“Código da Vinci” bebe na fonte do ocultismo reacionário

No bem fornido supermercado de bens místicos e religiosos, Dan Brown ajuda adeptos do faça-você-mesmo em matéria de religião a fazer bricolagens de crenças e práticas.

Como construir um mito moderno

por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa*
para o Terra Magazine

A esta altura, dificilmente terá sentido escrever mais alguma coisa para explorar e criticar as elucubrações histórico-religiosas do "Código da Vinci", de Dan Brown. À disposição nas livrarias e bancas de jornais, já há em português cerca de duas dúzias de obras "desmascarando", "decifrando", "quebrando", dando "respostas", "seguindo o rastro", sentindo as "vibrações" e explicando o "ABC", a "fraude", ou "a verdade por trás" do best-seller estadunidense, discutindo-o com a seriedade devida a um Novíssimo Testamento.

Isto não inclui os livros, apresentados como não-ficção, que precederam e, em maior ou menor grau, inspiraram Dan Brown, como "O Santo Graal e a Linhagem Sagrada", "A Linhagem do Santo Graal", "A Grande Heresia" e "Rex Deus". Nem os romances com temas análogos, como "Maria Madalena – A Mulher que Amou Jesus", "O Enigma Maria Madalena" e "Os Filhos do Graal". Quem quer que se interesse pelo assunto, seja para refutar esse veio de ficção herética, seja para se aprofundar nela, já tem com que se ocupar por muito tempo.

Mas talvez ainda valha a pena perguntar pela razão que leva tantas pessoas a se interessarem – ao que parece, cada vez mais – por discutir visões heterodoxas da vida de Jesus. Ao que tudo indica, a visão tradicional explicitada pela última vez no filme "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, perdeu seu apelo secular.

A mentalidade moderna já não sabe o que fazer com a estranha teologia da segunda pessoa do Deus trino que se torna homem e sacrifica a si mesmo para redimir a humanidade de um pecado supostamente cometido milênios antes por um casal de ancestrais, em cuja existência literal só integristas e fundamentalistas ainda acreditam. Tudo isso está em completa dissonância com a ciência, a lógica, a ética e a estética do século XXI.

Mas as sagas bíblicas e a figura do carpinteiro de Nazaré continuam importantes demais para serem esquecidas ou relegadas a coletâneas de contos de fadas. Continuam a pulsar no inconsciente como sonhos coletivos da maior importância para o Ocidente. Quem descartou a interpretação tradicional ainda busca por quem lhe diga o que, afinal, significam, qual é "a verdade" do mito.

Isto inclui até mesmo o caso extremo daqueles que negam a existência histórica de Jesus de Nazaré como ser humano e defendem que sua vida e identidade foram construídas, de cabo a rabo, a partir de protótipos pagãos como Osíris, Dioniso e Mitra e do mito hebreu do Messias, sem qualquer base real.

Os radicais estão certos em apontar que não há testemunhos contemporâneos da existência de Jesus. A primeira alusão não-cristã a Jesus, a do historiador judeu Flávio Josefo, é de autenticidade muito discutível. Os textos autênticos mais antigos a citá-lo são as epístolas de Paulo, que diz não tê-lo conhecido em vida. Os evangelhos são mais recentes e de autoria de discípulos que também não presenciaram os fatos. Nenhum especialista moderno acredita que sequer aqueles atribuídos a "Mateus" e "João" tenham sido de fato escritos por apóstolos.

Mas não deixa de ser necessária uma fé paradoxal para supor que Paulo e a comunidade palestina dos primeiros apóstolos, que certamente existiram e foram judeus, tenham se reunido para conscientemente forjar do nada uma história tão contrária à expectativa e à sensibilidade religiosa da esmagadora maioria de seu povo.

Essa é uma narrativa quase tão fantástica quanto a do próprio "Código da Vinci", se não quanto a da própria teologia ortodoxa. E não deixa de ser a construção de mais uma versão do mito. Uma narrativa que reinterpreta todo o cristianismo e a história do Ocidente como o mais vasto e duradouro dos conluios do obscurantismo contra a razão e o bom senso.

Em termos de teorias da conspiração, um non plus ultra. Mas essa elucubração que se quer racionalista não seduz fãs das idéias como as exploradas pela ficção de Dan Brown, que não estão em busca de racionalismo, ainda que fantasioso, e sim de matéria-prima para sua própria religião.


