Paquistão: a longa sombra do Exército
O Paquistão esteve sob comando dos militares por metade de seus 60 anos de existência, desde a separação da Índia em 1947. Um governo civil dirigiu o país por 10 anos depois da independência. Desde então, Ayub Khan, Yahya Khan e Zia ul-Haq, todos chefes m
Publicado 20/08/2007 17:36
Ayub Khan foi deposto por uma insurreição nacional que se prolongou por três meses e Zia ul-Haq morreu em um acidente de aviação. Cada um dos chefes militares governou o país por 10 anos, e seguindo esse calendário político, o atual chefe de Estado, o General Pervez Musharraf, ainda tem dois anos para cumprir, tendo tomado o poder em 1999.
Enquanto vive a expectativa de acertar um acordo para dividir o poder com Benazir Bhutto, a ex-primeira-ministra que ele condenou como ''corrupta'', Musharraf está cada vez mais assustado pela onda de descontentamento contra si.
''Doutrina da necessidade''
Em março deste ano, quando Musharraf suspendeu Iftikhar Mohammed Chaudhry, o chefe da Suprema Corte de Justiça, ele disse que estava implementando a ''doutrina da necessidade'' para intervir no processo judicial.
Falando à al-Jazira, Irfan Husain, colunista do jornal Dawn, disse que essa declaração significa que o poder dos militares ainda é a principal instituição governante.
''Eles [O exército] são a única instituição que funciona. Tudo o mais está destruído e abandonado e a infra-estrutura social está morta'', diz Husain. ''O Exército precisa ter um papel menos poderoso na sociedade paquistanesa''.
A decisão de demitir Chaudhry detonou uma onda de protestos, que tomaram a forma de um movimento da sociedade civil não estimulado por motivos religiosos — um contraste com o quadro comum de levantes religiosos que definiram a política paquistanesa nos últimos anos.
Os advogados que marcharam nas ruas de Islamabad fizeram isso para insistir que os poderes constitucionais devem ser separados, sustentando que o sistema deve ser guiado de forma democrática — política que Musharraf prometeu ao conquistar o poder.
Entretanto, como líderes militares governaram anteriormente por decreto, um sistema democrático jamais foi adotado. Pior ainda, uma queda de braço ocorre entre governos civis e militares desde que isso tornou-se norma no país.
O imbroglio de Masjid
O cerco à Mesquita Vermelha (Lal Masjid) ocorreu quase ao mesmo tempo que a demissão de Chaudhry, e serviu mais uma vez para o governo pretextar o uso da ''doutrina da necessidade''.
Embora o total de mortes no caso ainda permaneça misterioso, centenas de estudantes foram mortos supostamente dentro da madrassa, onde eles foram pegos em uma confrontação mortal com o Exército.
Musharraf disse na época que isso foi necessário, já que ''era melhor para os interesses do país que elementos extremistas fossem erradicados''.
Entretanto, grupos oposicionistas questionaram o modo como o Exército abordou o encerramento do cerco à madrassa.
Imran Khan, chefe do Tehreek-e-Insaaf (o Movimento de Justiça Paquistanês), disse à al-Jazira que a confrontação tornou-se politizada, às custas de muitas vidas.
''Diante da maior crise que vive seu governo, ele tentou desesperadamente provar que é indispensável ao Ocidente na guerra contra o terror'', disse Khan.
''Mas esse uso da força tende a produzir conseqüências perigosas e indesejáveis, assim como já ocorreu no Beluchistão, no Vaziristão e em Bajaur (províncias do Paquistão)''.
Husain, que cobriu o cerco da madrassa para o Dawn, também afirma que outras medidas deveriam ter sido tomadas para reduzir o número de pessoas mortas na operação.
''O cerco à Mesquita Vermelha foi desnecessário. O que o exército deveria ter feito era cortar a água, a eletricidade e o fornecimento de gás para a mesquita'', diz Husain.
Prioridades distorcidas?
George W. Bush, presidente dos EUA, sinalizou seu apoio ao governo quando o cerco terminou, elogiando Musharraf como ''um forte aliado na luta contra esses extremistas''.
Mas uma semana depois, a National Intelligence Estimate, uma agência americana ''especialista'' em contra-terrorismo, publicou um relatório crítico do modo como Musharraf trata o resurgimento cada vez mais rápido do Talibã na Província da Fronteira Noroeste (NWFP, North West Frontier Province, na sigla em inglês).
Recentemente, o Washington Post relatou que o documento foi deliberadamente alterado para pressionar Musharraf no sentido de destruir o quanto antes os guerrilheiros na região.
