`Lhumanité´: O futebol é nosso

Por Stéphane Guérard, enviado
especial do diário comunista francês
L’Humanité a Hameln, Alemanha
A pelota festeja a abertura da Copa do Mundo em terras alemãs. No vestiário, o dinheiro do fut

Deveria ser uma festa. Depois de quatro anos de espera, a Copa do Mundo de Futebol se inaugura com Alemanha-Costa Rica. Está até escrito no contrato entre o Comitê de Organização e a Fifa (Federação Mundial de Futebol Associação). Estádios rutilantes, acolhida sorridente, patrocinadores alegres e jogadores vitoriosos: como numa propaganda.
O futebol é certamente uma alegria. Mas ninguém é obrigado a acreditar em todas essas imagens. Por trás da bola, há todo o resto.


O esporte numa encruzilhada


Os males que já não se consegue ocultar são enormes. O Mundial de 2006 acontece no momento em que este esporte está numa encruzilhada.Guerra pelo dinheiro, pelo poder, pelos valores, tudo está em jogo. Mesmo diante da tela da TV, pode-se escolher para quem se torce. Assistir à privatização sem se mexer, ou retornar às bases: se o futebol e de todo mundo, o que ele produz também é.

Um bilhão e sete. A Fiva se prepara para auferir as mais polpudas receitas da história das Copas do Mundo. Com 110 milhões de euros (perto de R$ 310 milhões) de lucro. Até o momento, a Federação ficou com tudo. Pelo bem do jogo de bola? Vinte por cento vão, certo, para o desenvolvimento da modalidade esportiva nos quatro cantos do mundo. Mas 40% ficam no bolso da Fifa, para serem repartidos entre os felizes eleitos.

É uma bolada sedutora. Os primeiros a sacar da faca foram os autoproclamados grandes clubes europeus, agrupados sob o estandarte do G-14: e atacaram ali onde mais doi, na carteira. Não é normal que se empreste nossos jogadores às seleções nacionais sem contrapartida. Como indenização, reclamam 860 milhões de euros (R$ 2,4 bilhões).

A questão irá parar na Corte de Justiça das Comunidades Européias, por abuso da posição dominante, e para tristeza de Sepp Blatter, presidente da Fifa. “Agora eles querem dinheiro para fornecerem os jogadores que antes pilhavam na África e na América do Sul. O mundo virou de pontacabeça… Se o Chelsea pedisse dinheiro por Didier Drogba, a Federação da Costa do Marfim iria à falência”, comentou Blatter.


“Um jeito de fazer grana”


A Copa da Alemanha em 2006 será a última? Quantas seleções, entre as 207 da linha de partida, terão recursos para pagar seus jogadores?

O segundo maior acontecimento do planeta, depois dos Jogos Olímpicos, está ferido. Por trás da guerra pelo dinheiro se ocultam os jogos de poder. Como dizia Michel Platini, “o G-14 vai aonde tem dinheiro. Os grandes clubes querem cada vez mais. Para eles, o esporte é um jeito de fazer grana.”

A grana está na Copa do Mundo. Mas está também nas Copas da Europa, e nos campeonatos nacionais. Cada um trata de impor as suas competições caça-níqueis. Mas, depois do Mundial de 2002, com seus jogadores europeus exaustos, sabe-se que o calendário não é elástico. Quem controlar a agenda das partidas terá o poder financeiro e as chaves da distribuição do dinheiro.

Face aos clubes liberais, a Fifa sai em defesa dos valores. Sim “à boa governança e à transparência. Nosso esporte deve ter consciência de nossa responsabilizade social”. Sepp Blatter afirma isto e tira da manga 13 proposições para combater a corrupção, o racismo, a violência, as partidas arranjadas… Bota moral para resguardar o poder. Pouco importa a ele se o Marrocos, a Argélia ou mesmo o Iraque assistem ou não à Copa pela TV. Eles não pagaram.

Na falta de ética – casos de jogos combinados na Bélgica, escândalo dos árbitros comprados na Itália e a conspiração entre um dirigente do Juventus de Turim e um agente de jogadores –, os clubes profissionais cerram fileiras em defesa das leis do mercado. Quanto aos jogadores, não falam, mas embolsam.


O domínio dos europeus


Faz dez anos que a Europa dita suas vontades aos outros continentes, por intermédio das decisões de suas jurisdições. Sua concepção é simples: liberdade de circulação dos trabalhadores e livre concorrência.

Em 1996, a Lei Bosman liberalizou o mercado das transferências. É certo que ela permitiu quem muitos jogadores da Europa Oriental e do Sul do Mundo achassem trabalho. Porém quantos foram excluídos ou explorados?

Outra questão: o mercado está de olho nas transferências de jogadores bestiais, onde os desvios de recursos, os agentes bichados e os circuitos sujos são moeda corrente, conforme mostrou o processo sobre as contas do Olimpique de Marselha e do Paris-Saint Germain.

Como explica Pascal Boniface (“Futebol e mundialização”, Éditions Armand Colin), três fraturas percorrem o futebol atual: aquela entre o poderoso G-14 e os outros clubes dos cinco grandes campeonatos europeus (Inglaterra, Itália, França, Alemanha, Espanha); aquela entre os cinco países e as outras nações européias; e, por fim, aquela entre a Europa – o Norte – e os países do Sul, pilhados pela pela primeira.

O futebol mundializado está sob domínio europeu. Até os mágicos brasileiros se converteram ao rigor do jodo do Velho Mundo.


Por que não você?


A solução elevada: exceção esportiva. A expressão começa a abrir caminho nos corredores da Assembléia Européia.

“As virtudes sociais do futebol se espatifam porque os clubes investem cada vez menos no seu papel educativo”, deplora o eurodeputado Nikolaos Sifunakis, presidente da Comissão de Cultura do Parlamento Europeu. As leis do mercado não podem regulamentar as coisas do futebol. Não se trata, porém, de retornar ao amadorismo.

Para Toni Maunders, eurodeputado trabalhista britânico, reconciliar esporte com negócios depende de três proposições: excluir o futebol do mercado comum; esperar pelas decisões da justiça nos tribunais europeus e forçar o diálogo entre todas as partes presentes no setor. Para que elas tomam a palavra.

Por que não você? Telespectador, torcedor, consumidor, praticante… E sobretudo cidadão.