Aversão a Lula faz grande imprensa “trocar” Chico por Caetano

Chico Buarque e Caetano Veloso lançaram trabalhos recentemente. Os CDs são de músicas inéditas, algo cada vez mais raro em suas carreiras. Na grande imprensa, choveram entrevistas, reportagens, críticas – uma enxurrada de textos motivada pelos lançamentos

No comando das publicações de maior alcance, a máfia burguesa não tentou esconder seu apreço repentino pelos discursos de Caetano. O elo entre mídia e cantor é a aversão ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Caetano, por destilar preconceitos e generalizações contra Lula, deixou de ser o anti-herói maldito – aquela celebridade que era exposta como polemista tolo ou artista decadente. Virou o Anti-Lula da vez. Entrou na lista dos queridinhos da máfia.


 


É o “complexo de Gabeira” atingindo um dos maiores ícones da MPB. Caetano ficou para o meio artístico tal qual o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ) é para a política: um inusitado paladino do atraso, que perdeu o espírito de combatividade tão marcante e essencial nos anos 60. Outrora expoentes da rebeldia progressista, Gabeira e Caetano já não podem se mascarar como líderes de contestação.


 


A exaltação ao músico baiano é uma contingência do jogo eleitoral. Historicamente, sua sem-cerimônia, sua acidez contra a crítica, seu apreço pela polêmica – tudo isso fez dele uma espécie de figura sob eterna suspeita. Chico Buarque, em contrapartida, nunca foi retirado do panteão em que a grande imprensa concordou em incluí-lo. Acontece que a possível – e cada vez mais provável – reeleição de Lula forçou a burguesia a dar a Caetano o protagonismo da cena.


 


Artistas e política
É um papel que já coube às colloridas Cláudia Raia e Marilia Pêra em 1989, ou a Regina “eu tenho medo” Duarte em 2002. Um colunista ironizou a situação ao dizer que a corrida presidencial de 2006 é uma espécie de disputa entre Chico e Caetano. Enquanto Chico segue como um dos mais célebres e lúcidos apoiadores de Lula – em quem votará pela quinta vez seguida -, Caetano acata o figurino da oposição. Com isso, vão para manchetes até frases verdadeiramente estúpidas do compositor, como “o Brasil vai mudar porque eu quero”.


 


A opção de não votar em Lula, segundo Caetano, é um ato de lógica. “Eu não sou burro, nem maluco, então não vou votar nele”, disse o cantor e compositor baiano ao jornal Folha de S.Paulo. Simples assim. É quase como dizer que quase 50% do eleitorado padece de alguma debilidade mental ou de um desvio psiquiátrico, já que metade dos brasileiros está com Lula. O pior é que, por mais tola que tenha sido a afirmação, também foi premiada como frase-título. Tudo o que Caetano fala sobre as eleições está autorizado a ir para as manchetes.


 


Para quem apóia Lula, o tratamento é outro. São permitidas manipulações das palavras alheias ao bel-prazer. Prova disso foi o modo porco como a mídia distorceu declarações do ator Paulo Betti em favor de Lula. Com Chico, a orientação é dar mais visibilidade às suas críticas ao governo – e não ao apoio convicto à reeleição. Suas citações chegam a ser reproduzidas com um tom de deboche, como se ele fosse um dinossauro empedernido.


 


Preconceitos em série
A adesão do cantor a Lula, no entanto, nunca esteve em xeque, conforme se pôde atestar, há pouco mais de duas semanas, no diário argentino La Nacion. Chico, em longo depoimento ao jornal, não dá margem à dubiedade. Sem eufemismos, o músico lamentou os escândalos em torno do governo federal. “Sim, as acusações são muito graves. Tudo o que surgiu é grave e destruiu o moralismo do PT”. Há críticas à timidez do governo em fazer as mudanças. Lula, na opinião de Chico, “não atacou a fundo” a desigualdade. O cantor diz: “Apoiei e apóio agora, mais discretamente, digamos, porque não posso dizer que esteja supersatisfeito com seu governo”.


