Carta Maior: Um G-8 contestado e sem horizonte
O G-8 afunda na própria ilegitimidade de sua existência. Não é o convite para as tais potências emergentes, entre elas o Brasil, que vai resolver o seu problema. Só a volta ao mais genuíno multilateralismo pode apontar alguma saída.Por Cândido Grzybowski,
Publicado 06/06/2007 11:33
Parece coisa de minorias insatisfeitas. Mas o fato é que os manifestantes em Rostock, na Alemanha, são o grito de muita gente, de milhões e milhões que não agüentam mais, mundo afora. As cenas, que se repetem todas as noites diante de nossos olhos na pequena tela, são tristes e lembram um clamor contido contra o que está sendo decidido lá dentro dos muros. Afinal, por que os governos dos sete países mais industrializados do mundo, mais a Rússia, precisam se isolar num lugar tão distante de tudo, como o complexo turístico de Heiligendamm, e protegidos por quilômetros de cercas e muros, com milhares de policiais dispostos a reprimir qualquer manifestação? Algo está invertido nesta história de bons mocinhos e maus bandidos. Quem está se escondendo?
O G-7 e depois G-8, com a inclusão da Rússia, potência nuclear e energética, nasceu no bojo da globalização neoliberal triunfante do final do século 20. Representa o maior atentado contra a ONU e o sistema multilateral, montado nas décadas de 1940 e 1950, no esforço de conciliação e paz emergido da traumática 2.ª Guerra Mundial. O G-8 funciona como uma espécie de clube privado dos governos das nações mais poderosas do planeta. É um lugar de concertação política, sem dúvida, mas sem os indesejáveis, para manter e ampliar o poder e a dominação de uns poucos sobre o mundo. Tudo sob o controle da maior potência econômica e militar da atualidade, os EUA. O aparecimento do G-8 tem como correlato um esforço de esvaziamento dos fundamentos ainda frágeis do multilateralismo, expresso particularmente no sistema ONU. Na prática, opera-se uma verdadeira privatização do poder mundial, declaradamente como suporte à expansão das grandes corporações econômico-financeiras, em sua estratégia de submeter o mundo a uma lógica de mercados e de negócios globais.
O mal-estar com tudo o que significa a globalização dominante vai criando força na segunda metade da década de 1990. No início, poucos se manifestavam. Mas, devagar, uma onda gigante vai tomando corpo. Tudo o que era visto como expressão da globalização neoliberal passa a ser alvo de coalizões de entidades e movimentos cada vez mais amplos. Podem ser as reuniões semestrais do Banco Mundial e FMI, as reuniões do clube G7+1, as cúpulas da União Européia, as rodadas da novíssima OMC, os encontros anuais do Fórum Econômico Mundial, de Davos. Multiplicam-se os eventos de governos e empresas pró-globalização e, como contra-força, amplificam-se os protestos antiglobalização dos deixados de fora. A efervescência atinge um ápice na virada do século. Os marcos – diferentes em conteúdo e forma, mas unidos umbilicalmente na expressão da crescente insatisfação social com os rumos do mundo – são o bloqueio cívico à conferência da OMC em Seattle, nos EUA, em fins de novembro e início de dezembro de 1999, e a emergência do Fórum Social Mundial, em janeiro de 2001, em Porto Alegre.
A partir daí, o triunfalismo da globalização como modelo de desenvolvimento e vida cede lugar às incontroláveis contradições e fraturas que a movem. Os governos dominantes, quando se reúnem, evitam, de todas as formas, a proximidade com a cidadania que os constitui. Esta é a situação em que se encontra o G-8. Cada vez mais contestado. Cada vez com menos legitimidade. Mas ainda poderoso. Desde alguns anos, o G-8 vem mudando a sua agenda oficial, incluindo temas caros para a emergente cidadania planetária, como o cancelamento da dívida externa, o enfrentamento da pobreza, a atenção às regiões e países menos desenvolvidos.
Agora, no calor do debate sobre a mudança climática, até isto entra na agenda. Mas no fundo, o que interessa mesmo é a segurança e a ordem, para a prosperidade dos negócios, bem entendido. É estranho o aparente esforço do G-8 em ser aberto às demandas da cidadania ativa, reprimindo aquela que se manifesta à sua porta. Promete-se muito e pouco se faz. O G-8, com todo o seu poder, afunda na própria ilegitimidade de sua existência. Não é o convite para as tais potências emergentes, entre elas o Brasil, que vai resolver o seu problema. Só a volta ao mais genuíno multilateralismo pode apontar alguma saída.
A humanidade vai continuar a caminhar para um beco sem saída se os governantes continuarem a lhe dar as costas e olhar mais para empresas e negócios. Estamos diante de sinais claros de crise da civilização industrial capitalista, que ao mesmo tempo cria abundância e miséria, gera concentração de riquezas e exclusão social, produz muito e destrói a base natural de produção e vida, organiza a economia e o poder em escala global e mina as bases de existência de sociedades sustentáveis em sua diversidade. Precisamos, urgentemente, reconstruir uma ordem mundial democrática, subsidiária de economias e poderes locais fortalecidos, que não necessita de G-8 ou qualquer clube de países zelosos em proteger os interesses de suas corporações capitalistas.
Cândido Grzybowski, sociólogo, é diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).