O supermercado religioso

A versão, digamos, madalenista do mito não é muito mais plausível. Para resumir o núcleo do argumento comum aos autores que inspiraram Dan Brown, Maria Madalena – e não o apóstolo João – seria a autora do quarto evangelho e a "discípula amada". Não só teria sido a seguidora mais devotada, como a líder de direito dos apóstolos, a mãe legítima dos filhos de Jesus (ou, pelo menos, de uma filha), a outorgadora do título de "Cristo" ou "Messias", ou seja, "Ungido" (com óleo de nardo, em Betânia) e a responsável pela "ressurreição".

Segundo um desses autores, Madalena teria subornado os soldados romanos para não quebrarem as pernas de Jesus como se costumava fazer com os crucificados, encerrar o suplício mais cedo que o costume e olhar para outro lado quando o crucificado fosse retirado ferido e inconsciente, mas vivo (a lança que a lenda católica atribui a "São Longuinho" não teria desferido um golpe de misericórdia, mas um simples cutucão). Dias depois, o Jesus reanimado seria anunciado aos apóstolos fujões.

A elucubração segue com uma lenda popular da Provença segundo a qual Madalena viajou de barco para essa região da França, acompanhada de parentes e amigos: Maria Salomé (irmã de Maria de Nazaré, sogra de Madalena, e mãe dos apóstolos João e Tiago maior), a cunhada Maria Jacobé (mãe de Tiago menor e Judas Tadeu) e os irmãos de Madalena, Lázaro e Marta.

Segundo as teses "madalenistas", no grupo estaria incluída também a prole de Madalena com Jesus: uma menina chamada Sara e, segundo alguns, também um menino chamado Tiago. De fato, há na Provença e Camargue túmulos atribuídos às "três Marias" e a Sara – que na versão tradicional era uma criada egípcia, mais tarde tomada pelos ciganos como sua padroeira.

Sara e Tiago teriam iniciado uma longa linhagem, protegida por um círculo fechado de iniciados nos ensinamentos mágicos e esotéricos de Jesus e Madalena, talvez trazidos do Egito por João Batista. Esta dinastia sagrada – e não o cálice usado por Jesus na Última Ceia – seria o Santo Graal buscado pelos cavaleiros do ciclo arturiano: o nome, supostamente, seria anagrama de "sangue real". Jesus teria vindo para revelar um mistério e não para redimir a humanidade. Sua morte na cruz teria sido ilusão ou embuste.

Existe nessa narrativa uma curiosa disposição de unir o cristianismo àquilo que sempre foi visto como um oposto irreconciliável e mesmo como sinal de pacto com o demônio – a tradição mágica-esotérica – em um novo mito que também dê lugar a um papel central da mulher, da matéria e da sexualidade, presente no suposto "casamento sagrado" de Jesus e Madalena e também nas alusões a misteriosos ritos sexuais praticados por seus herdeiros, que evocam tanto as concepções neopagãs e esotéricas quanto as metáforas dos alquimistas.

Esse quadro parece conciliar valores modernos e aparentemente progressistas, como o feminismo e a idealização do amor sexual, junto com uma abertura para todo tipo de símbolos e fantasias pagãs e cristãs. O sucesso do romance e da literatura que se forma em suas margens apóia-se no aumento do isolamento do indivíduo imaginado como autônomo e no aprofundamento da hegemonia, mesmo fora da esfera econômica, da idéia de competição e livre mercado, em detrimento dos antigos monopólios de tradições religiosas.

É um supermercado bem fornido de bens místicos e religiosos, dos quais os adeptos do faça-você-mesmo em matéria de religião podem fazer bricolagens de crenças e práticas a seu gosto. Os resultados podem parecer convincentes, ao menos para seus inventores e não mais fáceis de provar ou refutar racionalmente que as crenças mais antigas. Infelizmente, é preciso convir: do ponto de vista da profundidade, da consistência e da beleza, essas teologias feitas em casa quase sempre estão para as grandes religiões tradicionais mais ou menos como o pôster na parede do quarto está para a Capela Sistina, ou o McDonald's da esquina para a grande mesquita de Córdoba.


