Garcia: ''se a imprensa quer ser partidária, precisa se assumir''

Em entrevista publicada no site da agência Carta Maior, o atual presidente do PT e assessor especial de política externa da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, fala da relação conflituosa que se estabeleceu entre setores da esquerda e a gra

Em entrevista publicada no site da agência Carta Maior, o atual presidente do PT e assessor especial de política externa da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, fala da relação conflituosa que se estabeleceu entre setores da esquerda e a grande mídia nacional, empenhada em criticar cotidianamente o governo Lula e as lideranças que o apóiam.


 


Garcia diz que ‘gostaria de ter uma imprensa mais diversificada no Brasil’. ‘Um espanhol, de manhã, quando se levanta, pode ir a uma banca e comprar o El Pais, de centro-esquerda, ou o ABC, de direita. No Brasil, essa opção não existe’, diz.


 


Garcia assumiu a presidência do Partido dos Trabalhadores no final do último mês de setembro, após o afastamento temporário do então presidente do PT, Ricardo Berzoini. Em quase dois meses no comando da agremiação, Garcia foi alvo de pesados ataques por parte de determinados órgãos de imprensa, que chegaram a acusá-lo de “truculento” e a compará-lo com Osama Bin Laden.


 


Na entrevista, concedida por telefone ao jornalista Gilberto Maringoni, da Carta Maior, Garcia falou também sobre privatizações, desenvolvimentismo e relações internacionais.


 


Veja a íntegra:


 


O sr. assumiu a presidência do PT num momento de extrema tensão. Como vê esta experiência de tornar-se presidente em meio a uma crise interna e sob fogo cerrado da mídia, numa hora decisiva da campanha?
Marco Aurélio Garcia – Num primeiro momento, havia uma situação crítica por conta dos ataques feitos ao coordenador de campanha. Naquela hora, tanto o Lula, quanto o Berzoini avaliaram ser melhor que o presidente do PT se afastasse e que houvesse uma troca no comando da legenda. Foi uma atitude muito prudente e sensata. Berzoini deu-se conta de que permanecer como presidente e coordenador atrairia um fogo desnecessário sobre a campanha. Isso nos deu possibilidade de enfrentar os últimos dez dias antes do primeiro turno, quando se avolumaram as pressões sobre o governo, feitas de maneira vil. Houve toda aquela manipulação na divulgação das fotos e a censura que a imprensa exerceu sobre a informação naqueles dias. No fim, o resultado foi positivo. Todos aqui, inclusive o presidente, avaliam agora que a realização do segundo turno foi a melhor coisa que poderia ter ocorrido.


 


Por quê?
MAG – Se nós tivéssemos ganhado no primeiro turno, levaríamos por uma margem de um ou dois pontos de diferença em relação à soma de todos os outros candidatos. Sempre ficaria pendente aquela questão: “Ah, se tivesse se realizado o segundo turno, a oposição poderia ganhar…” Com a nova rodada, tivemos um resultado muito mais expressivo, do ponto de vista eleitoral, e, sobretudo, do ponto de vista político. Houve uma nitidez inexistente anteriormente. Fizemos uma campanha mais politizada, houve uma distinção e uma oposição radical entre os dois projetos. O Alckmin não teve mais condições de dizer, de um lado, que faria cortes de gastos, e, de outro, que era desenvolvimentista. Na tentativa de resolver esse dilema insolúvel, ele teve de dar explicações todo o tempo. A questão do “risco-Alckmin” colou nele, não por terrorismo marqueteiro ou ideológico. Colou porque a grande maioria do eleitorado brasileiro se deu conta de o que estava em jogo. Ele chegou a se valer de artifícios ridículos para se colocar. O caso mais emblemático foi o daquelas fotos nas quais ele apareceu com uma jaqueta e um boné cheio de logotipos de estatais brasileiras. Parecia mais um piloto de Fórmula 1 do que qualquer outra coisa. Mas seu carro não conseguiu sequer acelerar no boxe de partida. No primeiro turno isso não estava claro.


