José Arbex Jr: Ataque ao Líbano põe fogo no Oriente Médio

“Israel teria o direito de atacar e destruir bairros residenciais, causar o deslocamento de 20 por cento da população libanesa e, em três dias, assassinar brutalmente 350 crianças, mulheres e civis? Se a resposta for “sim”, então qual a diferença de natur

Admitamos, por um instante, que as explicações dadas pelo governo israelense para o ataque ao Líbano sejam verdadeiras: o grupo terrorista Hezbolá representa um perigo para a segurança nacional israelense, uma ameaça aos seus cidadãos, uma afronta à sua soberania, e deve, por isso, ser erradicado do mapa, ou pelo menos ser expulso para bem longe da fronteira com o Líbano. Ok. Ainda assim, Israel teria o direito de atacar e destruir bairros residenciais, causar o deslocamento de 20 por cento da população libanesa e, em três dias, assassinar brutalmente 350 crianças, mulheres e civis? Se a resposta for “sim”, então qual a diferença de natureza entre o exército de Israel e o Hezbolá? Desde quando a punição coletiva de um povo é um método aceitável de política externa? Por que o terrorismo de Estado é mais lícito do que aquele praticado por grupos?


 


Mas nem sequer as explicações do governo israelense são verdadeiras, como mostra o jornalista Uri Avneri, militante israelense que, há décadas, batalha por uma paz justa e duradoura entre os povos árabe e judeu:


 


“(A atual invasão) é semelhante à Operação Paz para a Galiléia de 1982. Naquela época, o Knesset (Parlamento) e o público foram informados de que o objetivo da guerra era 'expulsar os mísseis Katyushas (do Hezbolá) para uma distância a 40 quilômetros da fronteira'. Era uma mentira deliberada. Ao longo de onze meses antes da guerra, nem um só míssil Katyusha (nem um único tiro) foi disparado através da fronteira. Desde o começo, o objetivo da operação era ocupar Beirute e instalar um ditador fantoche. Como eu contei várias vezes, o próprio (Ariel) Sharon me disse isso nove meses antes da guerra, informação que publiquei, com o seu consentimento (mas sem revelar a fonte). (…) Todos entendem que a atual operação – tanto em Gaza quanto no Líbano – foi planejada pelo Exército e ditada pelo Exército. O homem que hoje toma as decisões em Israel é o (general) Dan Halutz (chefe do Estado-Maior).” (http://palestinechronicle.com/story-07170600448.htm, edição de 17 de julho).


 


Avneri esclarece, ainda, que o pretexto para a atual invasão – o resgate de dois soldados israelenses capturados e não “seqüestrados”, como quer a mídia (ser)vil, pelo Hezbolá –, é tão pífio e artificial como foi o motivo alegado para a invasão de 1982, isto é: o assassinato do embaixador israelense em Londres pelo grupo terrorista de Abu Nidal. “O assassinato não tinha nada a ver com o Líbano, e muito menos com a OLP, mas cumpriu o seu papel”, diz Avneri. Curiosamente, o mesmíssimo pretexto foi usado para o ataque a Gaza, em junho: libertar soldados “seqüestrados” pelo Hamas. Hum… O governo israelense poderia, ao menos, ter inventado historinhas diferentes.


 


Se a questão é mesmo acabar com a ameaça representada pelo Hezbolá, por que o ataque é feito justamente agora? A resposta é simples: a operação, além de ter como objetivo instalar um governo fantoche em Beirute (coisa que Sharon não conseguiu fazer em 1982), obedece hoje aos interesses imediatos de Washington. O pano de fundo de toda a questão é a situação insustentável que o brilhante gênio George Bush armou para si próprio no Iraque. É isso, aliás, que explica o pronto e incondicional apoio de Condoleezza Rice à invasão, contra os clamores da ONU e da comunidade internacional; também explica a recente e extraordinária remessa, ao exército israelense, de um carregamento de bombas estadunidenses de alta precisão, guiadas por laser e capazes de destruir bunkers de concreto, segundo informa o jornal New York Times, edição de 22 de julho.


