John Pilger: Sem lágrimas nem remorsos pelos caídos do Iraque
No Dia da Memória de 2007, os grandes e os bons inclinaram suas cabeças no Cenotáfio. Generais, políticos, leitores de jornais, dirigentes do futebol e corretores de ações vestiram as suas melhores roupas. A hipocrisia sentia-se. Ninguém mencionou o Iraqu
Publicado 20/11/2007 16:13
A lista de documentos proibidos é o papel que o Estado britânico e a sua corte desempenhou na destruição do Iraque. Aqui está ela:
1. Negação do holocausto
Em 25 de outubro, o deputado Dai Davies perguntou a Gordon Brown acerca dos civis mortos no Iraque. Brown transferiu a questão para o secretário do Exterior, David Miliband, o qual passou-a para o seu ministro júnior, Kim Howells. Este respondeu: “Continuamos a acreditar que não há números completos ou confiáveis quanto a mortos a partir de Março de 2003”. Isto era mentira.
Em outubro de 2006 a Lancet publicou investigação da Johns Hopkins University dos EUA e da Universidade al-Mustansiriya de Bagdá, o qual calculava que 655 mil iraquianos haviam morrido devido à invasão anglo-americana. Uma investigação ao abrigo da lei da Freedom of Information revelou que o governo, apesar de publicamente minimizar o estudo, secretamente considerou-o como completo e confiável.
O conselheiro científico chefe do ministro da Defesa, sir Roy Anderson, considerou os seus métodos como “robustos” e “de acordo com a melhor prática”. Outros altos responsáveis do governo reconheceram secretamente que o inquérito “tentou e testou o método de medição da mortalidade em zonas de conflito”.
Desde então, a agência britânica de investigação de opinião, Opinion Research Business, extrapolou um número de 1,2 milhão de mortos no Iraque. Portanto, a escala de mortes provocada pelos governos britânico e americano pode ter ultrapassado aquela do genocídio de Rwanda, tornando-a o maior ato único de assassinato em massa do fim do século 20 e do século 21.
2. Saque
A razão não declarada para a invasão do Iraque era as ambições convergentes dos neocons, ou neo-fascistas, em Washington e o regime de extrema-direita de Israel. Ambos os grupos há muito queriam o Iraque esmagado e o Oriente Médio colonizado para atender os desígnios americano e israelense.
O plano inicial para isto foi o “Defence Planning Guidance”, de 1992, o qual delineou os planos pós Guerra Fria dos EUA a fim de dominar o Oriente Médio e não só. Os seus autores incluíam Dick Cheney, Paul Wolfowitz e Colin Powell, arquitetos da invasão de 2003.
A seguir à invasão a autoridade civil em Bagdá foi dada a Paul Bremer, um neocon fanático, e numa série de decretos ele transferiu toda a futura economia iraquiana para corporações americanas. Como isto era ilegal, a pilhagem corporativa recebeu imunidade quanto a quaisquer formas de processo.
O governo Blair foi totalmente cúmplice e até mesmo objetou quando lhe pareceu que companhias britânicas poderiam ser excluídas de grande parte do saqueio corporativo. Oficiais britânicos foram premiados como se fossem funcionários de postos coloniais. Uma “lei” do petróleo permitirá, com efeito, a companhias estrangeiras aprovar os seus próprios contratos sobre os vastos recursos energéticos do Iraque. Isto constituirá o maior roubo desde que Hitler despojou as suas conquistas européias.
3. Destruição da saúde de um país
Em 1999 entrevistei o dr. Jawad Al-Ali, especialista em câncer do hospital da cidade de Basra. “Antes da Guerra do Golfo”, disse ele, “tínhamos apenas três ou quatro mortes de câncer por mês. Agora há 30 a 35 pacientes a morrerem a cada mês.
Os nossos estudos indicam que 40 a 48 por cento da população nesta área ficará com câncer”. O Iraque estava então nas garras de um sítio econômico e humanitário, iniciado e conduzido pelos EUA e Reino Unido.
O resultado, escreveu Hans von Sponeck, o então responsável chefe da missão humanitária da ONU em Bagdá, foi “genocida… praticamente toda uma nação foi sujeita à pobreza, morte e destruição dos seus fundamentos físicos e mentais”.