 


No restante da entrevista, ou ao menos nos trechos que dizem respeito às eleições, Chico faz denúncias vigorosas contra a burguesia e o governo FHC. Só que essa parte ficou em segundo plano nos grandes meios jornalísticos. Se pudessem, esconderiam. O compositor carioca deixa claro que não considera “que o governo (atual) tenha sido mais corrupto que o anterior”. Segundo ele, “existe uma elite econômica que aprova e se beneficia do governo de Lula”. Essa mesma elite nutre “um preconceito racial contra Lula. Um preconceito muito grande”.


 


O cantor também opina sobre o conservadorismo da classe média brasileira “nos aspectos políticos e de comportamento”. “A maioria é contra todo tipo de mudança, como legalização das drogas, a favor da pena de morte e, apavorada com a insegurança, pede leis mais duras. Assim como nos anos 60 pediam a chegada da ditadura.” O viés progressista de Chico e a clareza de sua fala inviabilizam qualquer dúvida sobre sua opção eleitoral.


 


Vergonha do País
As elites econômicas, aponta Chico, sofrem “desse desejo do brasileiro ser branco, europeu ou norte-americano e renegar sua formação cultural, que é tão rica (…). Existe uma Brasil que se envergonha do Brasil. Lula é um representante do povo brasileiro, e isso ofende as elites. Pelo menos, Lula quer atender demandas sociais mais do que o pessoal do PSDB.”


 


Na grande imprensa, o foco da entrevista foi outro. O leitor que ficou nas manchetes da mídia burguesa pôde subentender que Chico apóia a reeleição tão-somente por falta de alternativa. A mídia tradicional insinua que o cantor desqualifica Lula diretamente, o que não ocorre em nenhum momento. No fundo, é inexplicável que as ressalvas de Chico tenham mais espaço privilegiado do que suas acusações contra a elite. Em qualquer país com uma grande imprensa mais séria, Chico teria desencadeado uma onda de reflexões sobre o ódio racial da burguesia. Não no Brasil com a elite à frente da mídia.


 


As questões sobre desigualdade (racial, social, qualquer uma) só costumam aparecer na grande imprensa para depreciar os movimentos pela igualdade e as políticas auto-afirmativas. Ou quando um figurão do jornalismo tradicional, como Ali Kamel, atreve-se a dizer que o racismo no Brasil não passa de picuinha, um chororô da população negra. Vivemos, segundo esse jornalista picareta, sob “o ideal de uma nação orgulhosa de sua miscigenação, em que raça e cor não importam”. Para repercutir os clichês de Ali Kamel, espaço na mídia sempre há.


 


A bola da vez
A matéria de capa do caderno “Ilustrada” de 7 de setembro revela justamente a tendência anacrônica. Seu título: “Eu não sou maluco para reeleger Lula”. Mas o lançamento do álbum não era a pauta? Sim, sim. E Caetano já não havia falado a mesma coisa antes, em outras publicações? É verdade. A Folha, mesmo assim, pôs a frase à altura de um furo jornalístico.


 


No ano passado, em entrevista também à “Ilustrada”, Caetano já espinafrava o governo Lula. Lembrava-se, porém, de fazer uma ressalva: “Não há dúvida de que aquilo de que o governo está sendo acusado agora – por figuras que são, tradicionalmente, muito menos respeitadas do que ele – é um tipo de irregularidade que não é da mesma natureza daquelas praticadas por aqueles que querem enriquecer egoisticamente, de uma maneira vulgar”.


 


Agora o músico baiano diz que, de todos os candidatos a presidente, Lula é o único em quem ele certamente não vota. O certo, seguindo o raciocínio de Caetano, poderia ser – quem sabe? – o apoio às mesmas figuras que o cantor acusava de serem “muito menos respeitadas” que Lula. E cadê o repórter da Folha, nessas horas, para apontar a contradição – para fazer jus à proposta da “crítica permanente”, pregada pelo jornal da família Frias?


 


Há uma nova ordem temporária nos cadernos culturais. Esfacelou-se a lengalenga de que jornalistas só paparicam Chico e vivem a zombar de Caetano, com piadas maldosas. Para evitar mais quatro anos de Lula, vale transformar Caetano, o ex-rebelde, num dos principais porta-vozes da elite. Ou dar espaço para o abutre Reinaldo Azevedo chamar o pensamento de Chico de “delinqüência intelectual”. A mídia fez sua escolha: até 1º de outubro pelo menos, viva Caetano, viva o Brasil – o Brasil das elites.


 


De São Paulo,
André Cintra