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Russell Baker: Será hora de dar adeus aos jornais? (final)

Veja a segunda e última parte do artigo de Russell Baker, publicado originalmente na The New York Review Of Books (volume 54, nº 13), com o título “Goodbye to newspapers?”. A tradução é de Jô Amado.

Wall Street recebe pouca atenção por parte de Neil Henry em sua genial e minuciosa descrição dos problemas do jornalismo nestes tempos eletrônicos [American Carnival: Journalism Under Siege in an Age of New Media, por Neil Henry]. Após uma carreira no Washington Post, Henry é professor na Faculdade de Jornalismo da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e seu livro trata de assuntos que deveriam preocupar os jovens que começam na profissão.


 


De que maneira a internet afeta aquilo que ainda chamamos “imprensa”? Será o “blogging” o jornalismo do futuro? De que maneira pode o jornalista evitar a manipulação pela imensa – e implacável, em sua eficiência – máquina de propaganda do governo e do empresariado?


 


Ele não tem as respostas – e, na realidade, ainda não existem respostas para tais questões. Quando o advento das novas tecnologias muda tudo, a única previsão certa é a de um futuro inteiramente diferente de tudo o que conhecemos. Henry se satisfaz em deixar o sociólogo Herbert Gans especular sobre as possibilidades do jornalismo num futuro eletrônico cor-de-rosa.


 


A história das inovações tecnológicas sugere, na verdade, que as novidades culturais, sociais ou econômicas que se esperam das novas tecnologias nem sempre se concretizam. Conseqüentemente, a tecnologia, por si só, pouco fará para criar um futuro brilhante para o jornalismo.


 


A forma pela qual a internet substituiria o jornal enquanto fonte de informação nunca é bem explicada por aqueles que garantem que isso ocorrerá. Atualmente, cerca de 80% de todas as notícias disponíveis na internet são originárias de jornais, segundo estimativa feita por John Carroll, e nenhuma empresa da internet tem recursos suficientes para coletar e editar notícias na proporção que o faz o mais medíocre dos jornais metropolitanos.


 


Além do mais, conglomerados como Google e Yahoo! aparentemente não têm interesse em fazer um jornalismo sério (o Google tem um site de notícias automático, Google News, que navega por centenas de jornais eletrônicos e despachos de agências de notícias; o Yahoo! tem uma agência de notícias, o site Yahoo News, mas nem tem uma equipe de jornalistas, nem faz uma cobertura própria do noticiário).


 


Atualmente, a internet é basicamente uma versão eletrônica do menino de dez anos de idade que, de cima de sua bicicleta, costumava jogar o jornal na porta de entrada das casas: um mecanismo de circulação engenhoso. É também, evidentemente, um recurso inigualável para pesquisa e verificação dos fatos. O repórter de hoje, com seu laptop, tem acesso praticamente imediato a um material que, antigamente, implicaria buscas morosas, e muitas vezes fúteis, nos arquivos mortos do jornal. A internet deve tornar a redação e a revisão das matérias melhores.


 


“Parceiro silencioso”


 


O blogging é uma novidade mais interessante, talvez por serem os blogueiros tão apaixonados pela coisa. É uma restrição válida para um jornalismo descuidado e negligente, pois a vigilância dos blogueiros não deixa escapar o mínimo erro, a mínima omissão, e sua fúria é dura de agüentar. Blogueiros engajados insistem que praticam jornalismo, da mesma forma que faz um correspondente como John Burns, informando sobre a guerra do Iraque de Bagdá para o New York Times.


 


Se alguém topar esse debate, deve-se preparar para discutir a noite inteira e talvez pela semana seguinte. O que é indiscutível é que praticamente qualquer blogueiro pode ser um colunista. Com os imensos exércitos de colunistas-blogueiros, parece inevitável que alguns deles eventualmente produzam algo de original, interessante e refrescante, lançando um sopro de vida nova sobre esta forma já desgastada de jornalismo.