Material de segunda

Os produtos da loja de materiais de construção na qual se abasteceu Dan Brown, por exemplo, são particularmente heteróclitos, de má qualidade e feitos de matérias-primas extremamente duvidosas. Por mais que apele a leitores que se querem modernos, esclarecidos e liberais, foram quase todos fabricados em fundos de quintais obscurantistas e reacionários.

O núcleo da elucubração descende, como já se escreveu muitas vezes, de um certo ocultismo semicristão, reacionário e monarquista que se desenvolveu na França dos séculos XIX e XX, exemplificado pelas especulações de René Guénon. Um ramo desse – o Alpha Galates, liderado por um certo Pierre Plantard – apoiou e tentou influenciar o regime colaboracionista do Marechal Pétain, sem muito sucesso. Exatamente como um similar italiano algo mais ousado, criativo e francamente neopagão, Julius Evola, quis fazer com Mussolini.

Anos após a libertação e a queda do regime de Vichy, Plantard voltou à carga: declarou-se descendente de Jesus e dos reis merovíngios e pretendente ao trono da França. Em 1956, inventou o "Priorato de Sião" e lhe atribuiu raízes medievais. Nos anos 80, recuperou notoriedade ao reelaborar sua história em novo livro. Processado por fraude em 1993, safou-se com uma simples advertência de um juiz que o considerou um maluco inofensivo. Morreu em 2000. O "Merovíngio" de Matrix Reloaded é uma homenagem tardia a esse escroque místico-religioso.

Os reis merovíngios de fato se disseram descendentes de David, atribuindo-se um parentesco com Jesus. E também da sereia Melusina, a inspiradora da Pequena Sereia de Andersen. E também de Odin, Príamo, Helena de Tróia e o que mais pudesse ilustrar as raízes obscuras desses chefes bárbaros levados, pelos acasos da história, à cabeça de um grande reino. Se é para acreditar que descendiam de Madalena, porque não também da Pequena Sereia de Andersen?

Alguns autores ligaram outras famílias à suposta linhagem de Jesus e Madalena, às vezes para apoiar obscuras pretensões monarquistas. O livro de Laurence Gardner "A Linhagem do Santo Graal", por exemplo, foi patrocinado pelo personagem que foi apontado pelo autor como o legítimo herdeiro de Jesus – Michael Stewart, conde de Albany, suposto descendente dos Stuart, presidente do conselho europeu de príncipes e pretendente ao trono escocês.

Ao longo dos séculos, os iniciados nos mistérios do Graal, liderados por um misterioso "Priorato de Sião", teriam incluído os cátaros (cristãos dissidentes da Idade Média, exterminados no século XIII), os templários (membros de uma ordem religiosa de cavalaria, condenada por suposta heresia no século XIV), Botticelli, Leonardo da Vinci, Nicolas Flamel (o mesmo de Harry Potter e a Pedra Filosofal), Robert Fludd, Isaac Newton, Robert Boyle e vários maçons e rosa-cruzes.

Cátaros e templários nada tinham a ver com especulações mágicas e esotéricas. Os cátaros, ou "bons cristãos", como preferiam ser chamados, consideravam-se seguidores da simplicidade do cristianismo primitivo em oposição às adulterações da Igreja oficial. Ainda mais que a Igreja oficial, rejeitavam a matéria e condenavam a magia e o ato carnal. Consideravam o sexo um pecado até mesmo no matrimônio. Atribuir-lhes práticas astrológicas e a concepção de um "casamento sagrado" entre Jesus e Madalena é um completo disparate.

Quanto aos templários, eram católicos fanáticos, tão ortodoxos quanto se poderia esperar de nobres iletrados improvisados em monges guerreiros – até o seu último grão-mestre, Jacques de Molay, era analfabeto. Alheios a complicações teológicas, violavam ocasionalmente as prescrições do Vaticano por pura ignorância. Sua condenação por heresia, com base em confissões extorquidas por tortura, foi armada pelo rei francês Filipe IV e pelo papa Clemente V, para se apoderar de suas riquezas e de seu poder. Foi muito depois que maçons e iluministas em busca de uma "história sagrada" alternativa, tomaram as dores dessas vítimas da Inquisição e viram nelas, anacronicamente, seus precursores.

Antonio Luiz M. C. Costa formou-se em engenharia de produção e filosofia, fez pós-graduação em economia e é um entusiasta das ciências sociais e naturais. Ex-analista de investimentos, atua no jornalismo desde 1996.