Faz escuro, mas eu canto

O poeta Thiago de Mello festeja 80 anos com poesia. Relança a obra completa, prepara livros inéditos. Numa entrevista concedida ao jornal O POVO, de Fortaleza/Ce, o poeta antecipa os novos projetos e fala da vida consagrada às u

O poeta Thiago de Mello acordou no dia 30 de março embalado por crianças e adolescentes. Na casa onde mora à margem direita do Paraná do Ramos, o braço mais comprido do Rio Amazonas, que enfeita Barreirinha, no coração da Floresta Amazônica, o poeta completou “duas vezes 40 anos”, com ele faz questão de dizer. É tempo de festa. Porque Thiago de Mello festeja a vida como poucos. E agora mais do que nunca.

No final dos anos 70, quando o cacetete e as botas militares ainda governavam o País, Thiago largou o exílio e foi se embrenhar na Floresta. À beira das águas começou a luta pela preservação do maior patrimônio brasileiro da biodiversidade mundial. A batalha ecológica veio aliar-se às lutas pelos direitos do homem, pela liberdade e pela esperança. As chamadas ‘utopias’. “Eu só consagro a minha vida a causas utópicas, mas que são realizáveis, que são possíveis”, afirmou o poeta à reportagem de O POVO, no fim de tarde da última terça-feira. Em passagem por Fortaleza fez palestra, foi homenageado pelo Cine Ceará. Aplaudido de pé, recitou poesia, beijou Ariano Suassuna e deu risadas (raras).

O poeta com alma de filósofo traduz a vida em versos. É ele mesmo quem diz: “Não faço poemas como quem chora/ não faço versos como quem morre/ (…) Faço poemas como quem faz amor”. E as musas não lhe fazem falta. Sopram-lhe na alma as canções que voam pelo mundo num jogo de encontro e reencontro do poeta com o eleito dos seus versos: o homem, e suas inquietudes, incertezas, esperanças. O autor do Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente) aprendeu cedo que a palavra é arma cortante. Moço, viveu na ditadura Vargas. Adulto e diplomata enfrentou os militares no Brasil. Refugiado no Chile, foi quase fuzilado no sangrento golpe que depôs Salvador Allende em 1973.

Sobreviveu à base de poesia. E dela vive até hoje. Aos 80 anos prepara o relançamento da sua vasta obra pela Editora Bertrand. Em conversa com O POVO, Thiago de Mello antecipa fragmentos de poemas que compõem dois livros inéditos que o poeta prepara, ora sob o movimento das estrelas flutuantes da Floresta que o hospeda, ora sob a luz do fim de madrugada.

O POVO – Você completou 80 anos no mês de março deste ano…
Thiago de Mello – No dia 30 de março, acordei com crianças, adolescentes e professores na minha casa que é um pouco dentro d´água e eu percebi que havia feito duas vezes 40 anos. Porque eu trabalho muito mais hoje do que nos primeiros 40. Minha esperança é crescente. Então, sou um caboclo que fez duas vezes 40 anos.

OP – Quando você decidiu voltar a Barreirinha (Manaus), afirmou numa entrevista que queria aprender. Agora, com mais de 20 anos de convivência com o povo das águas, mais de 50 de poesia e 80 de vida, o que você aprendeu lá?
Thiago de Mello – Eu quero esclarecer que fui morar lá porque os meus alunos na Universidade da Alemanha, em seminários na França, sabiam muito mais da situação da Floresta Amazônica do que eu. Voltei ao Brasil, antes mesmo da Anistia, por isso fui preso. Eu decidi voltar a viver na floresta para poder fazer a minha parte para a preservação dela. Contra a opinião dos meus amigos mais queridos, companheiros mais amados, com o argumento, que é certo, de que no Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza, Recife a minha voz tem mais peso do que na floresta. Alguns diziam: “Você vai pra lá, ninguém ler nada lá. Você não vai ter com quem conversar”. Mas eu aprendi muito sim. Aprendi mais do que dei. Estou lá há mais de 25 anos porque eu acho que preservar a Floresta significa sobretudo servir à elevação da qualidade de vida do seu povo e fazer com que esse povo tenha consciência de que o papel principal é conscientizar o povo dos estados amazônicos, mas também o povo brasileiro de que a Floresta não é como querem o império americano, como pretendem os europeus, que aquilo seja um patrimônio da humanidade. A Floresta Amazônica é um patrimônio dos brasileiros. A maior riqueza da floresta é a biodiversidade, é fonte de vida que está sendo queimada, devastada, cada dia mais. Meu dever é tratar de conscientizar. Essa é uma das causas que eu consagro a minha vida. É uma causa utópica. Eu só consagro a minha vida a causas utópicas, mas que são realizáveis, que são possíveis.