 


Como tantos outros comentaristas sobre jornalismo da atualidade, os autores de When the Press Fails – três professores de jornalismo – ficaram indignados com o desempenho frágil e omisso por parte da imprensa quando Bush, Cheney, Rumsfled, Wolfowitz & cia. incendiavam o apetite público por uma guerra no Iraque. Todo mundo, inclusive a maioria dos jornalistas, parece concordar que a imprensa desempenhou um papel medíocre, mas, se esse desempenho tivesse sido um trabalho magnífico, derrotar a determinação dos neoconservadores em conseguir sua guerra é uma outra questão.


 


Acompanhando de perto os fatos, naquela ocasião, achei que nada os deteria. Por um lado, o desejo de guerra contaminou o público. Por outro, o Congresso, a única força suficientemente poderosa para resistir a loucuras presidenciais – embora nem sempre capaz de evitá-las -, deixara de funcionar como parte concreta do governo e encontrava-se completamente inútil, limitando-se a incentivar o presidente. O senador Robert Byrd, da Virgínia Ocidental, descreveu com precisão a posição do Congresso como “moralmente fraca”.


 


E, por fim, deve ser creditado ao governo um soberbo trabalho de desapontamento. Ele enganou o próprio secretário de Estado, Colin Powell. Até se enganou a si próprio, antegozando um triunfo fácil. Apesar do papel humilhante do Congresso, a idéia de que a imprensa poderia ter evitado o desastre demorou a morrer. When the Press Fails não endossa essa idéia, mas não deixa de cortejá-la. É “particularmente interessante” que a imprensa “manteve-se um parceiro silencioso, embora muitas vezes desconfortável” no “exercício de queda-de-braço da realidade” com o qual o governo vendeu a guerra, dizem seus autores.


 


Realidade própria


 


O ideal da independência da imprensa não significa que o debate aberto com o público que daí decorre transforme ou melhore, necessariamente, os rumos da política adotada. O mínimo que se pode dizer é que a publicação de desafios com credibilidade em relação a políticas duvidosas pode proporcionar a um maior número de cidadãos uma informação mais equilibrada. E quando esses cidadãos vêem suas preocupações mais íntimas – e, às vezes, mal definidas – discutidas e esclarecidas no espaço legítimo da imprensa, podem começar a agir como um público, ao invés de sofrerem, isolados, o pavor dos acontecimentos que se desenrolam.


 


Com tais afirmações, os autores do livro exigem mais da imprensa do que ela pode dar. Discutir e esclarecer as atividades do governo é saudável, com certeza, mas é também um processo maçante que pode não ir além da indiferença do público. O Washington Post começou a discutir e esclarecer o caso Watergate no verão de 1972 e, no entanto, seis meses depois os norte-americanos estavam tão desinteressados que reelegeram o presidente Nixon com uma das votações mais esmagadoras da história. Se não fosse pela intervenção do quase-desconhecido juiz John Sirica, o escândalo de Watergate poderia ter caído no esquecimento.


 


Embora os autores do livro possam superestimar o poder da imprensa, sua análise das fraquezas do jornalismo de Washington merece muita atenção. Ser correspondente em Washington é uma das melhores promoções que um jornal tem a oferecer e, não por acaso, a imprensa de Washington constitui um grupo de elite: bem-educados, bem pagos, talentosos, à vontade entre os donos do poder, talvez um pouco presunçosos por saberem de segredos que os outros desconhecem, mas, em sua maioria, suscetíveis para com a obrigação de manter o público informado sem medo ou preconceito. No entanto, eles falharam para com esta obrigação durante os anos Bush devido, em parte, na opinião dos autores de When the Press Fails, à sua tendência a uma excessiva condescendência para com o poder.


 


Essa “condescendência para com o poder” não teria surgido como produto da era Bush, segundo os autores, mas seria um hábito “profundamente implantado e constantemente reforçado na cultura e nas rotinas do jornalismo predominante”. Um hábito que tornaria os jornalistas de Washington vulneráveis à manipulação pelos poderosos e indiferentes aos dissidentes e aos protestos. Dissidentes e aqueles que protestam são freqüentemente considerados “não-conformistas”, o que subentende que não devem ser levados a sério.