A maior parte do sul do Iraque permanece poluído com os resíduos tóxicos dos explosivos britânicos e americanos, incluindo munições com urânio-238. Médicos iraquianos pediram ajuda em vão, citando os níveis de leucemia entre crianças como os mais altos já vistos desde Hiroshima.
O professor Karol Sikora, chefe do programa de câncer da Organização Mundial da Saúde, escreveu no BMJ: “Pedidos de equipamentos de radioterapia, drogas de quimioterapia e analgésicos são sistematicamente bloqueados pelos conselheiros dos Estados Unidos e britânicos [no Comitê de Sanções]”.
Em 1999, Kim Howells, então ministro do Comércio, proibiu efetivamente a exportação para o Iraque de vacinas que protegeriam a maior parte das crianças de difteria, tétano e febre amarela, as quais, disse ele, “são capazes de serem utilizadas em armas de destruição em massa”.
A partir de 2003, exceto para exercícios de Relações Públicas para as mídias embutidas nas tropas, os ocupantes britânicos não fizeram qualquer tentativa de reequipar e reabastecer hospitais que, antes de 1991, eram vistos como os melhores do Oriente Médio.
Em julho, a Oxfam relatou que 43 por cento dos iraquianos estavam a viver na “pobreza absoluta”. Sob a ocupação, as taxas de desnutrição entre crianças dispararam para 28 por cento. Um documento secreto da Defence Intelligence Agency, “Iraq Water Treatment Vulnerabilities”, revela que o abastecimento de água civil foi alvejado deliberadamente.
Em consequência, a grande maioria da população não tem acesso a água corrente nem a esgotos – num país onde tais serviços básicos foram outrora tão universais quanto no Reino Unido. “A mortalidade de crianças em Basra aumentou em aproximadamente 30 por cento em comparação à era de Saddam Hussein”, disse o dr. Haydar Salah, um pediatra do hospital de crianças de Basra. “Estão a morrer crianças diariamente e ninguém está a fazer algo para ajudá-las”.
Em janeiro deste ano, cerca de 100 importantes médicos britânicos escreveram a Hilary Benn, então secretário do Desenvolvimento Internacional, a descrever como estavam a morrer crianças porque o Reino Unido não havia cumprido as suas obrigações como potência ocupante sob a Resolução 1483 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Benn recusou-se a vê-los.
4. Destruição de uma sociedade
A ONU estima que 100 mil iraquianos estão a fugir do país a cada mês. A crise de refugiados ultrapassou agora aquela de Darfur como a mais catastrófica sobre a Terra. Metade dos médicos iraquianos foi-se, bem como engenheiros e professores. A sociedade mais educada do Oriente Médio está a ser desmantelada, peça por peça.
Dentre os mais de quatro milhões de pessoas deslocadas, no ano passado o Reino Unido recusou visto à maior parte dos mais de 1.000 iraquianos que pediram para virem aqui, enquanto removiam mais refugiados iraquianos “ilegais” do que qualquer outros país europeu.
Graças a legislação inspirada em tablóides, iraquianos na Reino Unido estão muitas vezes na miséria, sem direito a trabalhar e sem apoio. Eles dormem e recolhem resíduos em parques. O governo, diz a Amnistia, “está a tentar matá-los à fome para que saiam do país”.
5. Propaganda
“Veja a minha linha de atuação”, disse George W. Bush, “você mantém-se a repetir coisas múltiplas vezes para a verdade entrar na cabeça, como que para catapultar a propaganda”. De pé do lado de fora da Downing Street nº 10, em 9 de abril de 2003, o editor político da BBC, Andrew Marr, relatou a queda de Bagdá como um discurso vitorioso.
Tony Blair, declarou ele aos telespectadores, “disse que seria capaz de tomar Bagdá sem um banho de sangue, e que no fim os iraquianos estariam a celebrar. E em ambos os pontos ele verificou-se conclusivamente certo. E seria inteiramente desagradável, mesmo para os seus críticos, não reconhecerem que esta noite ele se ergue como um grande homem e um primeiro-ministro mais forte”.
Nos Estados Unidos, travestis semelhantes passavam por jornalismo. A diferença era que os principais jornalistas americanos começaram a considerar as consequências do papel que haviam desempenhado na preparação para a invasão. Vários deles disseram-me acreditar que se as mídias houvessem desafiado e investigado as mentiras de Bush e de Blair, ao invés de refleti-las e ampliá-las, a invasão poderia não ter acontecido.
