Oriente Médio: Carta branca aos incendiários

Com a cumplicidade dos EUA e Europa, e o aplauso dos neoconservadores, Israel aprofunda a guerra contra os árabes. Os poderosos do Ocidente querem a “guerra de civilizações”?, por Alain Gresh

Dezenas de civis friamente mortos no Iraque pelo simples fato de serem sunitas. Um crime sem precedentes no Oriente Médio desde a guerra civil libanesa de 1975-1976, quando militantes falangistas fuzilavam muçulmanos unicamente por serem muçulmanos. De acordo com a ONU, perto de 6 mil iraquianos foram mortos durante os meses de maio e junho.


 


No sul do Afeganistão, uma centena de outros civis foram as “vitimas colaterais” da ofensiva que as forças da coalizão chefiada pelos Estados Unidos continuam realizando para impedir o “retorno” dos talibãs. Os atentados suicidas, até então desconhecidos neste país, se multiplicam.


 


Em Gaza, 1,5 milhão de palestinos estão pressionados entre a ofensiva do exército e a decisão dos Estados Unidos e União Européia de congelar a ajuda direta. E a destruição causada no Líbano pelo bombardeio irrestrito da infra-estrutura, das cidades e vilas bloqueadas, poderá resultar em um conflito regional com a Síria e o Irã – enquanto o norte de Israel está paralisado pelos foguetes lançados pelo Hezbolá. A crise sobre o poder nuclear do Irã permanece aberta, enquanto Teerã ameaça se retirar do Tratado de Não-Proliferação Nuclear.


 


Parecia um mês de julho tranqüilo, três anos depois que, de um porta-aviões, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush anunciou o fim dos combates no Iraque com uma declaração marcial: “Missão Cumprida!”. Neste verão de 2006, a avaliação do aprendiz de feiticeiro explode com toda força: jamais na história recente, o Oriente Médio conheceu tantas crises intensas e simultâneas. Embora cada uma tenha sua lógica própria, estão ligadas por mil razões, tornando difíceis as soluções parciais e acelerando a corrida de toda a região em direção ao abismo.


 


“Nossa guerra”, dizem os neoconservadores


 


Quem começou? Para numerosos comentaristas, a causa está clara. É o Hezbolá que busca não apenas a destruição de Israel, mas, “mais amplamente, a desestabilização do campo ocidental”. Esta organização e seus comparsas aspiram nada menos que “a instauração de uma ditadura islâmica universal” [1]. Tal análise, que agora se impõe no mundo da mídia e da política, pode ser equiparada a dos neoconservadores norte-americanos: uma nova guerra mundial começou.


 


Michael Leeden, pesquisador do American Enterprise Institute, resume: «É uma guerra que acontece de Gaza a Israel, através do Líbano; e de lá ao Iraque, através da Síria. Os meios são diferentes: do Hamas, em Gaza, ao Hezbolá, na Síria e no Líbano, e à “insurreição”, com múltiplas facetas, no Iraque. Mas há um maestro atrás de tudo: a mollahcracia, o Estado fascista e revolucionário iraniano que nos declarou guerra há 27 anos e que deve agora acertar as contas” [2].


 


«É a nossa guerra», proclama orgulhosamente William Kristol, um dos principais ideólogos neoconservadores. [3] Diante do que será «uma empreitada geral de desestabilização do mundo ocidental” o governo israelense de Ehud Olmert está no “bom caminho”. O comunicado assinado pelo G-8 em São Petesburgo, enquanto o Líbano desaba sob as bombas, proclama que Israel tem “o direito de se defender”.


 


Quem começou? No dia 12 de julho, uma operação militar realizada pelo Hezbolá contra uma patrulha israelense deixa seis mortos e captura dois soldados. Uma tempestade num céu azul? É bom lembrar que escaramuças são freqüentes, principalmente em torno da zona contestada das fazendas de Shebaa, consideradas pelo conjunto do governo libanês como território ocupado; que os aviões israelenses violam todos os dias o espaço aéreo do Líbano; que no dia 26 de maio, Israel assassinou, no país do Cedro, um dirigente do Jihad Islâmico; que Israel mantém na prisão libaneses, entre os quais Samir Al-Qantar (desde 1978), Nassim Nirs e Yahya Skaf (desde 1982).


 


Por outro lado, se considerarmos que a ação do Hezbolá é ilegal, como qualificar a destruição sistemática do Líbano feita em seguida, tendo por alvos as estruturas civis, as cidades e pequenas vilas, com mais de 600 mil pessoas obrigadas a fugir do lugar onde viviam? Em Direito Internacional, no qual a comunidade internacional se apóia, isso tem um nome: “crime de guerra”.


