Peba, marreco, macaco, preás,

Miúdos de pássaros impregnados de pólvora

 

E o quiabo cozido?

Quanto difícil foi entregar-me

Ao seu visgo e gosma.

Era engolir um liso peixe, vivo.

 

Mas afora o exótico

Da culinária sertaneja,

A severa didática paterna

Conduziu-me às delícias do amargo.

Sorver lentamente a poupa do jiló,

Com os dentes triturar o miolo da jurureba.

[E mais tarde, já aqui, saborear

O amargado da gueroba].

Ah! travor adstringente, delícia adulta, rústica.

As papilas fremem

Ante este horror tão envolvente,

Passei a saber o quão ingênuo

É o reino do açúcar.

 

Entre tantos agradecimentos,

Devo às severas regras de meu pai

A pluralidade do meu paladar.

Sem o que teria ficado

Nos monótonos domínios do mel.

Por André Cintra,
enviado especial a Recife (PE)