 


No mínimo, a condescendência para com o poder torna-se uma constante na cobertura das mais banais trivialidades da Casa Branca. O próprio presidente recebe uma cobertura exaustiva, mesmo quando não está fazendo mais do que entrar e sair de aviões, de férias ou cumprimentando personalidades de passagem. Num nível mais sofisticado, também transparece na linguagem de jornalismo. A palavra “tortura” raramente foi utilizada em matérias sobre Abu Ghraib. O presidente Bush insiste que os Estados Unidos não toleram a tortura. Matérias jornalísticas e fotografias do que soava e parecia decisivamente tortura foram quase sempre descritas pela imprensa como “abusos”.


 


Na pior hipótese, a condescendência para com o podre significa reproduzir prontamente a versão do governo tal como a apresentam os poderosos. O pessoal de Bush falou em criar sua própria realidade. Os autores de When the Press Fails referem-sem a essa “realidade” de Bush como um script e criticam a imprensa de Washington por aceitá-la como uma realidade concreta, mesmo quando, durante a guerra do Iraque, “aquele script parece grotescamente discordante dos fatos observáveis”.


 


Repórteres barrados


 


Contrariamente à impressão popular, existiu um bom jornalismo quando o governo se lançou na guerra. Existiu também uma dissidência articulada, até no Capitólio, quando a resolução de apoio à guerra foi antecipada pelo Congresso. A imprensa simplesmente não lhe deu muita atenção, em primeiro lugar por ter origem em pessoas fora do poder – os senadores Kennedy, de Massachusetts, e Byrd, da Virgínia Ocidental, ambos democratas. No Times e no Post, Byrd quase não existia. Embora ele seja o mais antigo membro do Senado e uma enciclopédia humana sobre sua história, estava fora do poder e, portanto, facilmente ignorado, enquanto Ari Fleisher – a voz da Casa Branca – era onipresente nas redes de comunicação.


 


Contrariamente à impressão de que a totalidade da imprensa de Washington era sonâmbula, também existiram algumas reportagens investigativas. Michael Massing, cujos artigos sobre a cobertura de imprensa deficiente feita na época foram publicados no New York Review of Books, destaca várias matérias feitas por repórteres do Washington Post e do New York Times que desafiaram a posição do governo. Freqüentemente, entretanto – diz Massing -, as matérias eram discretamente enfiadas no canto de uma página interna do jornal.


 


Walter Pincus e Dana Milbank, por exemplo, escreveram no Post que os Estados Unidos se preparavam para atacar o Iraque com base em suposições contra Saddam Hussein “que foram questionadas – e, em alguns casos, rejeitadas – pelas Nações Unidas, por governos europeus e até por relatórios das agências de inteligência norte-americanas”. A matéria foi “escondida” na página A13. Pincus disse a Massing que os editores do Post “passaram por uma fase em que não davam chamada de primeira página para matérias que poderiam fazer a diferença”.


 


Massing deu um destaque especial para Jonathan Landay, Warren Strobel e John Walcott, da sucursal da agência Knight Ridder de Washington, por uma cobertura consistente que nunca aceitou o script do governo. Mas aqui surge outro defeito do jornalismo de Washington: as matérias publicadas pela agência Knight Ridder sobre a realidade por trás do script não tinham influência alguma sobre o restante da imprensa porque a Knight Ridder não tem jornais em Washington – suas matéria simplesmente eram ignoradas.


 


Isso pode refletir algo pior do que uma imprensa de Washington adormecida quando se acende a luz. John Walcott, chefe da sucursal de Washington da Knight Ridder, disse recentemente, a propósito da cobertura sobre o Iraque, que a imprensa de Washington tinha um problema pior do que timidez ou demasiada proximidade com o poder. Era, pura e simplesmente, preguiça. Muito do que o governo disse sobre o Iraque a al-Qaeda simplesmente não fazia sentido, mas raríssimos foram os repórteres que se deram ao trabalho de verificá-lo.