 


O sr. atualmente desempenha uma dupla função: é presidente do partido e ao mesmo tempo é assessor presidencial. Isso não prejudica a autonomia partidária em relação ao governo?
MAG – Não sofri, até agora, nenhum constrangimento por estar numa ou noutra função. No momento em que isso ocorrer, terei de fazer uma opção. Mas eu já era vice-presidente do partido e só estou na atual posição por ser anteriormente vice-presidente do PT. Minha presença na presidência é transitória. Se o Berzoini voltar amanhã, deixo a função; se ele não voltar, estudaremos uma solução duradoura. Acho que o partido dispõe de quadros com muito mais qualidades que eu para enfrentar essa tarefa. Não estou alheio aos problemas que o PT tem pela frente e vou me empenhar, como presidente ou militante, na resolução desses problemas.


 


Como o sr. viu o desempenho da imprensa, durante a campanha?
MAG – A opinião não é só minha. Vários jornalistas, formados em órgãos de grande imprensa, somados a entidades acadêmicas, mostraram a existência de uma pronunciada parcialidade dos meios de comunicação. Acho muito normal a existência de uma imprensa partidária. Mas penso que ela deve se assumir como tal. Outro dia, em conversa com jornalistas, eu disse que gostaria de ter uma imprensa mais diversificada no Brasil. Um espanhol, por exemplo, de manhã, quando se levanta, pode ir a uma banca e comprar o El Pais, de centro-esquerda, ou o ABC, de direita. No Brasil, essa opção não existe. Aqui, a imensa maioria dos órgãos de imprensa está afinada com determinada posição. Isso é natural, mas existe uma enorme parcialidade.


 


Qual a decorrência disso?
MAG – É que o eleitorado não seguiu os que se intitulam “formadores de opinião”. Houve uma separação entre eles e a opinião pública propriamente dita. Este é um tema relevante. Eu, se fosse dono de uma rádio, de um jornal, ou de uma emissora de TV, tendo algum compromisso com o público leitor, eu estaria preocupado e tentaria fazer uma reflexão. Isso seria urgente. A única coisa que recomendei foi isso. Mas alguns setores da imprensa estão tão auto-suficientes que não conseguem admitir isso. E quiseram estigmatizar essa opinião, tentando identificá-la como cerceamento ou patrulhamento. Nada disso! Se eles não fizerem, não terão problema algum comigo, com o PT ou com o governo. Terão problemas com seus leitores, ouvintes ou telespectadores. Eu também falei – e isso foi visto como suprema heresia – que há mal-estar nas redações e entre os assinantes das publicações. Alguém tentou identificar meu comentário como estímulo à violência contra jornalistas. É absurdo. Eu me oponho a violência contra qualquer pessoa, seja jornalista, jogador de futebol, trabalhador etc. Sou particularmente contra agressões a jornalistas. Eles muitas vezes sequer têm responsabilidade sobre o que é publicado por seus jornais. Mesmo em relação aos proprietários dos meios, a sociedade tem de ter uma atitude respeitosa. Pode-se criticá-los e, no limite, até vaiá-los. Mas jamais fazer qualquer tipo de violência física, como parece ter ocorrido em alguma circunstância.


 


Em que muda a relação do governo com a imprensa neste segundo mandato?
MAG – O presidente, durante a campanha, e em tom quase de auto-crítica, disse que gostaria de ter uma relação mas fluida com a imprensa. Eu também acho. Ele deve conversar mais, dar entrevistas, coletivas etc. Mesmo se a imprensa mantiver essa posição amarga e, em alguns casos, injusta e injuriosa, ele deve conversar. Acho que se mudar a relação com a imprensa, será para melhor.


 


O centro da campanha do segundo turno foi um questionamento das privatizações realizadas nos governos FHC. Que decorrência isso terá no segundo mandato? Será realizada alguma auditoria naquele processo?
Marco Aurélio Garcia – Eu acho que este tema ganhou uma grande relevância porque nós estamos começando a avaliar a relação entre o Estado, a economia e o mercado e o projeto econômico que os tucanos estavam propondo. Quem inventou o tema não fomos nós. Logo quando o Alckmin foi indicado candidato, ele indicou três tópicos que norteariam seu possível governo. Um deles era a retomada do programa de privatizações. Nós nunca tivemos uma posição ideológica ou de princípios em relação a isso, mas sempre fomos críticos pelo fato dessas privatizações atingirem setores estratégicos, que deveriam ficar sob controle estatal. Em segundo lugar, elas foram eivadas de irregularidades. Hoje se fala em corrupção, denúncias de fraudes, isso e aquilo, mas na época, o que se falou sobre essas privatizações não está no gibi. Não apenas o governo, mas o próprio Congresso deveria ter aproveitado esta última legislatura para fazer uma investigação mais rigorosa desse processo. Mas, de certa maneira, isso é assunto passado.


