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A morte anunciada nos canaviais paulistas

Priscila Lobregatte,
enviada especial à região de Ribeirão Preto*


No dia 23 de novembro de 2005, Antonio Ribeiro Lopes, então com 55 anos, morreu  após ter cortado 17 toneladas de cana. Foi o fim de um casamento que começara há 20 anos

O medo da morte e a perda do marido, um dos 20 que tiveram sua vida ceifada nos canaviais do estado desde 2004, fez Matildes Moreira Araújo, nome de batismo de Dona Neguinha, 56 anos, se afastar da atividade. Hoje, vive de pensão, que sustenta também duas filhas e duas netas. Segundo a Pastoral do Migrante, a causa mortis de Seu Antônio, que tinha doença de Chagas, foi edema pulmonar e cardiopatia dilatada descompensada. Os problemas podem ter sido causados pelo esforço que o trabalhador fez no corte de cana e que, num coração debilitado pela doença de Chagas, resultou no edema pulmonar. Dona Neguinha só teve certeza de sua morte às 9 horas da noite e só conseguiu saber em que hospital estava seu corpo às 5 horas da manhã do dia seguinte.


 


 


Esforço alto, salário baixo



Em média, um canavieiro corta de 10 a 12 toneladas diárias de cana. Seu Antônio cortou, portanto, pelo menos cinco toneladas acima da média. Ele trabalhava no Engenho Moreno, município de Luiz Antônio. “O feitor não queria saber. Se estivéssemos no final do trabalho e ainda tivesse um pedaço de terra com cana para ser cortada, ele dizia ‘vamos cortar esse pedaço porque amanhã a gente não pode voltar aqui’. Tinha vezes que a pessoa acabava de cortar a cana daquele pedaço embora de tão grande que era o cansaço”, lembra Dona Neguinha.


 


 


Com data marcada para acabar a colheita, já que a safra vai de abril a novembro, os trabalhadores correm contra o tempo. Na falta de um piso salarial adequado e com contratos precários ao arrepio da CLT, eles se vêem obrigados a dar o máximo de si para garantir um salário mais digno no final do mês. E nesse ritmo, vivendo em condições precárias e exercendo uma atividade subumana, estes homens e mulheres que ajudam a carregar a economia brasileira acabam dando suas vidas em troca de um salário irrisório.


 


 


Um levantamento feito pela Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho, que teve à frente a professora Cândida da Costa, da Universidade Federal do Maranhão, constatou que em São Paulo um trabalhador recebe entre R$ 600 e R$ 950 por mês. Para ganhar o valor máximo, seria necessário cortar 396 toneladas de cana num mês, 20 por dia se trabalhar 20 dias mensais. Como em geral o corte é medido por área e não pesado, a tonelada é relativa e sempre maior do que o declarado pelos usineiros.


 


 


Vida de escravo


 


A defesa de melhores condições de vida para esses trabalhadores não é simples retórica. Parte de uma realidade paradoxal: enquanto cresce o mercado sucroalcooleiro – a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) estima que a safra de 2007/2008 deverá atingir 468 milhões de toneladas, 42 milhões a mais que na safra passada – a condição de vida dos trabalhadores da cana parece piorar a cada ano.


 


 


Estudo feito pela professora Maria Aparecida Silva, da Unesp, constatou que o esforço físico dos cortadores vem encurtando sua vida útil. Se nos anos 80 e 90 um trabalhador permanecia em média 15 anos na atividade, hoje ele fica 12 anos. Ao mesmo tempo, se naqueles anos um trabalhador cortava cerca de 8 toneladas diárias, hoje esse número saltou para 12, um aumento em parte atribuído ao ritmo imposto pela mecanização. E se, de acordo com o historiador Jacob Gorender, a vida útil de um escravo era de 10 a 12 anos, pode-se afirmar que um canavieiro vive, também neste aspecto, uma vida análoga aos trabalhadores do século 19.


 


 


“No Engenho Moreno era assim: o fogo ia queimando na frente e a gente ia atrás, cortando a cana ainda quente”, relatou Dona Neguinha. Além de respirar o ar poluído pela queimada, os trabalhadores  se alimentavam mal. “No canavial, você comia num lugar onde havia rato morto, cobra, tudo quanto era coisa que queimava ali, junto com a cana. Dava um vento e a sujeira do ar vinha pra nossa marmita. A gente tinha que comer aquilo e nem sabia o que tava comendo”, disse a ex-cortadora. Em sua jornada pelos canaviais paulistas, a professora Cândida pôde constatar as condições em que esses canavieiros exercem sua atividade. “Eles têm jornada exaustiva de trabalho, levam marmita e sob o sol, a alimentação estraga. Eles também não têm banheiros, equipamentos de proteção individual e nenhum trabalhador treinado em primeiros socorros”, denunciou. Há ainda a concorrência cruel que existe entre os trabalhadores. Como quem corta mais acaba sendo o escolhido das usinas para as próximas safras, para garantir o ganha pão no ano seguinte aqueles que cortam menos acabam fazendo um sobreesforço para atingir o número do colega. “A usina quer aqueles que fazem mais. Quem trabalhava um pouco menos no ano seguinte está fora”, disse Dona Neguinha.


 


Alento aos trabalhadores


Segundo Dona Neguinha, houve pequenas melhoras nos canaviais do Engenho Moreno depois da morte de Seu Antônio. “Hoje, tem hora de almoço e de lanche. Os médicos da usina fazem exame no começo e no final da safra. Antes eles também não aceitavam atestado médico. Então, se a pessoa estava doente, tinha que trabalhar. E se não fosse, na safra seguinte não era chamado”.


 


No entanto, o problema é estrutural e sua resolução vai desde ações que busquem melhores condições de trabalho e moradia até mudanças no padrão de produção. O estudo encabeçado por Cândida procura cruzar as condições de vida e de trabalho dos cortadores de cana com as 19 mortes que aconteceram desde 2004 na região de Ribeirão Preto. A expectativa é que o Ministério do Trabalho, com base nesse levantamento, elabore um projeto de lei a ser enviado para o Congresso com medidas que evitem a morte súbita no campo. Entre elas estaria a maior fiscalização no local de trabalho e moradia e a implantação de um piso salarial que evitasse o excesso de trabalho. Se aprovadas, medidas como essas poderiam amenizar o sofrimento de milhares de trabalhadores que hoje são a base de sustentação do milionário mercado da cana.


 


 


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* Matéria originalmente publicada na versão eletrônica do jornal A Classe Operária, em fase de teste. Para ler a última edição do jornal, clique aqui.