OP – O homem é a existência da sua arte. Você é um pregador da paz e da esperança. O que a poesia tem a dizer hoje nesse mundo tão conturbado e dado a tantas incertezas?
Thiago de Mello – Essa sua pergunta é muito boa porque o que eu pretendo dizer amanhã (ontem, durante seminário), o que eu acho o dever de cada artista, não do poeta, mas de cada artista brasileiro e latino-americano é que nossa arte deve cada dia mais ser capaz de uma linguagem acessível a um número maior de pessoas, ao leitor comum, ao leitor que não fez uma universidade. Qualquer pessoa que aprendeu a ler bem pode ser sensível e captar a mensagem que traz um poema, um conto, um romance, qualquer obra literária. Quero esclarecer que nada é mais livre do que a criação artística. Se na pintura alguém pretende fazer arte abstrata tem todo direito, mas acho que essa arte é feita para as elites, para uns poucos. Não se deve escrever para iniciados, para converter convertidos. Que nosso texto seja claro, sem jamais perder a qualidade artística. A poesia, como toda arte, deve ter uma finalidade estética, mas uma utilidade ética, que é discernir a vida, do homem; os habitantes, do planeta. Eu escrevo sempre pensando no meu povo e no povo latino-americano, mas fico sempre surpreso quando sou chamado para um congresso na Índia e os meus poemas são recitados lá. A esperança é universal, as desigualdades sociais são universais também. Nesse instante que estou conversando contido, estamos num momento em que o apocalipse está ganhando da utopia. Faz tempo que fiz a opção: entre o apocalipse e a utopia, eu fico com a utopia. O apocalipse que eu falo é a existência, nesse momento de quase 2 bilhões de famintos no planeta Terra. Às vezes eu fico pensando sozinho lá na Floresta olhando as estrelas – lá as estrelas são diferentes. Na cidade grande parece que as estrelas estão pregadas no céu. Lá na Floresta as estrelas flutuam, a gente sente como se elas estivessem mais próximas de nós. Eu fico pensando no robô que a tecnologia, o avanço imenso da ciência serve mais aos corpos celestes do que aos corpos humanos. Eu padeço de uma enfermidade chamada indignação moral. Foi essa doença que me levou a lutar contra a ditadura mesmo sem pertencer a partido nenhum. Eu era diplomata. Estava no Chile na época do golpe e contra a opinião de Allende (Salvador Allende, presidente deposto do Chile em 1973, logo depois assassinado) a quem eu tive a alegria de servir anos depois já refugiado político no Chile, eu tive de renunciar. Ele e Neruda me diziam: “Não facilita o trabalho do inimigo”. Essa indignação moral se deu quando eu vi a ditadura militar (1964-1985) depois de já ter vivido ditatura de Vargas (1934-1945), no Estado Novo. Fiquei espantado em ver o Brasil com outra didatura e os militares foram capazes de implantar o terror e a perseguição. Foi quando eu escrevi o poema Estatutos do Homem.