 


O protocolo adicional I à Convenção de Genebra, de 1977, define claramente o princípio de proporcionalidade. Os ataques “são proibidos caso se possa esperar que eles causem perdas de vidas humanas entre a população civil, ferimentos em civis ou danos excessivos aos bens de caráter civil, em relação à esperada vantagem militar concreta e direta” [4].


 


Quem pode pensar um só instante que o objetivo alegado – salvar dois soldados – valha as múltiplas destruições e mortes provocadas pelos bombardeios israelenses? A vida de um árabe, de um libanês, valeria menos que a de um israelense? O resultado dessa ofensiva de Israel está longe de ser obtido. O Hezbolá é o mais importante partido libanês, fortemente implantado na principal comunidade (os xiitas), graças ao prestígio obtido com a liberação do sul do país em 2000. Tem 12 deputados no Parlamento e está aliado a importantes forças políticas, como a do General Michel Aoun, o Partido Comunista, o Partido Nacional Sírio, além de personalidades influentes: sunitas como Ossama Saad e Omar Karané, ou maronitas como Souleiman Frangie.


 


Considerá-lo como “um simples peão do Irã ou da Síria” é uma loucura. Anthony H. Cordesman, um dos mais influentes pesquisadores do Center for Strategic and International Studies, de Washington (de quem não se pode suspeitar que tenha simpatia pelo islamismo) declarou: “Os analistas e jornalistas deveriam ser prudentes e considerar apenas os fatos, ao falar do papel do Irã na crise atual. Numerosas fontes de informação – inclusive as oficiais e oficiosas israelenses – começaram a utilizar a crise libanesa para encontrar novas razões para atacar o Irã (…). O resultado é a transformação de suspeitas e fatos limitados em teorias de conspiração. Os serviços de informações norte-americanos não têm nenhuma prova que o Irã domine ou controle o Hezbolá, mas somente que este país é uma fonte essencial de financiamento e armamento deste partido”. [5]


 


Como em 1968, a busca de um pretexto


 


Entre os primeiros alvos da operação de “autodefesa” israelense, o aeroporto de Beirute. A história se repete. Em fins de 1968, o Oriente Médio ainda não tinha se refeito da guerra de junho de 1967, e a resistência palestina se organizava. A Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), um grupo radical, atacou em 26 de dezembro, no aeroporto de Atenas, um aparelho da companhia israelense El-Al, matando um oficial aposentado.


 


Um dos membros do comando era de origem libanesa e a operação foi atribuída ao Líbano. Dois dias mais tarde, um comando israelense destruiria treze aviões comerciais no aeroporto internacional de Beirute. O Conselho de Segurança condenou por unanimidade esta ação e pediu que Israel arcasse com os custos, o que nunca foi feito. A França declarou que o principio das “represálias” era inconcebível e o general De Gaule decretou o embargo de armas destinadas a Israel, recusando entregar 50 Mirages que já tinham sido pagos [6].


 


Um comunicado do Conselho de Ministros francês, de 8/1/1969, observou: “Feita a comparação entre o atentado de Atenas contra um avião israelense e a operação contra o aeroporto de Beirute, concluímos: na verdade, essas duas operações não são comparáveis. Em Atenas, tratava-se de uma ação organizada por homens pertencentes a uma organização clandestina. Em Beirute, a operação foi montada por um Estado com material militar, em particular os Super Frelon e os Alouettes de fabricação francesa, contra as instalações civis de um outro Estado”. Paris não hesitou em questionar “as influências israelenses que estão presentes dos meios de informação” [7]. Nesta época, o gaulismo não media suas palavras.


 


Há 40 anos começou a ocupação de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, sem esquecer a região síria do Golã. Apesar das inúmeras resoluções do Conselho de Segurança da ONU, apesar das declarações apaziguadoras, ratificadas pelos Estados Unidos, pela Rússia, pela União Européia e Nações Unidas, afirmava-se que o Estado Palestino seria criado antes do fim de 2005!


 


O ano de 2005 não marcou, contudo, nenhum avanço. As autoridades de Telavive não se cansavam de afirmar que Iasser Arafat era “um obstáculo à paz”. Porém, sua morte e sua substituição por Mahmud Abbas (Abu Mazen) não motivaram Ariel Sharon a renunciar a sua política “unilateral”. A retirada de Gaza, no verão de 2005, saudada pelos responsáveis políticos e pela mídia como “um ato corajoso”, dava um golpe mortal no que restava dos acordos de Oslo: o principio segundo o qual a paz passaria pela negociação bilateral. Para os palestinos de Gaza, a retirada não trouxe nenhuma melhora. Ao contrário.


