UNE: 70 anos fazendo história na cultura popular brasileira
Leia abaixo o 4º artigo na íntegra da série exclusiva do Vermelho sobre a história do movimento estudantil, produzida por Carolina Ruy, jornalista e pesquisadora do Museu da Pessoa, sobre a relação intrínseca da UNE com o estímulo da cult
Publicado 06/06/2007 21:42
UNE: 70 anos fazendo história na cultura popular brasileira
Carolina Ruy*
Desde sempre a cultura é uma espécie de “menina dos olhos da UNE”. E isso começou lá na fundação, quando já estava na pauta a preocupação com o barateamento dos livros, das entradas para atividades culturais etc. Não é para menos: cultura é parte fundamental do universo do estudante, dentro de qualquer área do conhecimento. No início dos anos 60 o CPC, um dos mais importantes movimentos artísticos do Brasil, consagra essa relação.
O CPC
A criação do Centro Popular de Cultura foi iniciativa de artistas como o cineasta Cacá Diegues, o compositor Carlos Lyra, o dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, o ator Francisco Milani, entre outros. Eles queriam uma arte voltada para o povo. A idéia do CPC surgiu quando Vianinha, influenciado pelas leituras de Bertolt Brecht, e Carlos Estêvam, recém formado em Filosofia, produziram a peça “A Mais Valia Vai Acabar, Seu Edgar”, que foi encenada no pátio interno da Faculdade de Arquitetura da Faculdade do Brasil, RJ, em 1962.
Apesar da intenção de produzir uma arte que falasse sobre o povo e para o povo, transmitir, através do teatro, de forma simples e inteligível, complicados conceitos marxistas como a “mais-valia”, não era tarefa fácil e nem sempre bem sucedida. O clima interno era de permanente autocrítica, debate e inquietação, marcado pela participação política.
O Centro Popular de Cultura foi uma vanguarda, trazendo as bases para o novo cinema político brasileiro, o novo teatro brasileiro, a nova música popular de protesto, a partir do uso de uma estética marxista, mas sempre se via às voltas com acusações de sectarismo, imposição de palavras de ordem, dificuldade de relação com o povo, privilégio da mensagem política em detrimento da estética.
Ele funcionava no prédio da UNE e tinha recursos financeiros que lhe permitiram produzir filmes como “Cinco Vezes Favela”, de Carlos Diegues, peças de teatro como o “Auto dos 99%” e a memorável “Eles Não Usam Black Tie”, de Gianfrancesco Guarnieri.
UNE na contracultura
Com a ditadura de 1964 acumularam-se dificuldades para uma atuação mais propriamente política para a juventude. Já não existia a experiência do CPC e parte desta juventude foi protagonista de um movimento que foi caracterizado, genericamente, como “contracultura”.
Uma de suas expressões foi a chamada “poesia marginal”, que floresceu principalmente em grandes centros, como São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro e englobou a produção de jovens poetas à margem das grandes editoras (e da indústria cultural que nascia) e da censura, cujos livretos eram quase sempre vendidos de mão em mão em restaurantes, teatros, cinemas e outros locais.
A chamada “poesia marginal” englobou a produção de jovens poetas à margem das grandes editoras (e da indústria cultural que nascia) e da censura, cujos livretos eram quase sempre vendidos de mão em mão em restaurantes, teatros, cinemas e outros locais.
Já não existia a experiência do CPC que, entre 1962 e 1963, publicou a série “Violão de Rua” (três volumes), que teve a colaboração desde Vinícius de Moraes até poetas como Moacir Félix, José Paulo Paes, José Carlos Capinam, entre outros.
Os anos 70
A década de 1970, diz Carlos Alberto Messeder Pereira, autor do livro Retrato de época – poesia marginal, anos 70 (Rio de Janeiro, Funarte, 1981), foi marcada pelo “florescimento da contracultura”. Os problemas com a censura eram inevitáveis. Em 1976, por exemplo, quando lançou o primeiro Almanaque Biotônico Vitalidade, o grupo Nuvem Cigana teve que driblar os censores da Polícia Federal.
Em Brasília, o poeta Nicolas Behr, por sua vez, provocou escândalo com um poema que os censores consideraram “pornográfico”, e chegou a ser processado; depois, reagiu de forma irônica com um poema onde dizia: “eu sei que errei / mas prometo / nunca mais / usar a palavra certa”.