 


Mas o que tem a ver a invasão israelense do Líbano com o fiasco de Bush no Iraque? Resposta: o Hezbolá, por mero acaso, é apoiado pelos governos da Síria e do Irã, também acusados de fomentar a resistência dos combatentes iraquianos. Os dois regimes devem ser devidamente “disciplinados”, como condição para permitir aos Estados Unidos construir uma paxamericana minimamente estável no Oriente Médio. Se essa condição não for cumprida, as tropas estadunidenses terão que permanecer indefinidamente no Iraque, pois a Casa Branca jamais poderá correr o risco de entregar o país, ou pelo menos as suas regiões mais ricas em petróleo – razão última da invasão de 2003 –, aos xiitas ou a quaisquer outras forças alinhadas aos governos “terroristas” da Síria e do Irã. Só que os gringos não podem permanecer no Iraque: 3.000 soldados já foram mortos, e a contagem não pára de subir. Chegamos, portanto, na raiz do problema: Damasco e Teerã devem se curvar, ou cair.


 


A invasão israelense constitui, portanto, apenas um desdobramento de uma estratégia arquitetada na Casa Branca e executada por Tel Aviv, em nome da pax americana. Essa perspectiva permite compreender, por exemplo, por que os Estados Unidos, aproveitando o grande impacto causado pelo assassinato do ex-primeiro-ministro libanês Rafik Hariri, em fevereiro de 2005, impuseram a retirada de tropas do exército sírio do sul do Líbano, obviamente abrindo o flanco para uma eventual invasão israelense. Simultaneamente, Bush tentou criar, no cenário internacional, as condições políticas para isolar e, eventualmente, atacar o Irã, a pretexto de impedir o desenvolvimento de seu programa nuclear (como, em 2003, o alvo eram as tais “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein).


 


Em síntese, é disso que se trata: patrocinado por Washington, o governo israelense pratica uma aventura bárbara e criminosa, ditada por interesses e conveniências estratégicas, obviamente contando, para isso, com a cumplicidade ativa ou o silêncio conivente e covarde das ditaduras e monarquias árabes. As demais potências – notadamente União Européia, Rússia e China –, mesmo tendo os seus interesses próprios contrariados pela política expansionista de Washington, não têm vontade política nem se sentem com força para impor qualquer limite real.


 


Nesse quadro, literalmente qualquer coisa pode acontecer, até mesmo o envolvimento dos exércitos da Síria e do Irã na guerra. Por outro lado, mesmo que os demais governos árabes se submetam docilmente aos desígnios de Washington, eles não controlam completamente as populações, cada vez mais miseráveis e revoltadas. Guerras civis podem se multiplicar pelo Oriente Médio, com conseqüências trágicas para o mundo todo, tanto em termos humanos quanto econômicos (o fornecimento de petróleo, nesse caso, seria fatalmente comprometido, pela multiplicação de atentados e destruição de oleodutos). A única coisa facilmente previsível é a de que a conta em sangue, suor e lágrimas será paga pelas camadas mais pobres e indefesas das populações árabe e judaica.


 


Em Israel, grupos mais lúcidos de ativistas – aqueles que não aceitam ser bucha de canhão da Casa Branca – articularam, imediatamente, manifestações contra a aventura criminosa do governo Olmert (aliás, Sharon; aliás, Halutz). Mas grande parte da população apoiava a invasão do Líbano, pelo menos no seu início. Novamente, é Avneri quem explica:


 


“O público israelense não está entusiasmado com a guerra. Está resignado, em clima de fatalismo estóico, por ser informado de que não há alternativa. E, de fato, quem pode ser contra? Quem não quer libertar os 'soldados seqüestrados'? Quem não quer remover os Katyushas e impor a trégua? Nenhum político se atreve a criticar a operação (exceto os parlamentares árabes, que são ignorados pelo público judeu). Na mídia, os generais reinam supremos… (Um exemplo: o canal de televisão mais popular de Israel convidou-me para uma entrevista sobre a guerra, depois de saber que eu havia participado de uma manifestação contra a guerra. Fiquei muito surpreso. Mas não durou muito – uma hora antes do programa, um apresentador me ligou, em tom de desculpa, e disse que havia cometido um erro terrível; na verdade, eles queriam convidar o professor Shlomo Avineri, ex-diretor geral do departamento de Relações Exteriores, que sempre, com certeza, justificará qualquer ato do governo, usando uma linguagem acadêmica pedante.)”


 


A cobertura absolutamente execrável da invasão feita pela mídia (ser)vil, aliás, é um capítulo à parte. Os “especialistas” que, de forma cínica, criminosa e irresponsável apresentam o terrorismo de Estado como uma política aceitável, justificada por “razões estratégicas”, deveriam pensar mil vezes naquilo que estão fazendo. Terror sempre gera mais terror e multiplica potencialmente, por todos os lados, o número de suas vítimas.


 


José Arbex Jr. é jornalista.