 


Também implicou alguma coragem para irritar a Casa Branca, dizendo que o governo divulgava ao mundo apenas o que servia a seus objetivos e fantasias. Desafiar o script era um convite a ser punido pela Casa Branca: os repórteres da agência Knight Ridder foram impedidos, durante três anos, de viajar no avião da Secretaria de Defesa porque sua cobertura não obedecera ao script. O ex-embaixador Joseph Wilson escreveu que Saddam Hussein não comprara minério de urânio no Níger – o que o presidente afirmara perante o Congresso – e a carreira de sua mulher na CIA foi destruída por meio de vazamentos no governo.


 


Secretária computadorizada


 


Através de um imenso amplificador de talk radio da direita conservadora, os jornalistas que desafiavam o script eram acusados de serem tendenciosos, de terem motivos não-patrióticos, de serem indiferentes às vidas dos soldados norte-americanos e até de pretenderem trair o país.


 


O talk radio continua difundindo calúnias 24 horas por dia, com absoluta impunidade, porque agora já não há muito apoio público a reportagens agressivas. Existe uma intensa campanha de políticos conservadores, há vários anos, no sentido de descrever a imprensa como um falso mensageiro disseminando o que é negativo e envenenando a cabeça das pessoas com preconceitos esquerdistas. “Convidados” políticos das emissoras de notícias 24 horas por dia repetem essa mensagem incessantemente.


 


Um dos resultados disso é a crescente separação entre o público e a imprensa. Isso é evidente na nova visão que o público tem do jornalista. Quando eram heróis, os jornalistas foram glamourizados nas telas por Clark Gable e Rosalind Russell. Eram o sal da terra: gozadores, atrevidos, mas sempre com caráter e princípios. Também assim foi com James Stewart, Humphrey Bogart, Cary Grant, Robert Redford e Dustin Hoffman, que também passaram por redações cinematográficas. Ser jornalista era algo como um herói proletário, merecedor do poder de uma estrela de Hollywood.


 


Em American Carnival, Neil Henry caracteriza o “jornalista” moderno e sugere os motivos que levaram o público a retirar-lhe o afeto. Para a pessoa comum, diz Henry, “um jornalista é o apresentador da televisão que recebe um belo salário para fazer constantemente barulho nos canais de notícias”. O anfitrião do programa também é um jornalista, arrecadando um bom dinheiro “não para sair em busca de notícias, mas para entreter uma audiência com um discurso fluente e uma personalidade controvertida”.


 


O jornalista de hoje, na caracterização de Henry, é o comentarista de televisão que, no julgamento de um assassinato, declara a culpa e fala da pena máxima antes que a sentença seja pronunciada. Ou pode ser uma estrela de TV, com um salário de vários milhões de dólares, fingindo compreender os problemas da classe operária. E há “os que têm acesso a informações confidenciais, que mudam de lealdade e de ética, que trabalham como porta-voz do Pentágono, como assessores de campanhas eleitorais, ou como redatores dos discursos do presidente por um ano” e descolam um emprego no ano seguinte como repórter de televisão ou correspondente de uma revista, sempre dignos de confiança.


 


No caso da televisão, o jornalista é alguém que precisa “de uma plástica nos olhos, de um transplante de cabelo ou de uma injeção de Botox” para criar a falsa aparência de juventude, essencial para transmitir a verdade com convicção.


 


Henry fica triste com tudo isso. Seu conjunto de interesseiros, fraudadores, papagaios de pirata de políticos, prepotentes, charlatões, repórteres comprados e trapaceiros sem princípios constitui esse vago organismo chamado “mídia”. Como a imprensa e o jornalismo se enredaram em toda essa sujeira é uma história complicada, mas parece não haver escapatória. Na verdade, a imprensa parece ser um coadjuvante no circo (carnival) de Henry e cabe até perguntar se alguém se preocupa com isso.


 


Ninguém mais telefona para o jornal com a esperança de encontrar um herói. E se alguém o fizesse, provavelmente escutaria uma mensagem gravada numa secretária eletrônica computadorizada – que foi o que ocorreu com Henry com vários jornais para onde telefonou, ao acaso. Foi difícil conseguir falar com alguém. Dava solidão, ao telefone.


 


Leia também: Russell Baker: Será hora de dar adeus aos jornais? (parte 1)