Gianfrancesco Guarnieri morre aos 71 anos em São Paulo

O ator Gianfrancesco Guarnieri morreu neste sábado aos 71 anos em função de complicações geradas por insuficiência renal crônica. Ele estava internado no hospital Sírio-Libanês há mais de 50 dias.

Ele foi internado no último dia 2 de junho por conta de uma crise renal. O artista ficou fraco devido a uma hemodiálise (filtragem do sangue por meio de rim artificial).


Seu último papel na TV foi Peppe, na novela “Belíssima”, da Rede Globo. Devido à internação do ator, o teledramaturgo Silvio de Abreu teve de reescrever cenas da trama, que se encerrou no último dia 7 de julho.


Durante a novela, Guarnieri já se submetia a sessões de hemodiálise. No roteiro original, o personagem Peppe seria o responsável por revelar na trama quem é o filho da vilã Bia Falcão (Fernanda Montenegro).


Palavra como arma


A fala mansa e o jeito simpático escondiam os tempos de turbulência, nos anos 60, quando enfrentava a ditadura militar com a palavra, única arma que tinha. Defendia com unhas e dentes o que considera mais sagrado: o teatro e a liberdade de expressão. Com apenas 23 anos, em 1956, escreveu seu primeiro texto, que foi também o mais premiado, Eles não usam black-tie , montado pelo Teatro de Arena, em 1958 (que, na época, tinha o nome de Primeiro Teatro Circular da América do Sul).


“Depois do Arena e de Black-tie , os artistas adquiriram consciência de sua função na sociedade”, disse Guarnieri em uma entrevista dada à revisto Istoé. Duas décadas mais tarde, o texto foi adaptado para o cinema e recebeu, em 1981, cinco prêmios no Festival de Veneza, incluindo o Leão de Ouro de Especial do Júri.


Xica Maluca


Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri (nascido em 8 de agosto de 1934) nasceu em Milão, na Itália, filho do maestro e violoncelista Edoardo e de Elza, exímia tocadora de harpa. Para manter sua orquestra, Edoardo precisava do apoio do poder público italiano. “Mas ele era antifascista e, por isso, não conseguia emprego na Itália. A saída foi sair do país”, contava Guarnieri.


Vieram para o Rio de Janeiro, onde Guarnieri viveu a infância. Era garoto e ficava impressionado com a mendiga Xica Maluca, alvo de chacotas da garotada no bairro do Cosme Velho. Um dia, tomou coragem e se aproximou da velha. “Percebi que era uma injustiça o que faziam com ela. Tinha voz doce e me olhava como se pedisse cumplicidade.” Xica Maluca, provavelmente, foi a primeira personagem popular a despertar em Guarnieri o sentimento de indignação e injustiça.


CPC da UNE


Em 1961 Guarnieri participa da criação do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Liderado pelo dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, em seu curto período de vida o CPC produziu filmes, dezenas de peças e shows, editou livros, gravou discos e promoveu dezenas de cursos e debates.


Embora a diretoria oficial abrigasse no máximo 15 pessoas, trabalharam com ela dezenas de artistas, estudantes e intelectuais, entre eles Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. Quando a ditadura militar colocou a UNE caiu na ilegalidade, logo depois do golpe de 1964, o CPC também deixou de existir.


Simpatizante do Partido Comunista do Brasil, nos últimos tempos, Guarnieri contribuiu gratuitamente para a confecção do Curso Brasileiro de Vídeo, o CBV, visto por mais de 40 mil militantes do PCdoB no país. Em 2003, após cinco anos longe dos palcos devido aos seus problemas de saúde, voltou ao teatro para um espetáculo juvenil, “O Pequeno Livro das Páginas em Branco”.


Na TV, participou de diversas novelas, como “Esperança” (2002), “Terra Nostra” (1999), “Serras Azuis” (1998), “A Próxima Vítima” (1995), “Pátria Minha” (1994), “Rainha da Sucata” (1990) e “Cambalacho” (1986).


Sua carreira também foi marcada por longas-metragens, entre eles “O Grande Momento” (1958), “O Jogo da Vida” (1977), “As Três Mortes de Solano” (1978), “Asa Branca” (1980) e “O Quatrilho” (1995), além de “Eles Não Usam Black-Tie”.


Homenagem do IMG


No dia 18 de maio de 1998 o Instituto Maurício Grabois prestou uma homenagem ao ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri. A atividade, centrada em sua primeira peça “Eles não usam black-tie”, realizou-se no Teatro de Arena e contou com a presença entre outros do crítico literário Antonio Candido, do criador do Arena e diretor da primeira montagem José Renato, da atriz Lélia Abramo — participante da primeira montagem da peça e do filme e do ator, no filme, Renato Consorte.


Com a casa lotada, os convidados se revezaram no uso da palavra para homenagear o dramaturgo, relembrar as experiências do Teatro de Arena e destacar o valor da obra de Guarnieri na dramaturgia nacional. O professor e crítico de literatura Antonio Candido destacou “Guarnieri conseguiu essa coisa difícil de conciliar a verdade social do tema com a excelência literária do texto. Isso é o que se deve fazer em literatura, por isso o papel de Guarnieri foi histórico e aqui penso que estamos homenageando não apenas o eminente dramaturgo, o eminente ator, mas o homem que em dado momento da cultura brasileira soube criar um novo tema ligado à justiça, à luta, à reivindicação revolucionária.”


Walter Sorrentino, falando na época em nome do Instituto Maurício Grabois, disse que “Nós comemoramos essa nação nova que se formou, a despeito de todo o atraso, de toda a perversidade das estruturas sociais arcaicas que permanecem, mas uma nação que porta uma cultura original, que é base de uma civilização flexível, criativa, imaginativa. A homenagem à peça de Guarnieri e a ele próprio não é favor e nem exagero, pois ela se insere nesse movimento, pois como disse o professor Candido, a peça sacudiu um outro reduto da opressão cultural que sofre nosso povo. Em 500 anos de história nosso povo viveu sem nenhuma tipografia, viveu 434 anos sem uma Universidade digna desse nome, viveu 458 anos sem que o povo trabalhador e a luta de classes fosse retratadas artisticamente no teatro brasileiro. E com ‘Eles não usam black-tie' o povo chega ao teatro não como figurante ou como público, mas como protagonista da sua própria trajetória.”


Ao fim da homenagem o IMG entregou a Guarnieri uma placa e o teatro em absoluto silêncio, um silêncio que evocava todas as apresentações feitas por ele naquela casa, ouviu suas palavras: “É possível o ser humano vencer, mas com a consciência disso, com a consciência de que ele pode evoluir, na medida em que souber que jamais encontrará um mínimo de felicidade, se esta se basear na exploração, na miséria, na fome e na dor da maioria do povo desta terra. Quero dizer que há algum tempo estou me reanimando por dentro, e descobrindo que é possível continuar. Eu me lembro que no final da estréia do ‘Eles não usam black-tie', aqui em cima, muito emocionado subi numa cadeira e fiz um compromisso solene de que jamais abandonaria minhas idéias e tudo aquilo que me levou a escrever a peça. Eu fico satisfeito porque, olhando para trás, apesar dos momentos de desencanto, que cada um tem na sua vida, nunca dei pra trás. É preciso tomar todas as medidas, e urgente, para colocar um rumo novo. Quero dizer que chegaremos! Adiante, companheiros, chegaremos lá!”