México em transe: Obrador tem razões para não aceitar resultado

Segundo a contagem final, o conservador Felipe Calderón venceu o progressista Andrés Lopes Obrador por 35,88% a 35,31%. Ou seja: uma diferença de 0,57 pontos percentuais.

Por Osvaldo Bertolino

Obrador disse que houve irregularidades na recontagem e convocou uma manifestação popular para sábado, na praça principal da capital, a Zócalo. "Não podemos reconhecer nem aceitar esses resultados. Há muitas irregularidades", disse ele. Obrador afirmou que vai contestar o resultado no tribunal eleitoral máximo do México, o que significa que a batalha judicial pode se arrastar até o início de setembro. O candidato progressista disse que pedirá ao tribunal uma nova recontagem, voto a voto, e não pelas atas de apuração. Para Obrador, a recontagem foi feita rápido demais para ser precisa. Ele também lançou dúvidas sobre a imparcialidade do Instituto Federal Eleitoral (IFE). "Ninguém pode se declarar vencedor", disse ele. "Há sérias dúvidas sobre o modo como o IFE agiu", afirmou. O Tribunal Federal Eleitoral tem até o dia 6 de setembro para declarar um vencedor oficial das eleições.

As forças progressistas mexicanas que apóiam Obrador temem que aconteçam novas manipulações para favorecer a direita. A convocação para a manifestação na praça Zócalo pode generalizar os protestos. No ano passado, Obrador liderou gigantescos atos contra um processo judicial que tentava impedi-lo de disputar a eleição presidencial. "Não deixe a democracia morrer", dizia uma mensagem estampada numa faixa. Outras acusavam o presidente Vicente Fox de traidor e ditador. Agora, além das suspeitas de manipulações, a rejeição às políticas conservadoras de Fox pode ser outro catalizador dos protestos.

Revolta de Chiapas

Fox fez um governo “de empresário para empresário”, como ele mesmo definiu a sua gestão. Ex-executivo da Coca-Cola, o presidente mexicano chegou a cogitar a introdução do ensino religioso nas escolas públicas. Isto num país de tradição anticlerical, onde durante décadas as procissões não podiam sair à rua devido a uma proibição legal. O povo mexicano historicamente tem enfrentado o conservadorismo. A imagem “de reino da paz”, ajudado pelo “grande irmão” do outro lado do Rio Bravo, construída pela agressiva política neoliberal do começo dos anos 90 quando o Partido Revolucionário Institucional (PRI) ainda governava o país, ruiu rapidamente.

Desde que os índios tomaram a cidade de São Cristóbal de Las Casas, em Chiapas, no primeiro dia de 1995, proclamando que eles eram produtos de 500 anos de luta, o México vive em transe. O ex-presidente Salinas de Gortari, que atacou os rebeldes de Chiapas com ferocidade, perseguido pela polícia se escondeu nos Estados Unidos com suas malas cheias de dólares. Ele, que havia negociado o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) com o ex-presidente norte-americano Bill Clinton às escondidas, foi o precursor da sucessão de presidentes neoliberais.

Insurgência mexicana

Os recentes acontecimentos no país explicam o sentido da histórica insurgência mexicana magnificamente descrita pelo jornalista John Reed no começo do século 20 em seu livro México Rebelde. A gigantesca praça Zócalo, cenário ao longo de cinco séculos de acontecimentos de significado antológico, transmite quase permanentemente imagens de uma sociedade em vésperas de revolução. Mas o sistema de poder está solidamente implantado. A dominação imperialista nunca foi tão ostensiva. A história das relações do México com os Estados Unidos, no entanto, mostra que os dois países estiveram em conflito praticamente em todo o decorrer dos séculos 19 e 20. Esse histórico decorre das ingerências de Washington no país, que sempre foram respondidas com altivez pelo povo mexicano.

Essa insurgência mexicana, ao contrário do comportamento dos representantes das forças conservadoras, mostra que o povo sempre se moveu na esfera da América Latina. O México é o grande exemplo revolucionário do continente. No seu território, houve uma revolução antes do que a da Rússia — em 1910. Os mexicanos lutaram e venceram, ao longo de sua história, três nações: Espanha, França e os Estados Unidos — que não puderam ocupar suas terras, ainda que tenham se apossado de parte delas. Até 1934, o país teve 73 movimentos revolucionários. Madero, Pancho Villa, Emiliano Zapata e Lázaro Cárdena, entre outros, são as grandes figuras que iniciaram os movimentos insurretos a anti-imperialistas.

Lideranças progressistas

As atuais eleições mexicanas, portanto, não são apenas mais um acontecimento corriqueiro na América Latina “redemocratizada” — como insistem em dizer os meios de comunicação conservadores. Elas se inserem num ciclo político que nasce dos escombros do projeto neoliberal inicialmente marcado pela condução anglo-saxã do ex-presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan e da ex-primeira-ministra da Inglaterra Margaret Thatcher, e fielmente seguido por seus correspondentes latino-americanos (Augusto Pinochet, Carlos Menem, Salinas de Gortari, Alberto Fujimori, Andrés Perez e Fernando Collor de Mello).

Eles ainda tentaram salvar o projeto do desastre, e lançaram uma segunda fase do neoliberalismo — novamente sob a condução anglo-saxã, desta vez com Bill Clinton e Tony Blair e com novos seguidores, entre eles Fernando Henrique Cardoso (FHC) no Brasil. Esse ciclo também se esgotou. E de sua ruína emergiram lideranças progressistas como Hugo Chávez, Néstor Kirchner, Tabaré Vázquez e Evo Morales. O México, portanto, faz parte da América que luta para se libertar dos laços históricos, incômodos e indignos com o imperialismo. A América ao Sul do Rio Bravo, apesar de alguns de seus governantes, continua a luta que já custou tanto sangue pela sua dignidade, libertação e honra. A contenda nessas eleições mexicanas faz parte dessa disputa.