 


O governo ou o PT apoiará a campanha pela revisão do leilão de privatização da Vale do Rio Doce?
MAG – Não acho que hoje embarcaremos numa campanha pela reestatização da Vale. Mas isso aponta para uma questão mais de fundo, que é o papel do Estado na economia. No passado, através de uma espetacular campanha de mídia e de um movimento ideológico fortíssimo, eles tentaram estigmatizar todos os que se opunham às privatizações tal como elas ocorreram. Um dos colunistas da grande imprensa chegou recentemente a dizer: “Eu não sei como esse tema antigo e já resolvido voltou à tona”. Ora, não estava resolvido e voltou á tona porque a sociedade considerou uma questão importante. Todos ficaram preocupados que outro governo, em sua fúria fiscalista, resolvesse vender a Petrobras, a Caixa, enfim, o que sobrou. A sociedade brasileira quer saber qual o destino dos recursos arrecadados nas vendas das estatais. Alegava-se que eles viriam a amortizar a nossa dívida. Ora, terminado o governo FHC, a dívida ficou muito maior. O dinheiro evaporou. Se esse dinheiro tivesse sido plasmado em uma grande iniciativa concreta, em algum programa social, ou de infra-estrutura, haveria atenuantes. Quando Brasília foi construída, o governo da época foi muito criticado pelo rombo que isso produziu, mas existe Brasília, a cidade é algo tangível. As pessoas tenderam a perdoar todo o desequilíbrio fiscal que o Brasil sofreu naquele período, em troca de se ter uma nova capital e da redefinição espacial do país.


 


Há um grande lobby na imprensa entre desenvolvimentistas e monetaristas. Como será o segundo mandato do ponto de vista da economia?
MAG – Eu não acho boa esta divisão. Ela termina por criar uma oposição que eu não vejo dentro do governo hoje e menos ainda dentro do partido. Um dos grandes méritos dessa campanha, especialmente no segundo turno, foi ter produzido uma grande unificação política no partido. A polêmica se colocou, potencializada por algumas declarações não muito adequadas, ou pelo menos por interpretações dessas declarações…


 


Como as do ministro Tarso Genro?
MAG – Eu não gosto de comentar declarações alheias. Minha posição sobre a política econômica durante a gestão do ministro Palocci é que ela tinha de, no fundamental, ser aplicada. Posso discordar de determinadas ênfases, de coisas que poderiam ter sido feitas com mais rapidez, ou de algumas que se estenderam em demasiado. Mas nós fizemos o que deveria ser feito para se evitar uma catástrofe econômica. Era uma aposta de grande parte da direita. Eu discordava da retórica que membros da equipe econômica utilizaram naquele período, transformando necessidades em virtudes. Isso, de uma certa maneira, nos tirou um horizonte mais estratégico de país. Deixamos de pensar, momentaneamente, o que queríamos para o Brasil daqui a uma década, em termos de distribuição de renda etc. Apesar de essa idéia nunca ter sidos abandonada, sua concretização foi substituída por conquistas parciais. Elas eram importantes, mas eram meios para se atingirem determinados objetivos, e não fins em si. Sera ridículo se o Lula tivesse se apresentado como candidato, dizendo: “nosso objetivo é melhorar o ‘investiment grade’ do país. Nossos objetivos são outros, são de inclusão social, de criação de empregos, às quais se soma a questão da educação. O partido irá desenhar, em seu congresso, que modelo de sociedade quer, discutir o que é ser um partido de esquerda, entre outras coisas. Mas acho que no governo perdemos um pouco a dimensão de termos um projeto de país, que havia na eleição do Lula em 2002. Em resumo, acho que o ritmo, no essencial, estava correto. Já no terceiro ano de governo nós conseguimos fazer uma inflexão em direção ao que esperemos ser a do segundo mandato. Nós inserimos no documento “Diretrizes de programa de governo”, aprovado no 13º. Encontro do PT, a idéia: “Esperamos que o último ano do primeiro governo Lula seja o primeiro ano do segundo governo”. Isso foi, em certa medida atingido, mesmo durante a gestão Palocci.


