Dinheiro estrangeiro faz renascer futebol inglês

Decisão da Liga dos Campeões da Europa, torneio que reúne as equipes consideradas as mais importantes do continente, revive nesta quarta-feira a final de 2005, quando a equipe inglesa de Liverpool venceu os italianos do Milan após reverter um placar de 3

Os ingleses, que comandaram as competições de clubes do futebol europeu nas décadas de 1970 e 1980, recuperaram o terreno perdido. Após ter atingido o fundo do poço há 20 anos, a Premier League abriu uma dianteira na Europa em termos de espetáculo e de lucros.


 


Em artigo publicado esta semana no jornal francês Le Monde, pergunta-se se o futebol britânico está a caminho de dominar de maneira duradoura a Europa do futebol. Cita como o início disso a final jogada há dois anos. “Parecia que tudo conspirava em favor do AC Milan, e que este apresentaria mais uma vez um recital magistral. Mas, o seu adversário, o Liverpool, que perdia por 3 gols a 0, fazendo pouco caso das probabilidades, recuperou essa diferença e acabou triunfando na disputa de pênaltis”, diz o Le Monde


 


A tese do jornal sustenta que o futebol inglês, por ter mais clubes do que em outros países capazes de se impor na cena européia, pode retomar a supremacia perdida nos anos 1980. Nos últimos anos, quatro das suas equipes ambicionam dominar os torneios continentais: o Liverpool e o Manchester United e mais dois clubes londrinos, o Chelsea e o Arsenal.


 


“Dois anos mais tarde, os mesmos estão de volta, prontos para encarar a mesma disputa. A final da Liga dos Campeões vai opor mais uma vez, na quarta-feira, 23 de maio, em Atenas, os “Reds” de Liverpool aos “Rossoneri” do AC Milan”, lembra o diário francês.


 



No ano passado o londrino Arsenal disputou — e perdeu — a final da competição para o espanhol Barcelona. Este ano, os ingleses conseguiram colocar 3 clubes nos jogos das semifinais da competição: Chelsea, Manchester United e Liverpool.


 



O artigo especula que a razão disso é a mudança provocada pelas tragédias protagonizadas por torcedores ingleses em competições européias nos anos 1980. “O drama do estádio do Heysel, em Bruxelas, em 29 de maio de 1985, onde 39 pessoas haviam morrido vítimas dos excessos de hooligans que estavam torcendo pelo Liverpool, fez com que os seus clubes fossem praticamente banidos das disputas européias. Os seus times foram excluídos das competições no continente durante cinco anos. Então, em 15 de abril de 1989, a tragédia de Hillsborough, em Sheffield, onde 96 pessoas foram mortas esmagadas, pareceu ter dado ao 'soccer' inglês o golpe de misericórdia”, discorre o Le Monde.


 


As medidas tomadas vieram a resultar na divisão de elite do futebol inglês que se chama “Premier League”, segundo o diário francês. Os estádios foram reformados, leis criadas para restringir o acesso de torcedores violentos, grades e alambrados foram derrubados e o preço dos ingressos foram aumentados de forma a retirar do estádio a grande massa que frequentava o futebol todos os domingos. Até o domingo, dia “santo” para o futebol inglês, foi excluído do calendário. As disputas passaram a ser realizadas às sextas-feiras à noite e aos sábados à tarde.


 


O desastre estava anunciado: em 1991, os estádios receberam no máximo 30% de sua lotação total, ao contrário dos anos 1980, quando 95% dos assentos eram ocupados. O ambiente estava criado para uma das maiores negociatas que o futebol inglês assistiu: o milionário Rupert Murdoch, dono de uma cadeia mundial de comunicação, comprou os direitos de exibição da Premier League  e passou a transmitir a competição em seus canais de assinatura, da rede Sky Sports. Embora tenham sido beneficiados com o estabelecimento de uma nova fonte de recursos, os clubes ingleses só passaram a investir realmente pesadas somas de dinheiro no meio da década de 1990.


 


Com a mudança nas leis trabalhistas européias e a chamada “lei de passe”, que permitia a qualquer trabalhador exercer sua profissão em qualquer país da União Européia, e quando se estabeleceu a Lei Bosman (nome de um jogador belga que rompeu contrato com seu clube para assinar com um clube de outro país da União Européia), os clubes ingleses puderam contratar jogadores de grande categoria, elevando a assistência do público e a qualidade dos jogos.