 


Aos palestinos, novas provocações


 


Quando a colonização prossegue e se intensifica na Cisjordânia, e o “processo de paz” se resume em uma frase nas notas da “comunidade internacional”, o Hamas ganha a eleição em janeiro de 2006. Será realmente algo espantoso? Por terem “votado errado”, os palestinos são punidos, principalmente pela União Européia. Com aval da França, ela priva a Autoridade Palestina de ajudas diretas, contribuindo um pouco mais para o agravamento das condições materiais das populações e a perda da coesão das instituições palestinas.


 


E os foguetes que caem sobre a cidade israelense de Sderot, lançados de Gaza? Gideon Levy, jornalista israelense questiona: “O que teria acontecido se os palestinos não tivessem atirado os Kassams? Será que Israel teria suspendido o bloqueio econômico imposto a Gaza? Teria liberado os prisioneiros? Reencontrado os dirigentes palestinos e iniciado negociações? Estupidez. Se os habitantes de Gaza tivessem ficado tranqüilos, como Israel esperava, sua causa teria desaparecido da agenda – aqui e no resto do mundo. (…) Ninguém teria se preocupado com o destino do povo de Gaza, se eles não tivessem usado da violência. [8]”


 


Em 27 de junho, depois de forte tensão, todas as organizações palestinas (com exceção do Jihad Islâmico) assinaram um texto apelando para uma solução política baseada na criação de um Estado palestino limítrofe ao Estado de Israel e limitando as ações de resistência armada aos territórios ocupados. Este acordo abria uma via para a formação de um governo de unidade nacional, capaz de iniciar negociações de paz. No dia seguinte, o exército israelense “voltou” a Gaza, usando como pretexto o seqüestro de um dos seus soldados, mas na realidade para liqüidar o Hamas [9].


 


Aí também, a ação israelense – bombardeios de centrais elétricas e ministérios, prisão de dirigentes políticos e destruição de casas, utilização de civis como escudos humanos [10], inclui crimes de guerra. O governo suíço, depositário das convenções internacionais sobre Direito Humanos, declarou, em 4 de julho: “não há dúvida que Israel não tomou as precauções determinadas pelo Direito Internacional para proteger as populações civis e a infra-estrutura.”


 


Guerra contra os palestinos, guerra contra o Líbano. Essas duas ofensivas fazem parte da mesma estratégia: impor uma solução conforme os interesses de Israel. Nunca, depois de quarenta anos, a política israelense recebeu tanto apoio ocidental: poucas manifestações oficiais contrárias, salvo a do Vaticano, foram ouvidas.


 


Como fabricar organizações violentas


 


Mais uma vez, o mundo árabe exibe sua impotência. Os Estados árabes aliados aos Estados Unidos foram incapazes de fazer pressão sobre Washington. Contentaram-se em denunciar o Hezbolá e o Hamas, justificando assim a ação israelense. Saoud al-Faissal, ministro saudita das Relações Exteriores, pediu aos países não-árabes que se mantivessem afastados do conflito. Ele, evidentemente, não visava atingir os Estados Unidos, mas o Irã…


 


Como nota Abb-al-Wahab Badrakhan, editor do diário árabe Al-Hayat: “Todos os árabes, do Atlântico ao Golfo, sabem que a paz está mais do que morta e que os árabes foram enganados uma, duas, mil vezes. Eles não sabem como sair do pântano onde estão se afogando. Então, queiramos ou não, a palavra final fica com aqueles que nos qualificam de “extremistas” ou “aventureiros”. [11]”


 


O Hamas nasceu em 1987 em Gaza, ao fim de 20 anos de ocupação israelense, como resultado da primeira Intifada. O Hezbolá foi criado na luta contra a ocupação que resultou da invasão israelense ao país do Cedro em 1982. Que nova organização violenta surgirá da devastação atual do Líbano?


 


[1] Ler Gérard Dupuy, «Le G-8 hors-jeu» , Libération, 17/7/2006.


[2] National Review on line, 13/7/2006.


[3] Weekly Standart, 24/7/2006.


[4] Crimes de guerre. Ce que nous devons savoir, Editora Autrement, Paris, 2002.


[5] http//www.csis.org/media/csis/pubs/060715/hezbollat.pdf


[6] Ler Xavier Baron, Les Palestiniens. Genèse d’une nation. Seuil, Paris, 2003.


[7] Citado por Samy Cohen em De Gaulle, les gaullistes et Israel. Editor Alain Moreau, Paris, 1974.


[8] Haaretz, 9/7/2006.


[9] Convém lembrar que o Hamas respeitou o cessar fogo com Israel de fevereiro de 2005 até 10 de junho de 2006. Com a multiplicação de assassinatos e com o massacre de uma família palestina numa praia de Gaza, em 10 de junho, a organização rompe o cessar-fogo.


[10] Ler o relatório da organização israelense B’Tselen, www.btselen.org


[11] Al-Hayat, Beirute, 17 de julho.