OP – O poema Estatuto do Homem está completando 42 anos este ano. Agora, vivendo numa democracia, qual leitura você faz do poema. As necessidades do homem brasileiro e do homem em caráter universal continuam as mesmas?
Thiago de Mello – Exatamente as mesmas e talvez com mais veemência. Eu escrevi este poema em resposta ao primeiro ato institucional do governo militar. Escrevi pensando na vida do meu povo, no caminho de luz que o povo estava seguindo com as ligas camponesas, as lutas operárias, os sindicatos trabalhando. Eu achei que a minha arma era minha arte. Esse poema que não me pertence mais, foi traduzido em mais de 30 línguas, continua mais vivo do que quando escrevi, mais útil à consciência e ao caminho da esperança de que é possível a construção de uma sociedade humana solidária. Ele ganhou vida própria, saiu voando por aí. Onde eu chego o Estatuto vem ao meu encontro na Europa e no Japão.

O POVO – Você conviveu com grandes nomes da literatura como Pablo Neruda, no Chile, no Brasil, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira e muitos outros que já partiram. O que é saudade para você?
Thiago de Mello – Para falar de saudade é preciso falar de amor. Cada vez mais as pessoas se acanham de falar a palavra amor. E o pior é que não sabem que existem diversas formas de amar. E a amizade, porventura, seja a mais alta forma de amar porque não pede nada em troca. Ela se dá. E fica feliz com isso. O amor mais puro e límpido é que aquele que sabe que o preço do amor é amar. Eu tenho um poema que levei quase 40 anos para escrever porque eu tinha 40 anos quando uma linda moça de 30 anos, francesa, em Manaus, me ensinou a amar o amor corporal. Fiquei deslumbrado e ela me deu o inefável contentamento de me oferecer felicidade. Então… você quer saber o que é saudade? É uma forma de amor. A saudade mostra que você tem o poder amoroso de guardar aquilo que enriqueceu a sua vida.

OP – Quando sai o próximo livro?
Thiago de Mello – Acabei de falar com a minha editora, a Bertrand – que vai reunir toda a minha obra desde o primeiro livro de 1951 até agora. Ela disse que queria um texto de abertura para um livro meu e eu disse: “quem vai fazer é você”. Os livros saem no final do ano.

OP – E os textos inéditos?
Thiago de Mello – Eu estou com dois livros inéditos. Um concluído que não vai fazer a primeira edição fora do comércio. É um livro de uma conversa com meu filho que morreu – o Manduca. Ele tem quatro versos que dizem assim: “Por isso somos quem somos/ estrelas num só momento/ mas cujo brilho ameaça a ordem do firmamento”. São os quatro versos finais com os quais ele ganhou o Festival Internacional da Canção em Nancy (França). Esses quatro versos servem de epígrafe para um livro meu, Campo de Margaridas. Eu comecei a conversar com ele, quando ia acabando um caderno, ia para outro. No final de quatro meses, de repente, me dei conta: “Ô meu filho, eu nem sei que se tu estás me escutando. Acho bom a gente parar essa conversa”. Aí eu conclui assim: “Nem sei para que mundo dos mundos tu partiste/ Levando teu canto/ Não sei”. Fiz mais uns dois versos até que há dois meses, acordei com a luz da antemanhã, na doce luz da madrugada e escrevi o poema final que vai se chamar Lição das Águas. Agora estou escrevendo um poema. Vou te dar o título e vai ser um furo. É o seguinte: “Poema descritivo da situação quase desdenhável em que se encontra meu corpo, escrito com a ajuda indispensável da memória e algumas impertinências da imaginação” O poema está dividido em três partes: cabeça, tronco e membro. Da cabeça já terminei o crânio, já estou na face. Mas o que me deixa feliz mesmo é que sou um poeta querido. Em 1965, um verso meu foi usado numa passeata depois da morte de um estudante no Rio de Janeiro. O verso era o seguinte: “Faz escuro, mas eu canto”. Anos mais tarde fui jogado numa cela do Quartel da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Estava abatido. Era uma solitária: um quartinho apertado e muito alto. Quando a manhã foi surgindo, vi riscos nas paredes e depois vi palavras e lá estava escrito. “Faz escuro, mas eu canto/ Porque a manhã vai chegar”. Alguém havia estado naquele lugar antes e usou meus versos para ganhar força. Eu ganhei forças com ele também. Adeus.

 

 

Fonte: O POVO