 



Os franceses do Le Monde, equivocadamente, analisam a diferença de assistir uma partida no estádio do Manchester United, o Old Trafford: “Para um francês acostumado com as arquibancadas de concreto do seu campeonato de primeira divisão, presenciar uma partida noturna no Old Trafford, a toca do Manchester United, é uma experiência única. Este estádio, que foi apelidado de 'Teatro dos sonhos', não possui nem grades, nem quaisquer outras separações. O gramado verdejante está bem ali, diante do nariz dos espectadores das primeiras fileiras, ao alcance da mão.”


 


“Mais acima, nas arquibancadas sempre lotadas (76.000 lugares), todos estão sentados bem quietinhos. Não há o menor sinal de qualquer grupo de torcedores organizados, nem mesmo faixas. Os cantos ressoam com profundidade, quase discretos. Além disso, no 'palco', um grupo de estrelas transmite como quem não quer nada a sensação de que, para completar a apresentação, só falta uma grande lona de pano vermelho para garantir que a cortina seja levantada e depois abaixada.”


 


A informação se choca com a realidade, já que a polícia britânica proíbe o uso de faixas e bandeiras — semelhante ao que aconteceu com o futebol paulista na década de 1990 —, enquanto as torcidas organizadas do clube se manifestam de maneira ruidosa em todos os jogos, entoando cânticos específicos de cada uma delas, sem diferenças em relação aos torcedores franceses.


 


A torcida do Manchester United tem até uma associação que reúne as suas organizadas, de nome Independent Manchester United Supporters Association, e ainda existem as famigeradas Cockney Reds e Inter City Jibbers, as gangues de hooligans que seguiam o Manchester United por toda a Europa. Em Lille, na França, e em Roma, na Itália, essas gangues estiveram presentes e provocaram problemas, que levaram a entidade que comanda o futebol europeu a multar o clube em mais de 12 mil euros neste ano.



Televisão alavancou



Segundo o Le Monde, “O campeonato inglês atual é o resultado de um 'círculo virtuoso', explica Frédéric Bolotny, do Centro de direito e de economia do esporte de Limoges (no centro da França). “É um espetáculo televisivo, mas não é só isso. É também um espetáculo ao qual se pode assistir no local onde ele acontece. Em conseqüência, ele não é dependente de uma única fonte de renda. Em 2004-2005, os direitos de transmissão pela TV não representavam mais do que 43% das suas fontes de renda, enquanto 31% provinham das receitas dos jogos”. Na França, os clubes dependem de um grande difusor, Canal+, que garantiu, em 2004-2005, mais de 60% das suas receitas.


 


Sendo a Sky Sports uma rede mundial de televisão por satélite, os jogos da liga inglesa passaram a ser transmitidos a centenas de países no mundo e hoje são assistidos em cerca de 200 países, e a sua audiência ultrapassa atualmente um bilhão de telespectadores. Aproveitando-se disso, o Manchester United começou a ocupar espaços no mundo, por exemplo, quando fez uma pioneira excursão à Ásia, jogando em países como Malásia, Tailândia, Vietnã e China.


 


Reunir astros internacionais e exibi-los em campeonatos atraentes é uma fórmula que faz sucesso em qualquer parte do mundo. Após permitir a contratação de jogadores estrangeiros, diminuindo as exigências que eram feitas anteriormente para um jogador atuar em solo inglês, os clubes passaram a ser alvos de especuladores internacionais, liderados pelos fundos de investimentos americanos e os oligarcas russos que enriqueceram com o desmonte do estado soviético nos anos 1990 e árabes que investem na estrutura do futebol inglês, caso da Emirates Airlines, a companhia aérea dos Emirados Árabes Unidos, que financiou a construção do novo estádio do Arsenal.



Os “investidores” aparecem do “nada”



Avaliar os interesses de Roman Abramovich no Chelsea é relativamente simples. O proprietário do clube azul de Londres tem uma riqueza que cresceu de maneira misteriosa e rápida no processo de desmontagem do socialismo na União Soviética. Milionário, se envolveu com a política e, oficialmente, resolveu investir em um time de futebol inglês por “hobby”. Não seria ousadia dizer que Abramovich comprou o clube londrino por um misto de brincadeira, uma tentativa de desviar atenção de suas outras atividades e eventualmente aproveitar para realizar enormes transações financeiras sem despertar muita suspeita.