Em São Paulo, surgiu a Editora Pindaíba, que lançou o jornal Poesias Populares (1978), editado pelo poeta Ulisses Tavares, com participação de Arnaldo Xavier e Aristides Klafke. No Rio de Janeiro, em agosto de 1978 um grupo de poetas lançou a Mostra Nacional de Publicações Alternativas, sediada na Casa do Estudante Universitário.
Comportamento
Messeder Pereira constatou um certo desencanto dessa parcela da juventude com a política. “Os movimentos de rebelião da juventude agrupados sob o rótulo de contracultura, cujas idéias sensibilizavam mais diretamente as gerações mais jovens, questionavam vigorosamente não apenas as formas mais institucionalizadas, consagradas de luta política, bem como as questões levantadas por estas formas. Incluindo-se neste questionamento de formas e questões consagradas o próprio encaminhamento nos termos do pensamento de esquerda tradicional.
Diante deste questionamento, portanto, a crítica social destes movimentos dirigia-se também no sentido do particular, do cotidiano. Daí a ênfase nas questões relativas ao comportamento etc. buscava-se criticar o exercício do poder nos seus aspectos aparentemente maiôs insignificantes”.
O Teatro
Se os poetas eram mais “contraculturais”, beirando ao existencialismo, o teatro mantinha uma afirmação mais “política”. Nos primeiros anos da década de 1970, surgiram inúmeros grupos amadores na periferia de São Paulo, animados ou dirigidos por atores profissionais.
O ator Celso Frateschi, citado por Marcelo Ridenti (Em busca do povo brasileiro, Rio de Janeiro, Record, 2000), identificou duas tendências principais entre eles: uma voltada para o “trabalho cultural como uma coisa independente, com função cultural que tem importância política”; outra, mais marcadamente política, onde a ação cultural era “instrumento do trabalho político que, dentro de uma hierarquia, estaria em primeiro lugar”.
Um exemplo da primeira tendência seria o grupo Núcleo Independente, do qual o próprio Frateschi participava, e que atuava em São Miguel Paulista, bairro da Zona Leste de São Paulo; exemplo da segunda é o Teatro União e Olho Vivo, dirigido por César Vieira (nome artístico de Idibal Piveta, que na época foi advogado de presos políticos). Independente das tendências, os grupos eram (que chegaram a vinte só na periferia de São Paulo) que, naqueles anos de censura e perseguição política, centravam sua ação junto aos movimentos sociais, em associações de bairros, comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, sindicatos e outras aglomerações de moradores e trabalhadores. E que tinham a participação principalmente de estudantes secundaristas e universitários.
Já em 1965, a apresentação da peça Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, com música de Chico Buarque, colocou o Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo) no centro do cenário teatral brasileiro; a peça foi apresentada em seguida no Festival de Nancy, na França, alcançando um prêmio internacional para o teatro brasileiro.
30 anos depois
Mais de trinta anos depois a UNE reestrutura suas atividades culturais. Não que essas tenham deixado de existir, mas com as dificuldades da repressão e a reconstrução da democracia, num processo de recuperação das baixas sofridas na ditadura militar, que refletiu fortemente nas artes e na cultura em geral, a UNE reorganiza de fato este setor em 1999, com a 1º Bienal de Arte e Cultura, realizada em Salvador.
Na 2º Bienal já surgiu a idéia de criar o Cuca (Centro Cultural de Cultura e Arte) para tornar contínuo o trabalho cultural da UNE e a 4ª Bienal, em São Paulo, contou com a experiência da Caravana de Cultura da UNE, uma espécie de reedição da UNE Volante, que atraiu estudantes do Brasil inteiro e difundiu seu trabalho de cultura. A 5º Bienal foi realizada em fevereiro de 2007, no Rio de Janeiro, fechando com a tomada, pelos estudantes do terreno na praia do Flamengo, onde funcionava a antiga sede da UNE.
O CPC serviu como referência para as atividades culturais da UNE, mas o Cuca é mais aberto e plural. Segundo Arthur Poerner, os Cucas e a Caravana de Cultura da UNE, realizada em 2004 (Caravana Universitária de Cultura e Arte – Paschoal Carlos Magno) representam uma retomada, mas em outras bases, adaptando-se às mudanças dos tempos.
*Carolina Ruy é jornalista e pesquisadora do Museu da Pessoa.
Leia também os três a artigos anteriores:
1º Artigo: História do movimento estudantil (ME) do abolicionismo ao Estado Novo
2º Artigo: História do ME anos 30 e 40
3º Artigo: Anos 50/60:gestão Aldo Arantes, um marco na história da UNE