Um estudo europeu descobriu que, entre as maiores redes de televisão ocidental, a BBC permitiu menos cobertura de divergências do que todas as outras. Um segundo estudo descobriu que a BBC deu crédito sistematicamente à propaganda do governo de que existiram armas de destruição em massa. Ao contrário do Sun, a BBC tem credibilidade – como tem, ou tinha, o Observer.
Em 14 de outubro de 2001, a primeira página do London Observer dizia “Falcões americanos acusam o Iraque quanto ao antrax”. Isto era inteiramente falso. Fornecida pela inteligência americana, isto fazia parte da firme cobertura pró guerra do Observer, a qual incluía afirmar que existia uma ligação entre o Iraque e al-Qaida, para a qual não havia evidência crível, o que traiu o passado honroso do jornal.
Uma reportagem em cada duas páginas era intitulada: “A conexão iraquiana”. Aquilo também vinha de “fontes de inteligência” e era lixo. O repórter David Rose concluía a sua investigação estéril com um sentido apelo à invasão. “Há ocasiões na história”, escreveu ele, “em que a utilização da força é ao mesmo tempo certa e lógica”.
Rose posteriormente escreveu o seu mea culpa, incluindo nesta a confissão de como fora utilizado. Mas outros jornalistas ainda têm de admitir que foram manipulados devido ao seu próprio relacionamento crédulo com o poder estabelecido.
Nestes dias, o Iraque é noticiado como se ali houvesse exclusivamente uma guerra civil, com um “crescimento” (“surge”) dos militares americanos a fim de a trazer paz aos nativos briguentos. A perversidade disto é de cortar a respiração. Que a violência sectária é o produto de uma política viciosa de dividir para conquistar está para além de qualquer dúvida.
Quanto ao abundante mito das mídias sobre a al-Qaida, “a maior parte dos [americanos] favoráveis contar-lhe-ão”, escreveu Seymour Hersh, “que os combatentes estrangeiros são uns dois por cento, e estão sem liderança”. Que uma resistência fracamente armada e audaciosa tenha não só travado o mais poderoso exército do mundo como tenha acordado uma agenda anti sectária, anti al-Qaida, a qual opõe-se a ataques a civis e apela a eleições livres, isto não é notícia.
6. A próxima matança
Nas décadas de 60 e 70, governos britânicos expulsaram secretamente a população de Diego Garcia, uma ilha no Oceano Índico cuja população tem nacionalidade britânica. Mulheres e crianças foram carregadas em barcos que lembravam navios negreiros e despejadas em favelas das Ilhas Maurícias, depois de a sua terra natal ter sido dada aos americanos para a instalação de uma base militar.
Três vezes o Supremo Tribunal descobriu esta atrocidade ilegal, considerando-a como um desacato à Magna Carta e a recusa do governo Blair de permitir o povo voltar para casa como “ultrajante” e “repugnante”. Mas o governo continua a utilizar recursos infindáveis para apelar, a expensas dos contribuintes, para impedir que Bush fique inquieto.
A crueldade disto rivaliza com o fato de que não só os EUA repetidamente bombardearam o Iraque a partir de Diego Garcia como em “Camp Justice”, na ilha, “suspeitos da al-Qaida” são “entregues” (“rendered”) e “torturados”, segundo o Washington Post.
Agora a US Air Force apressa-se a ampliar as instalações de hangares na ilha para que bombadeiros invisíveis ao radar possam transportar bombas de 14 toneladas para “destruição de bunkers” num ataque ao Irão. A propaganda orquestrada nas mídias é crítica para o êxito deste ato de pirataria internacional.
Em 22 de maio a primeira página do London Guardian estampava a manchete: “Plano secreto do Irã para ofensiva de Verão a fim de forçar os EUA para fora do Iraque”. Era um panfleto de pura propaganda baseada inteiramente em fontes anónimas oficiais dos EUA. Por toda a parte, nas mídias, começaram a rufar tambores. As “ambições nucleares do Irã” escorrem facilmente dos lábios dos leitores destas notícias, não importa que a Agência Internacional de Energia Atômica tenha refutado as mentiras de Washington, não importa o eco das “armas de destruição em massa de Saddam”, não importa que outro banho de sangue esteja a preparar-se.
Para que não esqueçamos.
Traduzido pelo “Resistir” a partir do original em inglês em http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=462