 


Ja o empresário que comprou o Manchester United, o americano Malcolm Glazer, tem um perfil completamente diferente. Comparadas às operações de Abramovich, suas negociatas são mais transparentes e lógicas, por mais que haja um lado nebuloso no acúmulo de sua fortuna. O norte-americano quer ganhar dinheiro e investe no que considerar uma boa oportunidade de negócio, como o Tampa Bay Buccaneers, uma das franquias menos valorizadas da NFL e que Glazer ajudou a levar à conquista do Super Bowl em oito anos.


 



O lado ruim para o torcedor e associado do clube inglês é que ele visasomente a possibilidade de lucro. Não se imagina Glazer tomando atitudes que se assemelhem ao mecenato, como o concorrente russo. É por ver o Manchester United mais como negócio do que como clube de futebol que o novo proprietário do clube tem sido rejeitado pela torcida.


 


Tudo começou pela própria operação que permitiu a compra de 75% das ações do Manchester United. Glazer já era um acionista minoritário do clube que, aos poucos, ganhou espaço a ponto de quase se igualar aos irlandeses John Magnier e JP McManus, proprietários em conjunto de pouco menos de 30% dos red devils. O avanço do americano fez que conselheiros do clube incentivassem o Shareholders United (de consórcio formado por torcedores para comprar ações do clube) e outros torcedores a “protegerem” as ações do clube agindo antes. Para naufragar a iniciativa, Glazer ofereceu um excelente preço por cada ação, o que daria um bom lucro a cada acionista que vendesse sua participação, sobretudo a dupla irlandesa.


 


O investimento total para a compra de 75% do Manchester United passou de £ 920 milhões, quantia que nem Glazer teria a mão. E aí começam os problemas. O americano teve de arrecadar tais recursos de diversas maneiras — sobretudo empréstimos bancários — e deixou o Manchester United extremamente comprometido. Algo muito semelhante ao que ocorreu com o Corinthians nos últimos três anos.


 


A modalidade de financiamento utilizada prevê juros bastante altos e, para parte do dinheiro investido, ações do próprio clube servem de garantia. O orgulho dos red devils de serem um dos poucos casos de clube com sucesso financeiro e nenhuma dívida foi por terra.


 


Para ter o retorno do investimento e ainda arcar com juros, a receita do Manchester United teve de aumentar sensivelmente. Para o faturamento crescer em 76%, o ingresso para as partidas em Old Trafford estão passando por um aumento de 54%, ação que deve durar cinco anos.


 


Essa medida já foi adotada nos Buccaneers e provavelmente seria bem-sucedida, pois não seria difícil encontrar 76 mil torcedores do Manchester United dispostos a pagar o novo preço se fosse necessário. Evidentemente, criou um enorme descontentamento na grande massa de torcedores que não vêem com bons olhos a mercantilização dos red devils. O que pode ficar ainda pior se a idéia de negociar o nome do estádio (Old Trafford) – como ocorreu com a Kyocera Arena, a Petrobrás Arena, a AOL Arena e a Allianz Arena – para alguma empresa for realmente implementado.


 


O Liverpool passa por situação quase idêntica: “Bill Shankly provavelmente deve ter se revirado no seu túmulo. O treinador mítico dos Reds, que comandou o time de 1959 a 1974, cuja estátua vigia a entrada do estádio de Anfield, era uma figura eminente do socialismo escocês. Ora, eis que, desde fevereiro, o Liverpool FC, pertence a dois milionários americanos, George Gillett e Tom Hicks” diz o Le Monde. Esse Tom Hicks é o da famigerada Hicks & Muse, que tentou comprar o Corinthians Paulista no fim da década de 1990 mas foi enganado pelos “vorazes” brasileiros.


 


“Os dois cúmplices”, amigos  pessoais de Geroge W. Bush, “estão rindo à toa desde que eles ganharam a sua aposta: acrescentar a instituição do Merseyside ao seu império dos esportes formado por equipes norte-americanas de hóquei no gelo e de basquete, sem se esquecer da rede de televisão Fox Sports em espanhol, que emite para todo o continente”, conta o Le Monde.


 



Contudo, no curto prazo, a sua ambição para o Liverpool FC esbarrou em resistências. A prefeitura de Liverpool recusou o seu projeto de aumentar para 75.000 o número de lugares do futuro estádio (que levaria o nome de alguma empresa Arena). E o seu projeto que visava aumentar enormemente os preços foi abandonado. O bilhete mais caro, que custa 28 libras (R$ 110), permanece duas vezes mais barato do que no Chelsea ou no Arsenal.


 


Da redação, com informações do Le Monde