Evo inicia segunda etapa da reforma agrária na Bolívia
A era do latifúndio parece ficar para ficar para trás na Bolívia, onde o presidente Evo Morales proclamou a revolução agrária em um ato por ocasião do 54º aniversário da promulgação da primeira lei que entregou terras aos camponeses.
Por Franz Chá
Publicado 08/08/2007 12:04
Morales anunciou a segunda era da reforma agrária com um plano destinado a sanear, reverter, expropriar e distribuir terras que atualmente estão em poder de empresários e latifundiários das zonas tropicais dos departamentos de Santa Cruz, Beni e Pando, no leste e nordeste do país. Em uma cerimônia na localidade de Ucureña, na última quinta-feira (2), do departamento de Cochabamba, cerca de 500 quilômetros a sudeste de La Paz, o presidente apresentou a regulamentação da Lei de Recondução Agrária com um discurso reivindicando a luta permanente dos povos indígenas pela terra e na defesa dos recursos naturais.
Morales anunciou um programa que chamou de “revolucionário” por privilegiar a redistribuição da terra, a mecanização das atividades agrícolas dos pequenos produtores, o fortalecimento do Tratado Comercial dos Povos, assinado com Cuba e Venezuela, além de priorizar a produção agrícola sob normas de conservação ambiental. Os povos indígenas são os mais revolucionários pelas transformações realizadas em matéria de terra, defesa de territórios e de direitos individuais e coletivos na América Latina, afirmou o mandatário.
Tradição histórica
Todo dia 2 de agosto, na Bolívia, é comemorado o Dia do Índio, pela promulgação da primeira reforma agrária no ano de 1953, mas na semana passada Morales pediu aos seus ministros que mudassem a denominação para “dia da revolução agrária” e anunciou que a partir de agora cantará o hino nacional com o punho esquerdo erguido e a mão direita na altura do coração. Em uma defesa da norma que regula a posse da terra, o presidente acusou os empresários da região oriental de promoverem um modelo de desenvolvimento sustentado no acúmulo de dinheiro sem respeitar o meio ambiente e os responsabilizou por incentivar “matanças e massacres” quando os povos se rebelam.
O porta-voz do governo, Alex Contreras, assegurou que a concentração de terras chegou a um grau questionável e citou o caso de 14 influentes famílias às quais atribui a propriedade de três milhões de hectares. As demandas indígenas por terras para a atividade agrícola enfrentam resistência por parte dos grupos de poder econômico de Santa Cruz, Beni e Pando, um dos assuntos que geram maiores debates na Assembléia Constituinte que delibera na cidade de Sucre. No altiplano e nos vales algumas famílias vivem em espaços menores que um hectare, enquanto no oriente uma vaca pasta em cinco hectares. “Creio que é preciso ser vaca para ter terras”, disse ironicamente Morales.
Vozes da elite
Em La Paz, o presidente da Câmara de Indústria e Comércio de Santa Cruz, Gabriel Dabdoub, disse que o novo regulamento gera incerteza e desestimula novos investimentos privados. Dabdoub defendeu a continuação de negociações entre o governo e a Câmara Agropecuária do Oriente (CAO) após a ruptura do diálogo e a ameaça dos produtores de elevar os preços dos alimentos básicos em até 40% e causar desabastecimento, como efeito da aplicação do regulamento de terras. “Não sabemos aproveitar as oportunidades de produção”. Há empresários que desejam investir na Bolívia, mas a falta de condições para a capital privado impede a concretização de iniciativas, afirmou Dabdoub.
O vice-ministro de Terras, Alejandro Almaraz, negou a possibilidade de uma alta de preços e escassez de alimentos, e defendeu o regulamento por imprimir transparência, correção e rapidez no processo de saneamento de terras. O controle social estará presente nesse processo mediante representantes de organizações sindicais e indígenas que evitarão a transformação de um trâmite em um ato de corrupção, explicou. Durante 10 anos, os governos anteriores titularam terras à razão de US$ 10 por hectare, mas o atual governo reduziu o custo dos trâmites de titulação para um dólar por hectare, disse Morales.
Esses trâmites demorarão apenas seis meses, e os conflitos de limites e destinação de áreas poderão ser resolvidos pelas comunidades indígenas e o governo validará os acordos, disse Almaraz. Até 2006, o governo estimava que podia recuperar cerca de 14 milhões de hectares para distribuí-los entre famílias de camponeses sem terra ou com “terra insuficiente”. A superfície com potencial agrícola chega a 107,2 milhões de hectares, em uma área total de 109,9 milhões de hectares que inclui 2,37% de manchas urbanas, equivalentes a 2,5 milhões de hectares.
Nova regulamentação
Ao final do processo de recuperação de terras, será aplicado um plano de distribuição que dará prioridade aos habitantes do lugar, compreenderá a criação de assentamentos humanos e beneficiará as comunidades, disse à IPS o assessor jurídico do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA), Howard Arroyo. As novas destinações compreendem organizações coletivas e eliminam a entrega de grandes extensões de terras agrícolas para poucas pessoas. O regulamento declara o final do latifúndio, afirmou Arroyo. Segundo o jurista, a história da distribuição de terras inclui alguns casos, com a entrega gratuita, até 400 mil hectares, a uma pessoa com fins alheios à produção agrícola e muitas vezes voltados à sua comercialização.
A regulamentação incorpora o caráter social do direito agrário que outorga os instrumentos jurídicos para administrar justiça em matéria de posse de terras, com a finalidade de sanear as propriedades ou recuperá-las para sua posterior redistribuição. A legislação anterior apenas tinha por objetivo o aperfeiçoamento do direito proprietário, e não concentrava sua atenção em verificar a função econômica e social das grandes extensões de prédios com potencial agrícola, explicou Arroyo.
Um Conselho Nacional Agrário integrado pelo governo e autoridades do setor acompanhará o cumprimento da lei, enquanto os conselhos departamentais terão participação de organizações camponesas, indígenas, de mulheres, produtores agropecuários e pecuaristas que, em conjunto, formarão o controle social. Cada funcionário público encarregado do processo de saneamento terá a obrigação de entregar a informação solicitada pelos representantes do controle social para verificar o correto trâmite. A função econômica e social das terras estará sujeita a princípios de interesse coletivo e se submeterá ao domínio originário da nação, afirmou o assessor jurídico do INRA.