Sem categoria

Espanhóis reclamam, mas não largam eldorado latino-americano

O recente entrevero entre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e o rei da Espanha, Juan Carlos I, trouxe ao debate os eventuais riscos que as empresas do primeiro mundo correm ao investir na América Latina, em tempos de nacionalizações e cada vez mais

As reações contrárias ao atuais governantes ficaram mais latentes após uma declaração de Chávez, no dia seguinte à discussão com o rei na Cúpula Ibero-Americana. ''Estou submetendo a uma profunda revisão as relações econômicas com a Espanha. As empresas vão ter de prestar mais contas, vou ficar de olho nelas'', disse.



É claro que Chávez, fiel à sua verve, em certa medida joga para a torcida ao criticar as empresas espanholas, assim como o faz quando ataca George W. Bush e os Estados Unidos – a Venezuela nem em sonho pensa em abrir mão dos investimentos espanhóis e da venda de petróleo para os norte-americanos. No entanto, a iniciativa do presidente venezuelano é salutar e deveria ser seguida por alguns de seus vizinhos de continente, tamanhos os lucros obtidos pelas multinacionais na região, quase sempre sem a devida contrapartida aos trabalhadores e aos cidadãos que utilizam seus serviços.



Analisemos apenas o caso da Espanha e de suas empresas, cujo início maciço do desembarque em terras latino-americanas se deu no começo dos anos 90, aproveitando a onda neoliberal – caracterizada pela desregulamentação da economia a das privatizações do patrimônio público – enfiada goela abaixo em praticamente todo o continente.



Telefónica, Repsol, Endesa, Santander, BBVA, construtoras, firmas de hotelaria, grupos de comunicação, empresas de serviços, entre outros conglomerados, vêm se fixando na América Latina nas duas últimas décadas. ''No período de expansão entre 1993 e 2000 destinaram investimentos brutos de 77 bilhões de euros, 50% do total espanhol no mundo'', segundo reportagem do El País. A crise argentina de 2001 resultou em certa diminuição de investimentos, mas a região ainda corresponde a 24% do capital movimentado pelas 35 maiores empresas da Espanha.



''Perigo populista''



As multinacionais aqui instaladas não se manifestam, mas há quem o faça por elas – e de modo muito bem claro, para que as reclamações cheguem aos ouvidos certos. O economista Mauro Guillén, em entrevista ao já citado El País, disse que as empresas estão submetidas à ''arbitrariedade dos governos populistas'', pois estes têm ''capacidade para renegociar contratos ou concessões, aumentar tarifas ou congelá-las'', como ocorreu ''com a Repsol na Argentina e na Bolívia; com a Aguas de Barcelona, que precisou deixar Buenos Aires; ou com a Endesa, também nesse país''.



Em tempo: a Endesa divulgou na semana passada que a América Latina ainda é sua prioridade, por corresponder a 33% de seus ativos no mundo; a Repsol teve na Argentina, em 2006, o dobro do lucro obtido no mesmo ano na Espanha; e a Aguas de Barcelona teve seu contrato rompido com o governo da cidade portenha por não cumprir itens como a universalização dos serviços prestados e as metas de investimentos acordadas em contrato.



As empresas espanholas e de outros países podem chamar do que quiser as mudanças pelas quais estão passando diversos países da América Latina – é um direito que elas têm, assim como o de mandar alguém calar a boca. O que essas multinacionais não têm o direito é de interromper esse processo de mudanças, que passa inevitavelmente pela diminuição dos efeitos causados por duas décadas de neoliberalismo na veia.



Assim como Chávez não se calou diante do rei, governos como o do Brasil, do Uruguai, da Argentina, do Equador e da Bolívia precisam criar controles mais rígidos sobre as ações das multinacionais em seus territórios – o primeiro mundo precisa sempre ser lembrado de que os tempos de colônia de exploração ficaram para trás. O cenário para essa correlação de forças aos poucos vai sendo criado, com o fortalecimento da economia local e a cada vez mais necessária integração latino-americana. Nesse novo cenário, investimentos estrangeiros são e serão muito bem-vindos, mas desde que as regras do jogo sejam cumpridas à risca e beneficiem a todos os envolvidos.