 


Mas o sr. não vê as expectativas de crescimento da economia, revisados para baixo a cada mês, como um horizonte preocupante para o segundo mandato?
MAG – Seria preocupante se não houvesse uma consciência dentro do governo – a começar pelo presidente da República – da necessidade de se adotar um conjunto de medidas só possíveis de serem adotadas se fizéssemos o que fizemos. A imagem que o Lula usa freqüentemente, de que uma boa casa precisa de um bom alicerce não é apenas uma figura de linguagem. É a expressão de qual é o ânimo que nos embala. Mas não ficaremos apenas reforçando o alicerce indefinidamente, sem construir a casa.


 


Os setores mais conservadores da sociedade – incluindo a imprensa – fazem muita pressão por uma mudança na política externa do novo governo. Ela vai mudar?
MAG – Nós não só vamos manter a política externa, como vamos aprofundá-la. Essa notícia de um jornal, de que haveria pressões, do Planalto junto ao Ministério das Relações Exteriores, por uma inflexão pró-Estados Unidos, com a saída do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães e a minha, não procede. Isso é “wishful thinking” da direita, é tomar os desejos por realidade. O presidente Lula está muito satisfeito com a política externa, executada com extrema competência pelo Itamaraty, que passa por um processo de requalificação como há anos não havia.


 


Mas que ajustes serão feitos?
MAG – Daremos maior consistência prática à política externa na América do Sul. Temos desafios no Mercosul, temos a construção da Comunidade Sul-Americana de Nações etc. E vamos melhorar nossa relação com os grandes países do mundo que, do ponto de vista político, andam muito boas, apesar de certas dificuldades do ponto de vista econômico e comercial. Uma delas é a resistência das grandes economias na redução dos subsídios agrícolas, o que cria entraves no comércio mundial. Temos debatido isso de forma clara, franca e competitiva no âmbito internacional. E os países em desenvolvimento, reunidos no G-20, no qual o Brasil tem um papel muito importante, passaram a ser interlocutores de primeira plana, coisa que não acontecia. Toda a expansão de nosso comércio exterior está muito vinculada às nossas opções de política externa.


 


Mas as críticas são pesadas por parte da imprensa…
MAG – Há setores que, por pura ideologia conservadora, dizem que o comércio exterior duplicou em menos de quatro anos porque o comércio mundial cresceu. Não é verdade! Nosso comércio cresceu muito acima do comércio mundial e ele é resultado de uma ação governamental e da vontade do presidente de abrir novos mercados e de visitar países que até há pouco eram considerados de menor importância. O resultado é que com quase todos os países nós temos relações comerciais superavitárias. Alguns setores derrotados na eleição tentam agora ganhar a agenda do governo. Isso não vão levar!


 


As eleições brasileiras acontecem num contexto de disputas em quase todos os países latino-americanos. São 12 em pouco mais de um ano, além das eleições nos EUA, nas quais os Republicanos foram derrotados. Como o sr. vê o Brasil nesse quadro?
MAG – Sob todos os pontos de vista, a eleição do Lula é um fator extremamente positivo. De setores moderados até setores mais radicais, havia uma enorme expectativa pela vitória de Lula e um temor – que foi se esvaziando ao longo do tempo – de que a oposição ganhasse. A vitória do outro candidato significaria a retomada das negociações da Alca, só possível em condições de submissão. Haveria uma busca por assinar, a qualquer preço, acordos com países desenvolvidos não apenas nos setores produtivos, mas também nos setores de serviços, em situações de assimetria. Os países grandes só nos respeitam se nós nos fazemos respeitar.


 


O sr. julga que a onda anti neoliberal segue em frente no continente?
MAG – Ela continua. Mesmo quando se elegem governos sem uma tradição de esquerda ou de centro-esquerda em certos países, se verifica neles um crescimento da esquerda e, da parte dos governantes mais moderados, uma abertura e capacidade de diálogo maior. Há dois anos, quando o tema da unidade sul americana se colocou na ordem do dia, as resistências foram imensas. Hoje estamos há seis meses trabalhando num projeto com convergências cada vez maiores.