A História tende a se repetir no Paquistão: Musharraf não é o único comandante militar do país apoiado por governos estrangeiros.
Zia também foi financiado pelos Estados Unidos, para ajudar a lutar contra a ocupação soviética do Afeganistão, no ápice da Guerra Fria.
O custo de seu apoio é agora uma nação entre as mais pobres da Ásia.
Apoio internacional a governos militares resultou em milhões de dólares investidos na defesa, enquanto outras parcelas da sociedade foram negligenciadas.
De acordo com números governamentais, pouco mais de 2% do PIB do Paquistão é investido em educação e programas sociais. Isso permitiu que as madrassas ocupassem não somente o espaço para a educação, mas também para fornecer uma série de programas sociais que muitas famílias não têm como pagar.
Há já muitos anos que mais de 10 mil estudantes estudam e vivem dentro da Mesquita Vermelha, muitos deles vindos de áreas tribais do país.
Poucas opções
Com as críticas se avolumando e a taxa de apoio a Musharraf despencando para 34%, seu menor nível na história, de acordo com pesquisas recentes, o complexo ambiente político levou alguns a considerar que o julgamento do caso tenha sido feito muito rápido.
O episódio da Mesquita Vermelha é o caso em questão.
Ikram Sehgal, analista de Defesa e ex-major do Exército, disse à al-Jazira que Musharraf não tinha outra saída para terminar o cerco.
''O exército não tinha outra escolha a não ser assaltar a mesquita. Os militantes estavam reunindo armas e queriam fazer valer suas leis extremistas. Eles não tinham respeito pelo império da lei, por isso é que nós tinhamos de entrar lá e quebrá-los'', disse Sehgal.
O confronto entre o Estado e os guerrilheiros resultou na morte de mais de mil pessoas em todo o país, por meio de ataques suicidas.
Abdul Aziz, irmão de Abdul Rashid Ghazi, na última entrevista que deu antes de ser preso ao escapar da mesquita em 4 de julho, disse que a escalada da violência era condicional.
''O Talibã no NWFP e em áreas tribais lançará uma campanha militar se nossa escola religiosa for atacada'', disse Aziz.
Pervaiz Iqbal Cheema, diretor do Instituto de Política de Islamabad diz que os EUA e seus aliados conhecem muito pouco da política interna do Paquistão e ainda querem estabelecer suas próprias agendas de política externa.
''A comunidade internacional é ignorante a respeito do Paquistão. Não tem a mínima idéia das dificuldades que Musharraf tem em atender tanto a Washington quanto aos agitados líderes tribais. Ele está perdido se fizer e está perdido se não fizer'', disse Cheema à al-Jazira.
''Eu acredito que o Paquistão deveria deixar de ser um aliado da luta contra o terror, porque isso não irá ajudar este país de modo algum'', completa.
Império da defesa
Os benefícios que essa posição causaram aos integrantes do mercado de defesa do país são uma história completamente diferente. Jamais na história estiveram tão ricos.
De acordo com Ayesha Siddiqa, um ex diretor de pesquisa da Marinha do Paquistão, os império de negócios da defesa deve ultrapassar o valor de US$ 20 bilhões.
Oficiais aposentados e na ativa dirigem conglomerados industriais, manufaturando tudo desde cimento a cereais de milho, além de possuir mais de quatro milhões de hectares de terra no país.
A penetração militar dentro da sociedade se acelerou sob o regime de Musharraf, que colocou 1.200 oficiais em posições chaves nas universidades e em escolas de treinamento.
''O propósito primário de um militar treinado é fazer a guerra. Eles não foram treinados para os setores da economia civil'', disse Siddiqa à al-Jazira.
''[Os interesses econômicos do Exército] alimentam diretamente o poder político militar. Isso é uma expressão de sua fortaleza pessoal e organizativa'', completa.
Isso faz com que o retorno a um poder civil se torne muito mais difícil, em meio a demandas feitas por Bhutto, que quer que Musharraf não utilize mais o uniforme para que possa dividir o poder com ele.
Um analista político definiu o Paquistão como um país em que, desde sua criação, jamais foi construída uma ponte sobre o abismo que separa os pobres dos ricos, os educados dos ignorantes, os que vivem o mundo contemporâneo dos que estão enraizados em circunstâncias do passado.
O que transparece é que o Paquistão, por tudo que conseguiu nos 60 anos da sua criação, é uma nação à procura de uma identidade que esteja além do poderio militar.
Traduzido por Humberto Alencar